Como ganhar uma eleição e perder um governo

Não, não estou falando de um eventual golpe, seja de Jair Bolsonaro seja da generalada, juntos ou separados.

Como ganhar uma eleição e perder um governo

Como ganhar uma eleição e perder um governo

28/07/2022

 

Por JEAN MARC VON DER WEID*

As contradições da campanha de Lula

Não, não estou falando de um eventual golpe, seja de Jair Bolsonaro seja da generalada, juntos ou separados.

Estou falando do preço que o Lula vai pagar para ganhar esta eleição e garantir a posse como presidente.

São escolhas difíceis. A boa lógica manda somarmos o máximo de forças contra as ameaças que chamei em artigo postado no site A Terra é Redonda da tática “bola ou búlica” adotada por Jair Bolsonaro: Derrama de dinheiro para ganhar o eleitorado desesperado pela fome e pela pobreza ou golpe com o apoio das FFAA, polícias militares, fanáticos armados organizados nos Clubes de Tiro, milicianos e a boiada de adoradores do mito, tudo isso desaguando em uma votação suspendendo as eleições pelo Congresso dominado pelo Centrão chefiado por Artur Lira.

Lula está buscando acordos com a esquerda e centro esquerda, o que já conseguiu, apesar de alguns percalços no Rio de Janeiro, Ceará e Rio Grande do Sul. Também trata de atrair o centro, centro direita e direita ditos “republicanos”, ou seja, contrários aos arreganhos golpistas de Jair Bolsonaro. Isto leva a esquerda, sobretudo petista, a engolir gordos sapos e aceitar acordos com os odiados golpistas que derrubaram Dilma Rousseff sob pretexto de uns pecadilhos que são quase cômicos comparados com todos os crimes de responsabilidade de Michel Temer e de Jair Bolsonaro. Mas como disse em inacreditável sincericídio, Michel Temer, “Dilma não sabe conversar e se relacionar”. Ou seja, foi cassada por antipática, caso único na história, nossa ou de qualquer outra república desde que os romanos inventaram esta forma de governo.

De sapo em sapo, Lula, que já foi chamado de sapo barbudo pelo Brizola, foi fazendo a esquerda, petista ou não, digerir o Geraldo Alkmin, o Márcio França, os candidatos a governador no Amazonas, na Paraíba no Mato Grosso, entre outros. Agora Lula busca acordos com setores das classes dominantes, com acenos para a Faria Lima e, mais incisivamente nos últimos dias, para o agronegócio.

Isto acendeu a luz amarela entre os setores da oposição preocupados com as questões ambientais, que encontraram expressão em um pronunciamento de Marina Silva protestando contra tanta abertura. A postura de Lula não deve gerar muita reação interna no PT, cujo desenvolvimentismo tacanho não é muito diferente do que disse o Lula em reunião com o agronegócio: “tem gente que prefere manter a árvore que matar a fome”.

Esta oposição é falsa em mais de um sentido. Em primeiro lugar, é perfeitamente possível matar a fome sem destruir o meio ambiente. Em segundo lugar, o agronegócio não tem a menor pretensão de matar a fome, com ou sem abate da árvore. O setor com o qual o Lula se acotovela no momento é o menos hidrófobo das nossas elites ruralistas e entende muito bem que suas exportações estão ameaçadas, exatamente porque o mundo está preocupado com as árvores que o Lula, tão levianamente, aceita imolar no altar daquilo que ele acha que são os interesses do agronegócio. Para esses empresários ruralistas com quem ele está lidando, a fala de Lula pegou mal. Eles não produzem alimentos para o nosso povo e sim para a exportação e, no mais frequente dos casos, para alimentar animais em outros países.

Muita gente acha que Lula é assim mesmo, um hábil político que fala aquilo que cada público quer ouvir. Neste caso, além de dizer a coisa errada para este público pressionado pelas ameaças dos consumidores europeus, Lula parece esquecer que estas conversas não são secretas e que hoje em dia tudo se sabe e tudo está quase instantaneamente no whatssap. E o que agrada a alguns vai desagradar a outros. Em pouco tempo, os diferentes segmentos do eleitorado vão se perguntar quais afirmações são para valer e quais são agrados verbais para enganar os trouxas.

Soma-se a este quadro o fato de que a campanha de Lula não tem um diagnóstico da nossa realidade após anos de desastres econômicos, sociais, políticos e ambientais que vem se agravando desde 2014 e, sobretudo, com o cataclisma do governo Jair Bolsonaro. Lula também não tem propostas sobre como lidar com o tsunami de problemas que vai ter que enfrentar e, mais ainda, com um imenso enfraquecimento do poder executivo e com um Estado quebrado. Se muita gente discutiu a veracidade da expressão “herança maldita” utilizada por Lula para caracterizar o Brasil que recebeu do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em 2003, hoje ninguém tem dúvidas de que a herança que Lula vai herdar de Bolsonaro será maligna.

A tática eleitoral de Lula é dizer que vai repetir o que já fez, sobretudo no seu primeiro governo e esquecendo dos governos de Dilma Rousseff. Tudo bem que é uma boa lembrança, embora a versão atual seja mais do que embelezada. Mas a realidade é outra, tanto no país como no mundo. Além disso, Lula está esquecendo que o eleitorado também não é o mesmo de 20 anos atrás. Ou mesmo de 12 anos atrás, quando deixou o governo com 80% de aprovação. O recall não funciona para os mais jovens, muito embora Lula esteja bem quotado nesta faixa do eleitorado.

A falta de um programa dirigido ao presente e ao futuro é fortemente cobrada pela grande imprensa e vai ser objeto de confrontos nos debates entre os candidatos. Não vai dar para responder sempre começando com um “quando eu era presidente…”. Ponto fraco para Lula. Dizem alguns analistas que isto não importa muito em uma eleição que está marcada pela rejeição ao Bolsonaro e tudo que ele representa. É verdade, mas isto torna as tentativas de ampliar a frente anti-energúmeno algo pouco transparente. Também torna a campanha algo pouco empolgante, gera poucas esperanças a não ser (e não é pouco, reconheço) a expectativa de nos livrarmos de Jair Bolsonaro.

Lula não pode formular e defender o programa de governo necessário para enfrentar a crise estrutural do capitalismo brasileiro e, nem tampouco pode formular uma proposta mais moderada para relançar a economia, mesmo nos moldes do modelo desequilibrado atual. Se fizesse isso, correria o risco de jogar toda a nossa classe dominante nos braços do bolsonarismo. Ou seja, tem que se manter com propostas vagas e concessões para cada grupo da elite que ele tenta ganhar ou neutralizar.

Tudo isso se justifica pelos enormes riscos de um novo mandato para Jair Bolsonaro. Mas o preço pago é alto. Eleitoralmente, ele fica obrigado a vender “loteamento no céu” para o povão. Lula sequer pode prometer ilusões que contrariem as elites que ele pretende trazer para a sua candidatura. Isto pode tornar a percepção dos eleitores do andar de baixo um tanto frustrada, muito embora o povão não tenha alternativas a não ser apostar nele. Por outro lado, vender ilusões tem um preço a ser cobrado no futuro, quando for a hora de tomar decisões de governo. Lembremos que Dilma Rousseff fez exatamente isso em 2014 e, ao se sentir acuada a adotar uma política conservadora no seu segundo mandato, perdeu apoio dos seus eleitores de forma vertiginosa, permitindo que se instalasse o quadro político que levou ao seu afastamento no golpe de 2016.

Que fazer então? Lula deveria adotar um programa mínimo essencial que toque questões básicas para o povão e não arredar pé desses poucos pontos tanto nas negociações com as elites antes das eleições como nas iniciativas do governo recém-eleito.

Quais deveriam ser esses pontos?

 

Um programa mínimo

A meu ver, a questão mais importante agora e no futuro próximo vai ser, para o eleitorado mais pobre, a questão da fome e da insegurança alimentar. E a solução, por algum tempo, pelo menos, vai ser a criação ou recriação de um auxílio, uma Bolsa Família 2.0.

Formular um programa agora e defini-lo com precisão em termos do número de famílias e do montante necessário para cada uma afastar a ameaça da fome não pode ser adiado. Não basta lembrar do que foi o Bolsa Família no passado ou criticar o Auxílio Brasil como eleitoreiro. Todo mundo se lembra da ajuda emergencial que deu suporte a muito mais gente do que ambos os programas e com muito mais recursos. Agora são 33 milhões de pessoas passando fome e 54 milhões comendo mal e mais uns 40 milhões com carências alimentares específicas. Mesmo que o programa fique centrado, por problemas de indisponibilidade recursos, no setor mais gravemente atingido, ele vai custar mais do que o Bolsa Família e do que o Auxílio Brasil.

E aí se coloca o problema do financiamento do programa, questão cobrada diuturnamente pela grande imprensa, fixada no equilíbrio fiscal e no teto de gastos. Não basta simplesmente dizer que estas duas políticas são neoliberais e que tem que ser abolidas. Se não houver algum tipo de financiamento sustentável deste e de outros programas, teremos uma volta da inflação que vai corroer os benefícios, como aliás já ocorre agora.

Este é o nó que Lula teme cortar, porque ele exige uma política que vai bater de frente com os interesses mesquinhos do andar de cima. O candidato Lula não pode deixar de propor uma política de financiamento deste programa contra a fome e ele terá que tirar dinheiro de quem o tem, ou seja, dos bilionários e milionários deste país. Uma taxa voltada para financiamento de um fundo pela erradicação da fome (enquanto a retomada da economia não for capaz de reabsorver os desempregados e subempregados com salários suficientes para suprir as necessidades básica) vai ser uma consigna política de muito apelo popular. E vai fugir da crítica de “gastança irresponsável”. Esta campanha deveria ser estendida para todos os candidatos a deputado e senador, pois eles terão que votá-la no ano que vem.

Ainda sobre o tema da fome, se quisermos enfrentar o problema para lá das soluções emergenciais, vai ser preciso reorientar a política de desenvolvimento agrícola de forma a ampliar a oferta de produtos alimentares tão rápido quanto possível. E não basta apenas aumentar o volume ofertado, mas garantir a qualidade do produto. O controle do uso de agrotóxicos vai ter que ser implementado de forma radical, mudando o rumo do “laisser faire” que nos tornou recordistas mundiais no uso de venenos, inclusive muitos proibidos em todo o mundo. O agronegócio é muito refratário a produzir para o mercado interno de baixa renda, porque ganha muito mais produzindo para os bois, galinhas e porcos do primeiro mundo ou da China. Ou produzindo para os 10% mais ricos do país.

A agricultura familiar é a solução potencial para esta produção, mas as políticas de promoção do desenvolvimento desta categoria terão que ser muito aprimoradas. Com efeito, os programas dos governos FHC I e II, Lula I e II e Dilma I e ½ levaram a parcela mais bem aquinhoada dos agricultores familiares a adotarem o modelo produtivo do agronegócio e, logicamente, eles acabaram se associando à produção de comodities exportadas para alimentação animal (e deixando de plantar feijão…). Os programas de crédito, assistência técnica e de compras governamentais teriam que ser revistos à luz de uma avaliação do que ocorreu nos 20 e poucos anos dos governos mencionados.

Tudo isso levaria o agronegócio a paroxismos de furor e a uma rejeição da candidatura de Lula. Ocorre que este setor, com raras exceções, já faz parte do núcleo duro do bolsonarismo e Lula está repetindo o erro de outras eleições, quando deu barretadas na direção desta gente e o resultado em termos de apoio eleitoral foi zero.

Uma segunda questão chave, não tanto do ponto de vista de ganho de votos, mas do ponto de vista da sua importância para o país e para o mundo, é a criação de um programa de desmatamento e queimadas zero. Um programa de recuperação das áreas degradadas em todos os biomas, com plantio de espécies nativas em larga escala. Este programa poderia empregar muita gente hoje desocupada e certamente encontraria um forte apoio internacional pelo seu impacto no controle do aquecimento global. Mais uma vez, o agronegócio estremeceria de horror e cerraria fileiras com o energúmeno. Como já disse, estaríamos perdendo apenas o que nunca tivemos ou teremos, o apoio do agronegócio.

Outros pontos importantes devem ser acrescentados, mas não me aventuro a propô-los por não serem da minha área. Os temas de maior relevância para o país e para o povão, além dos que apresentei, são os da saúde e da educação e, a meu ver, a campanha de Lula deveria equacionar o que pretende fazer nestas duas áreas essenciais e divulgar amplamente as propostas. Não faltam movimentos na sociedade civil com formulações aprofundadas nestes temas e Lula deveria ouvi-los.

Sei que a posição de Lula é das mais difíceis, mas creio que, se ele quiser não apenas ganhar as eleições, mas governar para resolver os problemas mais urgentes do povão, ele deveria fazer escolhas agora, e não depois de ter tomado posse. Escolher depois é se entregar para as alianças com setores como o do agronegócio e decepcionar seu eleitorado.

*Jean Marc von der Weid é ex-presidente da UNE (1969-71). Fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA).