Coturnos fascistas e a formação do jornalista

A trajetória de Luís Henrique Dias Tavares, notável historiador baiano, em sua década como jornalista na imprensa comunista, no conturbado cenário dos anos 1940 e início dos 1950

Coturnos fascistas e a formação do jornalista

Coturnos fascistas e a formação do jornalista.

 Por Emiliano José

 

A trajetória de Luís Henrique Dias Tavares, notável historiador baiano, em sua década como jornalista na imprensa comunista, no conturbado cenário dos anos 1940 e início dos 1950

Mal chegaram à Praça da Sé em Salvador iniciou-se a confusão.

Repressão violenta.

28 de fevereiro de 1948, um sábado.

Conjuntura nervosa no país: cassação do registro do PCB no ano anterior, dos mandatos dos parlamentares eleitos pelo partido naquele início de ano.

Luís Henrique Dias Tavares saíra no final da tarde da sede da redação do jornal, Ladeira de São Bento, caminhando, ele e outro jornalista, Henrique Lima Santos. Tavares, ainda nem chegado à Universidade. Santos, estudante de Direito.

Passaram pela Rua Chile, caminho pra chegar à Praça da Sé. Coalhada de policiais. Barrados:

– Onde vão?

– Para a Biblioteca – responderam.

– Fazer o quê?

– Temos prova amanhã, vamos estudar – Henriquinho adiantou-se.

Repórteres de O Momento, jornal do Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Tivessem se identificado como jornalistas, e não passariam. Menos ainda se de O Momento. Melhor disfarçar. A biblioteca ficava na Praça Municipal, um pouco antes da Praça da Sé:

– Podem seguir.

Houve uma conversa na redação antes, naquela tarde. Haviam recebido a confirmação: o comício aconteceria, com polícia e tudo.

Diretiva do PCB, ordem de Giocondo Dias, deputado e principal dirigente do partido.

Houve ainda quem relutasse, como o próprio Henrique Lima Santos, a quem todos conheciam como Henriquinho – parece suicídio.

Quintino de Carvalho chegou a dizer besteira fazer esse comício.

José Gorender reagiu: Besteira? É o Dias quem está decidindo, gente! Disciplinado, está cumprindo uma diretiva.  

O mais velho deles, Alberto Vita, secretário de redação do jornal, acende um cigarro, solta a fumaça, e decide: vamos cobrir o comício. E designa Henriquinho e Luís Henrique para a tarefa.

Luís Henrique percebe, ali pelas 20 horas, quando um automóvel estaciona próximo à praça: um Buick marrom.

Dele, desce Giocondo Dias, famoso cabo Dias, comandante militar da insurreição do Rio Grande do Norte, inédita experiência do único Governo Popular Nacional-Revolucionário do país, três dias de duração, novembro de 1935.

A manifestação pública pretendia comemorar a eleição de dois vereadores comunistas para a Câmara de Vereadores e o centenário do Manifesto Comunista.

Dias não aceitava recuar, não obstante a conjuntura desfavorável.

Antes da chegada dele, a polícia já havia prendido Luís Contreiras de Almeida, engenheiro, militante do PCB, responsável pela construção do palanque, o estudante Gilson de Oliveira, do Ginásio da Bahia, e o suplente de vereador, Aloísio Aguiar. Levados para a Secretaria de Segurança Pública, na Praça da Piedade, debaixo de muita porrada

Luís Henrique e Henrique Lima tentam guardar mentalmente tudo. Anotar, em meio àquela praça de guerra, despropósito.

O Buick chegou dirigido pelo dono, comunista e comerciante Raimundo Ferreira Gomes.

Ao descer, Dias é aplaudido pelas pessoas concentradas na Sé, a maioria militantes do partido, cumprindo tarefa arriscada.

Uma comissão de mulheres abriu uma faixa:

“A praça é do povo”.

Várias, quase temerárias, cheias de coragem, ânimo comunista.

Maria de Lourdes Tavares Dias, mulher de Dias.

Escritoras Laura Austregésilo e Lia Corrêa Dutra, do Rio de Janeiro.

E Nair Guedes, Sulamita Tabacof, Maria Lopes de Melo, Maria Brandão, para lembrar as mais destacadas.

Giocondo percebeu a aproximação do delegado Barachísio Lisbôa.

O delegado, num terno de linho branco, queria avisá-lo: a proibição viera da Polícia Federal. Convencê-lo de combinar outra data para a realização do comício.

Dias com sua coragem temerária sequer lhe deu atenção, e sem palanque nem nada começou a discursar.

O jornalista José Maria Rodrigues, também da redação de O Momento, comunista de quatro costados, negro retinto, magro, muito magro, soltou um “Viva Luís Carlos Prestes” na cara do delegado. Convivi com José Maria, mais tarde, no Jornal da Bahia.

Luís Henrique, sujeito pequeno, metro e meio um pouquinho mais de altura, magro, magro, olhando tudo aquilo, pensando na matéria – arriscada, mas prometia.

O delegado, diante da ousadia de José Maria, até ali tentando contemporizar, ordenou o massacre.

Os policiais foram pra cima dos manifestantes sem dó nem piedade, sobretudo dos comunistas mais conhecidos. João Falcão, no livro sobre Giocondo Dias, fala em cerrado tiroteio: polícia de um lado, comunistas de outro. Tenho dúvidas se havia militantes do PCB armados, não obstante Falcão tenha se constituído em memorialista rigoroso.

De repente, as luzes se apagaram.

Breu.

Quando a luz volta, um corpo estendido no chão.

O jovem bancário e estudante de Direito Luiz Garcia, morto. Uma bala na cabeça lhe tirou a vida.

Talvez por engano: parecia-se com Giocondo Dias.

Luís Henrique viu o sangue saindo do ouvido esquerdo de Garcia.

E chorou.

Não, não imaginem tenham poupado o cabo Dias. Luzes acesas, e seus companheiros o encontraram no chão, desfalecido. Massacrado.

A mulher, Lourdes, e mais alguns companheiros, entre os quais o vereador Almir Mattos e Alídio Bonates, o socorreram e o levaram para o Buick, junto com Américo Carvalho, ferido na perna com um tiro.

Américo Carvalho, levado para o Hospital Espanhol.

Dias, acolhido pela militante Nair Guedes, em sua casa na praia do Bogary, na península de Itapagipe. Depois, transferido para o Sanatório Bahia, hospital psiquiátrico, situado no bairro da Lapinha dirigido por amigos. Ali, permaneceu em segurança até planejar a saída da Bahia. Várias outras pessoas foram baleadas ou feridas durante a repressão.

Luís Henrique e Henrique Lima, tensos, certos de terem excelente matéria nas mãos, preocupados com os companheiros do partido a que pertenciam, entraram na Pastelaria Triunfo, na Praça Municipal. Imaginavam escapar. Nada: presos, jogados num camburão. A pauta foi pro brejo.

Iam deitados no chão, os policiais imobilizando-os com suas botas sujas. O trajeto até a Praça da Piedade, onde estava a Secretaria de Segurança Pública, pareceu muito maior a Luís Henrique: aquele quilômetro e meio semelhava a léguas. Pesava 38 quilos, e os coturnos dos policiais militares sobre seu corpo pareciam pesar bem mais.

Não foram os únicos jornalistas presos.

Prenderam ainda Altamirando Marques, também de O Momento, e o corajoso José Maria Rodrigues, cujo estado era de preocupar, tal o espancamento sofrido – urrava como um animal ferido ao chegar à Secretaria de Segurança. Houve muitas outras prisões de dirigentes do partido.

Um corredor polonês como saudação, muita porrada à entrada da Secretaria de Segurança Pública.

Os jornalistas receberam vassouras e baldes no dia seguinte, e tiveram de fazer a faxina da Secretaria. Ao pequeno Luís Henrique, deram a incumbência de limpar fétidas latrinas – ele, valente, ferido em sua dignidade, recusou. Apanhou novamente.

Contou-me o filho, Luís Guilherme Pontes Tavares: foi solto por pressão do primo dele, Nestor Duarte, famoso professor e então secretário de Agricultura do governo Octávio Mangabeira – ou você o solta ou me demito. Tinha autoridade. Luís Henrique foi solto três dias depois, e de cambulhada foram libertados também os outros jornalistas, exceção de José Maria Rodrigues.

Dias depois, corpo ainda em frangalhos, alma conturbada por tantas humilhações, faz o vestibular para Geografia e História na Universidade Federal da Bahia. Na locomoção, tal seu estado, seguiu amparado pelas professoras Sulamita Tabacof e Celeste Amaral – pegaram-no em casa para garantir fizesse o vestibular. Terminará o curso em 1951.

Com 22 anos naquele 1948, se aproximara dos comunistas no iniciozinho da década. Havia demonstrado sua inclinação às letras no Ginásio Clemente Caldas, em Nazaré das Farinhas. No jornalzinho Parlapatão, fundado por ele e alguns companheiros, publica texto de ficção e critica a situação agrária do município. Primeiro treino jornalístico.

Os comunistas, encontrou-os na cultura.

O Teatro dos Estudantes da Bahia (TEB) era expressão de uma frente de luta contra o fascismo, e isso o entusiasmou. E houve o encontro com Herón de Alencar. Era ainda estudante secundarista, já em Salvador. Deixara para trás o Clemente Caldas, passara pelo Maristas, Ipiranga, e vai concluir o colegial no Colégio Central, ou Ginásio da Bahia.

Herón de Alencar foi seu guia. Respeitado militante do PCB, líder do TEB, Alencar o iniciou nas leituras marxistas. Tavares o definirá como de fascinante personalidade, enorme carisma. O encontro se deu ali pelo final dos anos 1942, ele nos seus verdes 16 anos.

A partir daí, cresce a consciência antifascista e contra o Estado Novo. Fundam, ele, Ariovaldo Matos, Boris Tabacof e Darwin Brandão, a revista Evolução, publicação antifascista – efêmeros três números: proibida. Ia firmando suas convicções comunistas.

Passa à militância na União dos Estudantes da Bahia, ao lado de jovens comunistas consagrados, como Mário Alves e João Batista de Lima e Silva. Por esses caminhos, chegou ao O Momento, no qual começou em 1945, desde o segundo número.

Arrisco dizer: foi sua grande escola. Deu-lhe régua e compasso para com o passar do tempo, numa esquina da vida, iniciar a caminhada para tornar-se talvez o maior historiador baiano, condição a ser tratada em outro momento.

Ingressou na revisão em 1945, logo alçado a repórter. Elege o maior mestre dessa fase jornalística: João Batista de Lima e Silva, secretário de redação quando ele chegou à redação de O Momento, conhecido pela militância comunista.

Grande jornalista, um dos principais opositores à tentativa de silenciamento do debate por parte da direção do PCB quando da revelação dos crimes de Stálin, em 1956, divulgação do Relatório Kruschev. O artigo de Lima e Silva “Não se pode calar uma discussão que está em todas as cabeças” foi o estopim para rumoroso debate e muitas dissensões. “Inesquecível e saudoso amigo” – lembrança de Luís Henrique, em 1984, numa entrevista a Sônia Serra, a evidenciar quanto ele o marcou. Não deixa de lembrar, também, Alberto Vita, “inesquecível exemplo de amigo e jornalista”.

Formado ali, naquele jornal, na imprensa comunista.

Lado a lado com notáveis jornalistas, todos nascidos naquela escola.

Não tem exagero: uma escola.

Por ali, em meio a um cenário de perseguições, de remunerações exíguas e incertas, de Guerra Fria, anticomunismo, passaram Mário Alves, Alberto Vita, Almir Matos, Alberto Passos Guimarães, Jacob Gorender, José Gorender, Quintino de Carvalho, Ariovaldo Matos, Newton Sobral, Fernando Rocha.

João Falcão surgira antes, dirigindo a revista Seiva, nascida em 1938, na resistência ao Estado Novo, de inestimável contribuição ao pensamento político e intelectual, ampla politicamente e sob inspiração do PCB, agrupando nomes conhecidos.  Entre tais nomes, lembre-se os de Jorge Amado, Nestor Duarte, Rui Facó, Sodré Viana, Leôncio Basbaum, Joel Silveira, Samuel Wainer, entre tantos.

O Estado Novo resolveu fechá-la em julho de 1943, depois da publicação de dezoito números, média de cinquenta páginas cada. João Falcão, o irmão Wilson Falcão e o secretário da revista, Jacob Gorender, foram presos e processados pelo Tribunal de Segurança Nacional.

Ressurgirá sete anos depois, em novembro de 1950. Mesma identidade, mesmos objetivos, acrescentado apenas o subtítulo Mensário de Cultura Nacional e Popular. Nessa nova fase, Getúlio Vargas eleito, a revista expõe-se mais – define-se como parte integrante das lutas de libertação nacional e afirma: “a vida de Seiva será a do povo, a de suas lutas e de suas vitórias”.

E volta à cena o nosso Luís Henrique Dias Tavares. A experiência, a competência jornalística, a dedicação dele ao PCB o levaram à condição de redator-chefe de Seiva nessa nova fase. Ao lado dele, Clóvis Moura, secretário de redação. Notáveis redatores. Lembrar alguns: Walter da Silveira, James Amado, Herón de Alencar, Jacinta Passos Amado, Quintino de Carvalho, Ariovaldo Matos, Camilo de Jesus Lima. Circulou até junho de 1952, e editou mais cinco números. E ele combinava atuação na revista e em O Momento.

Chegara a hora de parar. Casamento à vista. Novas responsabilidades. Remuneração de O Momento, exígua e instável, dura vida a de jornalistas comunistas. Cumpria pautas cobrindo grandes percursos a pé pela Salvador antiga, nada de caixinhas como os jornalistas dos demais jornais desfrutavam. Assumir a família.

Começou a dar aula, e tem início outra trajetória – a do grande historiador. Sem rompimento com aquele passado, onde fez amizades, e do qual guardava gratas recordações. Mas, não mais o militante comunista de tempo integral, como naqueles últimos dez anos. Nunca renegou seu passado, jamais atacou seus velhos camaradas.

Uma vez para viajar aos EUA queriam um documento assinado por ele, declarando que não era militante do Partido Comunista, que era um liberal-democrata no exercício de sua profissão de jornalista. Fizesse uma carta ao O Globo com esses dizeres, e tudo se resolveria.  Respondeu:

– Não escreverei essa carta. A minha condição é de ex-militante do Partido Comunista. Foi decisão minha deixar o partido.

– O senhor recusa? – perguntou o funcionário panamenho da embaixada americana.

– Recuso – foi a resposta, incisiva.

Dignidade de quem preserva amizades e a herança intelectual advinda da convivência com os comunistas durante uma década.

Nota do autor: persigo aqui a trajetória de Luís Henrique Dias Tavares, notável historiador baiano, em sua década como jornalista na imprensa comunista, no conturbado cenário dos anos 1940 e início dos 1950. E o faço impulsionado pela minha chegada à Academia de Letras da Bahia, empossado em março deste ano de 2021, na cadeira número 1, cujo antecessor foi exatamente o professor Luís Henrique. O historiador surgirá em outro artigo, inspirado sempre no meu discurso de posse na ALB.

Referências

CESAR, Elieser. Contreiras, Camarada Engenheiro: uma história de luta e coerência. Salvador: (s.n.), 2009.

FALCÃO, João. Giocondo Dias, a Vida de um Revolucionário: Meio século de história política do Brasil. Rio de Janeiro: Agir, 1993.

FALCÃO, João. “Comunicação sobre a revista Seiva. Revista da Academia de Letras da Bahia, nº 39, maio-1993, Salvador. Academia de Letras da Bahia, p. 251-259.

FALCÃO, João. Valeu a Pena – Desafios de minha vida. Salvador: FAP – Ponto & Vírgula, 2009.

FALCÃO, João. O Partido Comunista Que Eu Conheci – 20 anos de clandestinidade). Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1988.

SAMPAIO, Consuelo Novais. “O Mestre Luís Henrique”. In: TAVARES, Luís Henrique Dias. Nas Margens, no Leito Seco.  Salvador: Edufba, 2013, p. 87-105.

SERRA, Sônia. O Momento: História de um jornal militante. Dissertação apresentada à Universidade Federal da Bahia como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Ciências Sociais (área de concentração em História Social). Salvador, Bahia, 1987.

TAVARES, Luís Henrique Dias. Entrevista a Sônia Serra, sobre jornal O Momento, 30-8-1984.

TAVARES, Luís Henrique Dias. “O Comício”. In: Almoço posto na mesa. Salvador: Empresa Gráfica da Bahia, 1990, p. 55-62.

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (2 volumes)O Cão Morde a Noite, entre outros