"Por que o brasileiro ainda tem tanto medo do comunismo?"; especialistas explicam

"Por que o brasileiro ainda tem tanto medo do comunismo?"; especialistas explicam

Após pesquisa que revelou que 44% da população brasileira acredita que o Brasil pode virar comunista em 2022, cientistas políticos afirmam que o País nunca esteve próximo a essa ideologia política15:57 | Dez. 27, 2021 

Autor Alice Araújo

 

Marx, Engels e Lenin em pôster de propaganda soviética: da teoria à prática do comunismo(foto: Reprodução)
Marx, Engels e Lenin em pôster de propaganda soviética: da teoria à prática do comunismo(foto: Reprodução)

 

Apesquisa mais recente do Instituto Datafolha revelou que 44% dos brasileiros temem que o Brasil possa virar comunista após as eleições de 2022. Embora a maioria de 50% dos entrevistados tenha afirmado discordar desse cenário, a parcela que acredita na possibilidade demonstrou-se expressiva. O levantamento, divulgado no último sábado, 25, mostra que o receio de um País governado sob a égide do pensamento de Karl Marx e Friedrich Engels é ainda maior entre os que declararam voto no presidente Jair Bolsonaro (PL), totalizando 61% neste segmento.

 

Dentro desta perspectiva, O POVO ouviu especialistas em ciências políticas para entender por que ainda tantas pessoas no Brasil têm medo de que a nação se encaminhe para um futuro comandado por essa teoria política. Entre as questões avaliadas, os cientistas políticos destacam a crescente influência bolsonarista nos discursos políticos, a construção de um imaginário coletivo a respeito do comunismo, a consolidação de valores conservadores, e até a necessidade de um “inimigo” comum a ser combatido pelos governos.

 

Mesmo com a temática em pauta, os especialistas afirmam, contudo, que ao analisar a história política do País, desde o início do período republicano, o Brasil nunca esteve nem ao menos próximo ao comunismo. Conforme Rodolfo Marques, doutor em Ciências Políticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a discussão sobre essa ideologia teve destaque em terras tupiniquins em momentos específicos, como nas décadas iniciais do século XX e durante o período de ditadura militar (1964 - 1985).

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“O Brasil teve o Partido Comunista, mais forte e mais atuante, ali nos anos 20, nos anos 30, e mais à frente, com a figura de Luís Carlos Prestes e sua esposa, Olga Benário Prestes. Também houve aquele momento em que o Jânio Quadros renuncia [...] E na sequência, João Goulart assume e aí ele era considerado também uma “ameaça comunista”. Durante o período autoritário militar, a repressão ficou associada também ao combate ao comunismo, como se os ventos cubanos pudessem se espraiar aqui pela América do Sul”, explica Marques.

O cientista político complementa que no caso do período mais recente, tem-se um reforço do movimento de “combate ao comunismo”, a partir do pleito de 2018, com a eleição do presidente Bolsonaro. Marques salienta, porém, que o país nunca esteve nem ao menos próximo ao real comunismo, como teme parte dos brasileiros.

“Dentro da retórica bolsonarista, em 2018, houve esse movimento de combate ao comunismo, muito reforçado pela perspectiva ideológica do Olavo de Carvalho, que foi um dos idealizadores desse movimento que nós estamos vivendo hoje. Então, o Brasil, na prática, nunca chegou perto do comunismo, embora existam os partidos comunistas, e existam também as pessoas que são ideólogas desse modo de produção, desse sistema de pensamento, dessa perspectiva ideológica", afirma.

A jornalista e doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Deysi Oliveira Cioccari, concorda com a visão de Marques, e destaca haver falta de “conhecimento histórico” de parte da população a respeito do significado do comunismo na prática.

“O Brasil não esteve à beira do comunismo. Isso já foi refutado por diversos historiadores. Mesmo o golpe de 64 precisou de mecanismos autoritários para se manter no poder, se derrotada a ameaça do comunismo que entregassem o poder aos civis. Mas não foi isso, obviamente, que aconteceu. Goulart pretendia fazer reformas, o que poderia fortalecer a esquerda, mas isso jamais colocaria o Brasil à beira do comunismo. Falta um pouco de conhecimento histórico aí sobre o que é realmente o comunismo”, destaca cientista política e jornalista.

Porém, se o Brasil nunca esteve próximo ao comunismo, como pode a população brasileira ter medo dessa ideologia? Para Marques, os expressivos 44% que responderam à pesquisa afirmando acreditar que o País possa virar comunista em 2022, têm estreita relação com a eleição de Bolsonaro em 2018. O que é corroborado também pelos 61% de seus eleitores que temem um Brasil comunista. O especialista explica que o combate a essa ideologia faz parte da retórica de Bolsonaro.

“Tem muito a ver ainda com o pleito de 2018, ali o Bolsonaro se elege numa lógica antipetista [...] Ele era integrante do baixo clero, e ele bate muito nessa tecla de combate ao comunismo. ‘A nossa bandeira jamais será vermelha’. Ele bate nas teclas do ‘Deus, pátria e família’, a questão do conservadorismo, do aspecto religioso, do patriotismo, do nacionalismo. Então, esses aspectos passam a predominar dentro da retórica bolsonarista em 2018 e continuam ressoando em 2022. E um dos eixos mais importantes do governo Bolsonaro, que ainda permanece, é exatamente essa questão do anticomunismo, como uma maneira de manter as suas bases alicerçadas dentro de um movimento”, disse o cientista político.

Já Cioccari destaca que discursos anticomunistas estão no imaginário coletivo dos brasileiros desde a época do golpe militar contra João Goulart. Conforme a especialista, a aversão ao comunismo atravessa diferentes governos, afinal de contas, “todo governo precisa criar um inimigo comum para sobreviver”, destaca.

“Na época do golpe alguns setores da sociedade apoiaram o golpe e próprios setores da imprensa foram a favor de narrativas contra Goulart, o que reforçou o imaginário coletivo. Esse não é um recurso exclusivo desse governo. Lula, por exemplo, penou em eleições presidenciais para provar que não era comunista. Todo governo precisa criar um inimigo comum para sobreviver. Um dos maiores fatos históricos da sociedade brasileira é o golpe. Nada ‘melhor’ do que reviver esses medos para reiterar suas narrativas. Alguns setores da sociedade também reagem com valores da esquerda, como a própria Igreja, que vê a esquerda discutindo aborto, igualdade entre casais do mesmo sexo, e reage fortemente com valores conservadores”, explicou.

Marques também reforça a ideia de "inimigo comum” analisada por Cioccari. Para o cientista político, o comunismo é visto por muitos conservadores como “inimigo do capitalismo, inimigo das liberdades”, e, em sua opinião, justamente pelo País ter um modo de produção capitalista, o Brasil não deve “se tornar comunista”. Ou seja, os 44% dos entrevistados deveriam, assim, respirar aliviados.

“Não acredito que o Brasil possa se tornar comunista, nosso modo de produção é o capitalismo. Não vejo nenhum tipo de movimento em relação, isso, claro, um governo mais ideologicamente à esquerda, ele vai focar em programas sociais, em processos de redistribuição de renda, eventualmente, a taxação das grandes fortunas, as pessoas mais ricas. São movimentos que podem acontecer, a questão da tabela do imposto de renda, mas não identifico comunismo. Embora sejam alguns ideais que, tanto no modo de produção comunista, como na ideologia socialista, existem”, pontuou.

 


Bolsonarismo x comunismo

A pesquisa Datafolha ouviu 3.666 pessoas em 191 municípios, com margem de erro de dois pontos percentuais para mais ou para menos. Dentre os segmentos entrevistados, os brasileiros que têm intenção de votar no atual presidente foram a maioria a se afirmar receosos quanto ao comunismo no Brasil. Ao se aprofundarem nesta questão de bolsonarimso x comunismo, para os especialistas, os 61% do eleitorado do mandatário, que temem essa realidade, já analisada como nada provável, é resultado do próprio movimento “bolsonarista” em si, como afirma Marques.

“O Bolsonarismo é um movimento que vai continuar, independentemente do Bolsonaro se reeleger em 2022. É um movimento mais conservador, defensor de determinados padrões, a questão da bancada ruralista, parte das camadas evangélicas, principalmente, os líderes das igrejas evangélicas, também os militares, você tem esse movimento consolidado. [...] Se você observar em grupos de WhatsApp, ou em redes e mídias sociais, você vê esses grupos falando da 'ameaça vermelha', falando de todos aqueles que são contrários ao governo Bolsonaro são comunistas, críticas à mídia, críticas a determinados líderes religiosos que defendem uma sociedade mais igualitária. Então, há uma discussão em relação a isso, e aí você tem essa permeabilidade maior junto a esse grupo bolsonarista”, disse o especialista.

Segundo Cioccari, além de segmentos mais conservadores, e o uso das mídias sociais, citados por Marques, existem também outras questões que contribuíram para essa aversão ao comunismo que precisam ser ressaltadas, como uma tentativa de militares, base de apoio bolsonarista, de “recuperar as memórias do golpe”.

“Vale lembrar que o golpe teve apoio de alguns setores da sociedade (Marcha com Deus e a Família) e esse lado da narrativa vai se perpetuando ainda mais numa sociedade onde não há mais o controle das informações. Com as redes sociais cada um se tornou porta-voz da sua versão. A gente não divide mais uma mesma base de fatos. Setores da Igreja, a Lava Jato que expôs a esquerda como nunca… Tudo isso solidificou o surgimento de uma direita com valores mais conservadores. São eleitores de Jair Bolsonaro”, explicou a cientista política.

Para Marques, o motivo dessa ideia de “ameaça comunista” continuar sendo alimentada, principalmente pela direita, se associa ao fato do governo de Jair Bolsonaro trazer consigo o repúdio a essa ideologia política ao poder, sendo “o primeiro governo oficialmente de direita” na Presidência. E dentro dessa perspectiva, passam a ser taxados de “comunistas” todos aqueles que apresentam qualquer contrariedade, ou oposição ao governo bolsonarista.

“A ‘ameaça comunista’ é bem, entre aspas, alimentada pela direita como uma forma de ter um inimigo comum, como já disse, e uma forma de tentar aleijar uma discussão sobre uma igualdade social. [...] Essa questão da 'ameaça comunista' passa a ser combatida também por uma questão retórica, como um reforço na comunicação política, nas mídias e redes sociais e como uma forma de consolidar aquilo que nós chamamos de status quo. Como a direita chegou ao poder através do Bolsonaro, desde a redemocratização, é o primeiro governo oficialmente de direita que assume o cargo, ele bate muito nessa tecla, então qualquer contrariedade, ou oposição ao bolsonarismo, ou ao governo Bolsonaro é taxada de comunistas e, com isso, a base apoiadora do Bolsonaro continua sempre mobilizada", explicou.

Já Cioccari destaca que a "ameaça comunista” ainda é utilizada, justamente para sustentar o medo. Sendo assim, não é à toa que a pesquisa, recentemente divulgada, mostra que de fato a estratégia de amedrontar parece estar dando certo. “O medo é o principal propulsor para manter a sociedade unida. A capacidade humana de destruir o que é desconhecido é uma das maiores ferramentas para os políticos explorarem. O medo é desinformado. Os homens se associam pelo medo e a direita tem usado essa ferramenta”, conclui a jornalista e cientista política.