Stiglitz: por onde reconstruir a economia no pós-pandemia

Os mercados sozinhos não responderam à crise. No Brasil e EUA, os produtos mais simples não foram supridos

Stiglitz: por onde reconstruir a economia no pós-pandemia

Stiglitz: por onde reconstruir a economia no pós-pandemia

Os mercados sozinhos não responderam à crise. No Brasil e EUA, os produtos mais simples não foram supridos. Para mudar este quadro, economista convoca a olhar os países bem-sucedidos, com instituições robustas e forte proteção social

OUTRASMÍDIAS

CRISE CIVILIZATÓRIA

 

Por Marco Fajardo, no El Mostrador, traduzido pelo IHU Online

São “40 anos difamando a importância do governo, a importância da ação coletiva. O resultado desses 40 anos difamando o papel do governo é que o governo estava menos preparado para lidar com a pandemia, e (antes) menos preparado para outras crises”, como a financeira de 2008.

“O governo se fragilizou. Todos recorremos ao governo no caso da pandemia, foi o que fizemos com a crise financeira mundial. O governo dos Estados Unidos não foi capaz de responder de maneira efetiva. A ironia é que os mercados também não foram capazes de responder. Que, ao mesmo tempo, o neoliberalismo estava falando dos mercados e fragilizando os governos”, destacou.

“As regras que foram estabelecidas nesta era do neoliberalismo resultaram em mercados ineficientes, de curto prazo. Vimos isso em 2008, quando as instituições financeiras buscaram onde poderiam lucrar a curto prazo, mesmo assumindo riscos excessivos, manipulando os mercados de crédito predatórios”, afirmou.

De fato, “ficamos assombrados que nos Estados Unidos nossos mercados não conseguiam fabricar produtos simples, como equipamentos de proteção e máscaras, muito menos alguns produtos mais complicados como exames e ventiladores”. E comparou a situação a comprar um carro sem pneu reserva, economiza um pouco, mas se você estiver preso no meio do nada, o custo “pode ser enorme”.

“Lamentavelmente, o mercado reestruturou as regras do mercado, o que teve como consequência que o governo se tornou menos eficaz, assim como os mercados”, afirmou.

Efeitos da pandemia

“A pandemia ressaltou uma série de problemas. Afetou muitos países, mas responderam de maneiras diferentes”, com sucesso “na Nova Zelândia, Coréia do Sul e Taiwan, onde até países pobres como o Vietnã fizeram enormes esforços para controlá-la”, e fracassos como nos “Estados Unidos e no Brasil”.

Para o economista, os países bem-sucedidos têm sido aqueles “com governos eficazes, instituições robustas e boa ciência”, mas também destacou a importância da confiança “dos cidadãos, do governo e entre ambos”. “Os altos níveis de desigualdade enfraquecem a confiança”, advertiu.

Em relação ao vírus, destacou que afeta mais quem tem saúde precária, com baixa renda, algo que, como disse, acontece principalmente em países sem acesso universal ao sistema de saúde e sistemas “deficientes” de proteção social. Por isso mesmo, destacou que os Estados Unidos foram um dos mais afetados, com 25% dos casos, apesar de ser apenas 4% da população mundial.

Atribuiu isso ao fato de “termos péssimos sistemas de seguridade social, um país “que não reconhece o direito de acesso à saúde como um direito humano básico”, cujo resultado é a “enorme” diferença entre os que estão acima e abaixo na estrutura social. Um exemplo é que a expectativa de vida é menor do que quando o presidente Donald Trump assumiu o cargo em 2017”, apesar de todos os avanços da ciência e da medicina.

De fato, os setores baixos “sofreram mais mortes, maior exposição à doença e maior perda de renda”.

“A principal lição dessas crises é que os problemas não podem ser resolvidos apenas pelos mercados. Precisamos trabalhar juntos, em uma ‘ação coletiva'”, expressou.

Estratégia de recuperação

Stiglitz também abordou o tema das estratégias de desenvolvimento no contexto das atuais incertezas e desigualdades em todo o mundo, bem como da recuperação após a pandemia.

Nesse contexto, alertou que o PIB “não é uma boa métrica de desempenho econômico, não é uma boa métrica de rendimento social, desenvolvimento e de progresso social” e solicitou indicadores que incorporem outros fatores como a sustentabilidade, a desigualdade, a saúde e a seguridade de renda. Este último é difícil de garantir no mercado, por isso é importante “ter bons sistemas de seguridade social”.

O especialista destacou que ninguém sabe como será a recuperação, nem os efeitos do confinamento, nem como a economia reagirá às decisões políticas atuais, razão pela qual pediu “humildade” aos responsáveis pela política econômica.

E lembrou que a recuperação 2009-2012 beneficiou sobretudo os setores mais ricos, “uma recuperação para os banqueiros, para os mesmos que provocaram a crise, mas não para os milhões de cidadãos que perderam os seus empregos e as suas casas”. Uma crise que, em sua opinião, foi mal administrada “e nos levou a algo espantoso”.

Números absurdos

Sitglitz advertiu que durante décadas o neoliberalismo ignorou essas incertezas e promoveu “um conjunto de medidas econômicas que, em geral, não funcionavam”, e que mesmo assim continuaram sendo aplicadas pelo Consenso de Washington, “como se pudessem resolver algo com regras simplistas”.

Como um exemplo delas, avaliou a norma europeia de que o déficit não deve ultrapassar 3% do PIB como “um número que surgiu do nada. Mas há outros números igualmente arbitrários, como o de que a inflação não pode ultrapassar 2% e que a os impostos não devem exceder 60% do PIB.

“Essas normas nunca fizeram sentido” e são números “sem nenhuma consideração às incertezas das taxas de juros, o crescimento, o aumento da população, o aumento da produtividade”, com uma “arrogância sobre como diziam entender a natureza da economia em nossa sociedade”.

“A ironia era que esse conjunto de modificações no neoliberalismo tinha muitas falhas e o resultado é que não funcionou”, acrescentou.

“Enfrentamos uma série de crises que nos mostraram que esse modelo está errado, que a política econômica baseada nesses modelos foi errônea e agora estamos em uma situação em que nos vemos enfrentando a realidade”, em meio a uma situação onde nem o ambiente e nem a economia eram sustentáveis com um governo de Donald Trump que atacava os valores fundamentais, como a democracia e os direitos humanos, expressou.

Agora, disse, trata-se de “reconstruir” uma economia e uma sociedade mais verdes e baseadas no conhecimento, com mais igualdade, para um crescimento “sustentável e inclusivo”.

Nesse sentido, o economista defendeu a modificação não só das políticas, mas também do arcabouço “dentro do qual fazemos essas políticas”.

Modelo corruptor

Também criticou que o neoliberalismo foi incapaz de antecipar cenários como a crise financeira de 2008 e a pandemia. “O neoliberalismo argumentou que a desregulamentação e a liberalização financeira iriam desencadear um crescimento sem precedentes. Não fez isto. O que desencadeou foi uma instabilidade econômica sem precedentes”.

“Os modelos que fundamentam o neoliberalismo eram modelos corruptores que dizem que de alguma forma a economia sempre esteva em uma trajetória de equilíbrio, apesar de ter havido crises repetidas vezes, como a de 2008, e eventos como a pandemia, que foram ouvidos, mas não antecipados”.

Stiglitz observou que “agora caminhamos para outra possível crise, a crise climática. Essas crises ressaltam a necessidade de ações governamentais e demonstram a importância das externalidades, onde as ações tomadas por indivíduos e empresas têm enormes consequências para todos que estão no mundo. E ressaltam a necessidade de cooperação global. Ainda há outras crises que estamos enfrentando no mundo. Uma delas, com a qual estou muito preocupado, é a crise da desigualdade. A pandemia agravou as desigualdades, tanto no interior dos países, como entre eles. E exacerbou essas desigualdades”.

“O que necessitamos hoje são de melhores marcos orçamentários, melhores marcos para pensar as políticas monetárias. (…) Precisamos de espaço para políticas mais consideráveis, de livre disposição, que respondam às necessidades, na medida em que vão se revelando”, concluiu.