Fundamental contra a ditadura, movimento estudantil da USP reivindica hoje ações de permanência universitária

Fundamental contra a ditadura, movimento estudantil da USP reivindica hoje ações de permanência universitária

Fundamental contra a ditadura, movimento estudantil da USP reivindica hoje ações de permanência universitária

Para instituições como o Diretório Central dos Estudantes da USP e coletivos independentes, a permanência estudantil é a principal causa da luta atual na Universidade

Maria Fernanda Barros

O movimento estudantil da USP, que nas décadas de 1960 e 1970 travou uma batalha histórica contra a ditadura militar, organiza nos dias atuais um novo calendário de lutas, tendo no horizonte universidade e sociedade mais democráticas. Entre as principais reivindicações dos estudantes, estão a ampliação dos auxílios financeiros, o reajuste salarial das bolsas, a retirada da base da Polícia Militar do campus Butantã, as melhorias nas condições habitacionais do Conjunto Residencial da USP (Crusp) e, em nível nacional, a revogação da Reforma do Ensino Médio, enumera Sofia Roche, estudante de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e diretora do Diretório Central dos Estudantes (DCE) Alexandre Vannucchi Leme

Fundado em março de 1976, após uma série de manifestações contra a repressão militar, o DCE é considerado a entidade máxima de representação política estudantil na USP. A atual gestão, eleita em junho do ano passado, é composta pela chapa “É tudo pra ontem”, formada por três organizações: a União da Juventude Comunista (UJC), o Movimento Correnteza e o Coletivo Juntos. Mesmo com o passar dos anos, a instituição ainda mantém o seu inicial propósito de ser voz ativa dos estudantes, afirmam seus gestores. “Em 1964, estávamos pedindo por democracia e para não sermos mortos, e hoje ainda pedimos por isso. Também estamos pedindo por democracia universitária”, afirma Sofia. 

As demandas nos diferentes campi

Sofia Roche, diretora do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da USP - Foto: Arquivo Pessoal

Sofia Roche, diretora do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da USP - Foto: Arquivo pessoal

A entidade, segundo a diretora, configura-se como “uma ferramenta de luta e organização dos estudantes” e assume a tarefa de unir as reivindicações de todos os campi. Os alunos de outras unidades da USP enfrentam problemas comuns aos da capital, afirma Mateus Molina, estudante de Ciências Biológicas da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP). Ele relata que as condições da moradia estudantil e os cortes orçamentários das bolsas são fatores que, do mesmo modo, afetam os estudantes do seu campus. “A política da USP é a política para a Universidade toda, tirando algumas peculiaridades de cada campus, acho que tudo se conecta com a capital. É exatamente a mesma luta”, diz. 

Como uma das demandas específicas de Ribeirão Preto, Mateus aponta a urgência da contratação de mais professores, especialmente nos cursos de Biblioteconomia, Pedagogia e Terapia Ocupacional — reivindicação que, no último ano, culminou em uma ocupação dos estudantes em um bloco da faculdade.  Além disso, os alunos querem mais bibliotecas: atualmente, só a Faculdade de Direito possui uma e, de acordo com Mateus, ela é insuficiente para suprir as necessidades de todos os estudantes.

Na USP em Pirassununga, uma das principais problemáticas é a baixa frota de circulares, que dificulta o deslocamento entre os espaços da faculdade, afirma Isabelle Kosloff, representante do DCE em seu campus. “Do portão de acesso ao prédio central, onde fica localizada a moradia estudantil, o restaurante universitário e parte da administração da faculdade, são aproximadamente sete quilômetros.” Outro fator citado é a necessidade de melhorias no funcionamento do restaurante universitário para garantir segurança alimentar aos estudantes.

Protestos dos estudantes da Esalq por melhorias no restaurante universitário - Foto: Reprodução/Redes sociais

A situação dos bandejões se expande para o campus de Piracicaba, onde os alunos reclamam da sobrecarga das funcionárias do restaurante e a falta de alguns alimentos. Maria Luiza, que atua no movimento estudantil da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), conta que foram realizadas reuniões com a prefeitura do campus para reafirmar a luta pela segurança alimentar dos estudantes. 

O legado da luta estudantil que combateu a ditadura militar

A atuação do movimento estudantil da USP contra a ditadura ficou marcada principalmente por dois episódios nos anos 1960. Um deles é a invasão do Conjunto Residencial da USP (Crusp) em 1967 pela polícia e, em 1968, pelas Forças Armadas – o local havia sido ocupado por estudantes desde 1964 e exercia importante papel na organização dos estudantes da Universidade. Outro é a Batalha da Maria Antonia, em 1968, que foi o confronto entre estudantes da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, que representavam o movimento de resistência à ditadura, e da Universidade Presbiteriana Mackenzie, alinhados ao Comando de Caça aos Comunistas (CCC). A batalha marca a escalada de tensão que culminou no Ato Institucional Número 5 (AI-5). 

A luta pela permanência na Universidade já estava presente dentro do movimento estudantil da USP desde o período da ditadura militar, aponta Camilo Vannuchi, doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e primo de Alexandre Vannucchi Leme, estudante da Universidade que foi morto e torturado em 1973 e nomeia o atual DCE da USP. As decisões do governo impactaram diretamente os estudantes, que lutavam contra a privatização do ensino e reivindicavam bolsas de pesquisas, principalmente na área de Ciências Humanas, explica Camilo.

As mobilizações estudantis eram dificultadas por leis impostas pela ditadura, que restringiam as manifestações políticas dos estudantes. As reuniões organizadas eram “constrangedoramente clandestinas”, diz o pesquisador. Mas essa conjuntura começou a se transformar quando Alexandre Vannucchi Leme foi assassinado. Sua morte, logo no início da volta às aulas, foi inesperada e causou espanto generalizado na Universidade, conta Camilo: “Diferentemente dos outros estudantes que haviam sido assassinados antes dele, o Alexandre ia todos os dias à faculdade, não tinha nome de guerra, não andava armado, não era um guerrilheiro de uma organização”.

Barreira na entrada do Conjunto Residencial da USP (Crusp) em 1968 - Foto: Rolando de Freitas/Agência Estado via CAP-FFLCH

A conjuntura era efervescente: a morte do estudante desencadeou eventos históricos na USP, como o show de Gilberto Gil na Escola Politécnica, em 1973, em que ele cantou Cálice pela primeira vez, canção proibida pela censura. Nesse show, estavam presentes figuras-chave do movimento estudantil que se tornaram diretores da primeira chapa do DCE, como Vera Paiva, atualmente professora do Instituto de Psicologia (IP) da USP. “Eles começam a atividade universitária nesse cenário de tensão: o assassinato, o Gil cantando a música proibida, mais de 25 estudantes presos. Isso faz com que essa mobilização aconteça e haja uma retomada forte do movimento estudantil da época”, afirma o pesquisador.       

Três anos depois, os estudantes reergueram a entidade que até os dias de hoje é a principal instituição política estudantil. O DCE Livre Alexandre Vannucchi Leme nasceu em 1976, após anos de perseguição intensa às manifestações dos alunos. Antes dele, só existia o Conselho de Centros Acadêmicos (CCA), responsável por unificar as entidades de cada curso. 

Jornalista e pesquisador da ECA USP Camilo Vannuchi - Foto: Arquivo pessoal

Concentração em frente à FFCL, na Rua Maria Antonia, durante confronto entre estudantes da USP e do Mackenzie - Foto: Hiroto Yoshioka

Rojões e coquetéis molotov foram usados pelos estudantes durante o confronto na Rua Maria Antonia - Foto: Iconographia

Pessoas vinculadas à USP assassinadas durante a ditadura militar
- Fotos: Reprodução/Comissão da Verdade da USP

Show de Gilberto Gil na Escola Politécnica da USP, em 1973
- Foto: Arquivo

O movimento estudantil na atualidade

Passados os anos, presencia-se uma conjuntura de baixo engajamento dos estudantes da Universidade nas atividades políticas estudantis e, segundo Sofia, reverter esse cenário é o principal desafio da gestão. “Vemos uma dificuldade de massificar assembleias, plenárias e atos”, relata. Ela alega que esse impasse tem sua principal raiz no isolamento social provocado durante os dois anos de pandemia, em que os estudantes ficaram afastados dos campi. 

Ainda assim, Sofia aponta que o movimento estudantil da USP obteve conquistas importantes nos últimos anos. O aumento do auxílio financeiro oferecido pelo Programa de Apoio à Permanência e Formação Estudantil (PAPFE), que passou de R$ 500 para R$ 800 no início deste ano, e o reajuste das bolsas de pesquisa anunciado pelo governo Lula foram algumas delas. 

Ela também cita as recentes mobilizações organizadas pelos estudantes em âmbito nacional, como o Tsunami da Educação em 2019, os atos pelo fim do governo Bolsonaro em 2021 e 2022, e o protesto pela Revogação do Novo Ensino Médio que ocorreu no dia 15 de março deste ano. As perspectivas para o futuro ainda são imprecisas: “Vemos que a luta está sendo cada vez mais afetada em âmbito estadual. Por outro lado, a mudança de governo federal foi de fato revigorante para o movimento estudantil, mas ao mesmo tempo precisamos entender os limites que ele coloca para os estudantes”, diz Sofia.  Segundo ela, o mais importante é que a entidade se esforce ao máximo para mobilizar os estudantes e convocar para a luta.

Bloco da USP em manifestação contra o governo Bolsonaro, na Avenida Paulista em 2022 - Foto: Reprodução/Redes Sociais

Ato de estudantes em SP pela revogação do Novo Ensino Médio em março de 2023 - Foto: Fernando Frazão / Agência Brasil

Para além das entidades: a luta estudantil independente

A atuação independente de estudantes também culminou em efetivas vitórias estudantis, como a retirada da homenagem ao escravocrata Amâncio de Carvalho na Faculdade de Direito (FD) da USP, articulada por coletivos de estudantes negros. 

Assim como a luta por cotas raciais, existente desde a década de 1980 e vitoriosa em 2017, a mobilização não foi organizada pelas instituições estudantis, mas sim por estudantes negros que batalham de forma independente por sua permanência na USP, afirma Valentina Garcia, estudante de Direito e integrante da Coletiva Angela Davis. “Tivemos o mesmo modus operandi da luta por cotas: pessoas negras buscando as mobilizações do movimento negro, de dentro e fora da Universidade”, conta.             

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Valentina Garcia, da Coletiva Angela Davis - Foto: Arquivo pessoal

Segundo Valentina, que também colabora com a Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra no Brasil, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), as principais reivindicações dos movimentos negros independentes são relacionadas à permanência estudantil. As lutas giram em torno de questões que “nos fazem sentir que a Universidade não é para nós”.  A parcela da USP que sente mais dificuldade em permanecer dentro dela é composta de pessoas pretas, indígenas e marginalizadas, afirma a estudante, que expõe a contradição dessa realidade: “Foi a mão de negros e indígenas que construiu cada tijolo dessa Universidade, temos o direito de estudar lá e não é justo que tenhamos menos garantias de nos formar”. 

Ato pela retirada da homenagem a Amâncio de Carvalho, professor da USP que propagou ideais eugenistas - Foto: Arquivo pessoal

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Temos o direito de acessar a faculdade, ter auxílios, moradia, comida, qualidade de graduação. A universidade pública é, em primeiro lugar, do povo. Ela deve servir a quem tem o direito de entrar nela, ou seja, a todo mundo."

 Valentina Garcia, estudante de Direito e integrante da Coletiva Angela Davis

A ação vitoriosa liderada por Valentina e outros participantes do movimento negro representa uma forma de mobilização desvinculada do movimento estudantil tradicional, conta a aluna: “Existem outras formas de mobilizar, de construir lutas que possam deixar a sua quebrada orgulhosa, que possam deixar você orgulhoso de si mesmo”. Ela relata que sente as pautas dos estudantes marginalizados sendo deixadas de lado pelo DCE e os centros acadêmicos, que centram excessivamente sua atenção em disputas de eleições e divergências partidárias. “O movimento estudantil hegemônico está descredibilizado porque as pessoas estão cansadas de verem suas pautas só serem importantes no período das eleições”, aponta. 

Por isso, a luta tocada pelos estudantes que removeram a homenagem a uma figura colonizadora da Universidade foi organizada de forma independente, e a perspectiva de próximas vitórias para os estudantes reside nessa forma de articulação, diz Valentina: “Não queremos ser ouvidos somente em momento de eleição, queremos construir frentes para pensar como atuar antes desses momentos e para além desses momentos. Queremos que as eleições das entidades não sejam o maior momento do movimento estudantil, mas sim as necessidades dos estudantes”.