Governo Lula ainda não começou no Itamaraty – Por João Vicente Goulart

ANÁLISE
Governo Lula ainda não começou no Itamaraty – Por João Vicente Goulart
O que não faltam no Itamaraty são diplomatas qualificados, prontos para servir ao país com lealdade às suas instituições democráticas

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Em 27 de março de 1957, o deputado Carlos Lacerda leu na tribuna da Câmara telegrama secreto da Embaixada do Brasil em Buenos Aires, relatando fake news sobre negócios com pinho. A negociata, supostamente, envolveria o vice-presidente João Goulart. O PTB - o partido de Jango - reagiu com firmeza, pedindo a cassação do mandato de Lacerda. O mesmo pedido foi apresentado à mesa da Câmara dos Deputados pelo Procurador-Geral da Justiça Militar.
Lacerda cometera crime contra a segurança nacional ao tornar público texto que fora transmitido de forma cifrada, o que ameaçava o sigilo das comunicações da rede diplomática brasileira e também o das adidâncias militares.
Prevaleceu o espírito de corpo. Lacerda não foi cassado e jamais ficou claro quem lhe fornecera a cópia do telegrama secreto. Em seu livro autobiográfico “Depoimento”, Lacerda apenas revelou que a recebera de um “amigo” na redação da Tribuna da Imprensa...
Jango ficou traumatizado com esse episódio. Em 1960, ao visitar Praga, comentou com o presidente da antiga Tchecoslováquia que “o Itamaraty era a instituição mais reacionária do Estado brasileiro”.
Homem incapaz de guardar rancores, reconciliou-se com Lacerda em 1967 para a formação da Frente Ampla. Em seu governo, só nomeou pessoas ilustres para o Itamaraty: San Thiago Dantas, o arquiteto da Política Externa Independente; Affonso Arinos, seu iniciador no governo Jânio Quadros; Hermes Lima, notável jurista e político socialista; e Araújo Castro, diplomata de carreira e expoente da diplomacia multilateral.
Eram outros tempos. Após a derrubada de Jango, o Itamaraty executou, sob pressão militar, uma política externa regressista, orientada pelo anticomunismo.
O Brasil passou a apoiar o colonialismo de Portugal na África, o imperialismo americano no Vietnã e na República Dominicana, o racismo do apartheid na África do Sul. Só uma década depois, no Governo Geisel, foram retomados alguns dos princípios e valores da política externa de Jango, com o reconhecimento diplomático da República Popular da China e dos países africanos de língua portuguesa.
A partir de então, sobressaiu uma nova geração de diplomatas. Nomes como Samuel Pinheiro Guimarães, Ítalo Zappa, Jório Dauster ou Celso Amorim, todos jovens diplomatas durante o governo João Goulart, ascenderam na estrutura do Itamaraty e contribuíram para a formulação de uma política externa universalista, inspirada na Política Externa Independente de Jango.
É difícil compreender por que, em seu terceiro mandato, o presidente Lula, em perigosa concessão ao corporativismo, optou por manter, em importantes postos no exterior, nomes totalmente identificados com o bolsonarismo e a extrema direita, quando não envolvidos em episódios obscuros, que deslustram a melhor tradição da diplomacia brasileira.
Otávio Henrique Dias Garcia Cortes, embaixador no Japão desde 2022, pertence a uma linhagem de extremistas de direita.
Seu pai, o embaixador Marcos Henrique Camillo Cortes, foi o primeiro chefe do Centro de Informações do Exterior, o famigerado CIEX, criado em 1966 por Pio Corrêa e responsável pela morte de Rubens Paiva. Em abril de 1976, quando servia na embaixada em Buenos Aires, teria transmitido à Marinha argentina a autorização do SNI para o assassinato do pianista Tenório Júnior, que acompanhava Vinícius de Moraes em excursão ao Prata.
O avô, o general Geraldo de Menezes Cortes, envolveu-se, em novembro de 1955, na tentativa de golpe contra a posse de Juscelino e Jango, vencedores indiscutíveis do pleito presidencial. Antes, sendo o chefe de polícia do Rio de Janeiro, proibira o filme “Rio, 40 graus”, obra prima do cinema brasileiro, alegando que a temperatura no Rio nunca passara de 39,6º C... Diante da forte reação da opinião pública, inventou que Nelson Pereira dos Santos, o diretor, era um agente do serviço secreto tcheco, o qual teria planejado e financiado a produção do filme.
Bolsonaro nomeou Otávio Cortes embaixador no Japão como prêmio por sua atuação na Bolívia.
No país andino, Cortes teve participação direta no golpe de 2019 contra o ex-presidente e líder indígena Evo Morales. Esteve presente, assim como o chefe da estação da CIA em La Paz, à reunião na Universidade Católica na qual Jeanine Áñez, uma desconhecida senadora, foi escolhida para suceder a Morales. Áñez está presa desde 2021, acusada de conspiração, sedição e terrorismo. Durante o golpe, houve dezenas de mortos, centenas de feridos e mais de 1.500 pessoas ilegalmente detidas.
Além de golpista, Cortes pratica, sem qualquer disfarce, a imoralidade administrativa.
Mantém a esposa sob a sua chefia imediata, falta grave punível com suspensão de até 90 dias. Nomeou-a chefe da chancelaria, ato que tipifica sua responsabilidade, como Chefe de Posto, por essa flagrante irregularidade. Somados, os salários do casal Cortes, digo Midas, aproximam-se dos cinquenta mil dólares mensais! Cada ano que passam no Japão acumulam mais de meio milhão dólares.
O Governo Lula III precisa livrar-se sem demora dessa quinta coluna bolsonarista. O que não faltam no Itamaraty são diplomatas qualificados, prontos para servir ao país com lealdade às suas instituições democráticas e plena observância dos princípios constitucionais que devem reger a política externa brasileira ou a administração pública. Golpistas - como Otávio Cortes - merecem o mesmo tratamento de seus companheiros de viagem do 8 de janeiro.
O governo Lula podia começar no Itamaraty.
O multilateralismo exige conduta, e a conduta equilíbrio para uma boa diplomacia.