"Nos Estados Unidos, a mera palavra 'social' produz terror": Hernán Díaz, escritor argentino vencedor do Prêmio Pulitzer de Ficção

"Nos Estados Unidos, a mera palavra 'social' produz terror": Hernán Díaz, escritor argentino vencedor do Prêmio Pulitzer de Ficção

  • Ayelén Oliva
  • BBC News Mundo
Hernan Díaz

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Hernán Díaz, vencedor do Prêmio Pulitzer de Ficção 2023.

Hernán Díaz quis narrar a partir da ficção as "engrenagens misteriosas que regem a vida do capital" em Wall Street.

Para isso, após rever os grandes clássicos da teoria econômica e da história dos Estados Unidos, decidiu criar em seu romance Trust o universo que envolve Benjamin Rask, magnata que no início dos anos 1920 multiplica a herança que recebe de sua família apostando no capital financeiro.

Nascido na Argentina em 1973, Díaz cresceu na Suécia, estudou literatura na Universidade de Buenos Aires e se doutorou em filosofia pela Universidade de Nova York. Ele mora nos Estados Unidos há 25 anos.

Trust (Riverhead Books, 2022), traduzido para o espanhol como "Fortuna" (Anagrama, 2023), foi incluído na lista de livros favoritos de Barack Obama, chega cinco anos depois de seu primeiro romance "A lo lejos" e acaba de ganhar o Prêmio Pulitzer na categoria Ficção.

De um hotel em Los Angeles, onde realiza reuniões para a adaptação de seu livro para uma série da HBO estrelada por Kate Winslet, Díaz conversa com a BBC Mundo sobre o capitalismo nos Estados Unidos, desigualdades, alianças e traições que orbitam no mundo do dinheiro.

 

Linha cinza de apresentação

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Às vezes, quando um livro recebe excelentes críticas é porque consegue dialogar com o seu tempo. O que a Trust revela sobre esse momento?

Desde o início, o romance foi pensado como uma história sobre o capital, sobre grandes fortunas e o processo de acumulação dessas grandes fortunas. Nesse sentido, é uma questão profundamente política.

Embora não me interesse fazer uma literatura de denúncia – não é o tipo de livros que leio ou os que quero escrever –, nesta obra há uma preocupação com a desigualdade inerente ao sistema em que vivemos e uma curiosidade sobre essas engrenagens misteriosas que regem a vida do capital.

Mas o assunto é sempre pertinente, mesmo que tenha sido publicado em 1963, 1980 ou 1991.

Trust é um romance sobre grandes fortunas, mas também sobre o debate em torno da verdade?

Sim, não se trata apenas de capital. Este romance fala também da forma sistemática e organizada da misoginia, da exclusão deliberada, da distorção da verdade criada pelo poder, da forma como certas narrativas moldam as nossas vidas e da fronteira ténue entre ficção e realidade.

Bolsa de Valores de Nova York

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Em que momento você decidiu que ia escrever um romance sobre dinheiro?

Não foi um momento preciso, mas um pouco vago, como as coisas costumam ser para mim.

O que me interessava era uma espécie de dissonância, que para mim era muito marcante, entre o que eu imaginava vir com imensa fortuna, quero dizer, o acesso total a certas experiências, pessoas e lugares, e a sensação de isolamento absoluto, paranoia e confinamento.

Esse descompasso entre acesso total e isolamento foi o início dessa novela. Foi aí que eu falei: tem alguma coisa.

Embora não seja um livro de denúncia, você tem um olhar crítico sobre o assunto.

Obviamente interessava-me a dimensão política do assunto, o que era arriscado, porque a última coisa que queria fazer ao escrever um romance crítico sobre essas fabulosas riquezas era acabar deslumbrado com o próprio objeto que pretendia questionar.

Por isso, entrei nesse mundo com muita cautela e com certo grau de medo.

E optou pelo mundo financeiro em vez do produtivo...

Interessava-me que essa imensa fortuna fosse totalmente divorciada de qualquer produção de bens materiais, de mercadorias tangíveis, de serviços concretos. No romance é o dinheiro que gera dinheiro, era isso que me interessava, essa disparidade entre valor social e valor econômico.

Poderia explicar isso?

As pessoas mais bem pagas do mundo contribuem menos materialmente para a economia. E não estou dizendo que as finanças são irrelevantes. Não, acho que eles podem ser uma força muito importante para gerar empregos, melhorar a nossa qualidade de vida. Ou seja, pode ser uma força para o bem. Nem todas as atividades financeiras são mera especulação. Mas há uma desproporção no que essas pessoas ganham em relação ao restante da população.

Hernan Díaz

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Díaz nasceu em Buenos Aires, mas mora em Nova York há 25 anos.

Os Estados Unidos, o país mais rico do mundo, têm algumas das piores taxas de pobreza entre as nações desenvolvidas. Porquê?

A resposta é muito simples. Tem a ver com uma concepção absolutamente mística do livre mercado, uma leitura religiosa de Adam Smith, que ressurge nos anos 1980 com Milton Friedman e a Escola de Chicago.

As ideias que defendem a não intervenção de forma radical instalaram-se que os mercados nunca cometem erros, que o bem das corporações e dos acionistas necessariamente redunda no bem da sociedade e que se os ricos se saem bem, a sociedade em geral também se sairá bem. A ideia de que a riqueza vai transbordar.

Uma visão questionada por muitos outros economistas...

Há inúmeros ganhadores do Nobel que provaram estatisticamente que essas premissas são falsas.

As ideias de que a regulação não é necessária, de que o bem dos acionistas coincide com o bem da população em geral, porque quanto mais ricos, mais ricos eles são, mais beneficiam a sociedade, no final se traduzem em políticas fiscais específicas: cortes de impostos, cortes em obras de infraestrutura, educação.

E isso gera um tremendo círculo vicioso. Por exemplo, você se endivida para estudar ou para conseguir um dente, e é assim que esses números são alimentados. A pobreza é um pesadelo louco e injustificável para uma sociedade tão rica e poderosa como os Estados Unidos.

Qual o papel dos migrantes na construção de grandes fortunas nos Estados Unidos?

Os imigrantes são uma parte fundamental do romance. Já desde a primeira página falo deles de forma totalmente intencional. Apresento este homem potentado da nobreza americana, não como uma pessoa de sangue azul, mas como um imigrante.

Nos Estados Unidos somos todos imigrantes, a menos que você seja um nativo dessas terras, que como na América Latina foram exterminados, excluídos e marginalizados.

A menos que alguém pertença a essas comunidades, somos todos imigrantes, a começar pelos primeiros assentamentos puritanos. O romance fala muito explicitamente sobre como essas diferentes correntes migratórias exercem a mesma discriminação sobre as novas coletividades que sofreram.

Capa do livro

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Em seu romance, ele diz, na voz de um de seusnarradores, que em geral preferimos acreditar que somossujeitos ativos de nossas vitórias, mas apenas objetos passivos de nossas derrotas. Podemos aplicar esta ideia à forma como os grandes bancos operam quando pedem resgates?

Sim, com certeza. Somos todos contra a intervenção do Estado até que aconteça uma tragédia. É como se esses desastres fossem quase meteorológicos: não posso fazer nada com isso.

Agora, se estou bem, é porque sou brilhante, é minha responsabilidade. Grandes operações que geram grandes margens de lucro são vistas pelos bancos como se a responsabilidade fosse só deles, mas se as coisas derem errado, é um ato de Deus, uma tragédia.

Em seu romance aparece o milionário que se arrisca em momentos vítreos graças ao acesso privilegiado à informação. Que lugar tem a informação na construção dessas fortunas?

No centro da intriga financeira do romance está o acesso exclusivo e antecipado à informação. Por sua vez, como criar cronogramas com base nas informações que você tem. Isso é importante na novela.

Existem vários motivos especulares, que são invertidos e invertidos, há cenas que se repetem em diferentes momentos, ou seja, há todos esses jogos ao longo do tempo, que também são uma espécie de reflexo dos jogos ao longo do tempo que ocorrem nas finanças.

Por que você acha que não há uma esquerda forte nos Estados Unidos?

Em parte, porque nas primeiras décadas do século XX houve uma repressão brutal desses grupos onde os italianos ocupavam um papel central, algo que aparece no romance. Muitos deles eram socialistas, comunistas, anarquistas, sindicalistas. Todas essas tentativas de organização do trabalho acabaram sendo esmagadas de forma muito sanguinária. Há muitos exemplos disso ao longo da história.

Você identifica outros elementos?

Também pode ter a ver com um cruzamento muito forte entre religião e política, especialmente a partir de 1950, que ressurgiu fortemente em 1980 com o evangelismo.

A Guerra Fria sempre como pano de fundo, numa época em que a União Soviética era vista, não apenas como um rival, mas como um perigo existencial para os Estados Unidos. Então, qualquer associação com qualquer coisa tangencialmente relacionada ao comunismo era vista como traição. Isso é algo que marcou radicalmente o espectro político neste país.

Nos Estados Unidos, a mera palavra "social" produz terror.