A reconstrução da Ucrânia

A reconstrução da Ucrânia

A reconstrução da Ucrânia

 


Conferência para a Reconstrução da Ucrânia, 2023 (foto publicada no site oficial da Conferência, s/a)

Conferência para a Reconstrução da Ucrânia realizada em 2023 (CRU-23), em Londres, terminou na passada sexta-feira. Veio na continuação de um ciclo de encontros iniciado em 2017.


 

A CRU de Londres visava desenvolver os compromissos assumidos um ano antes em Lugano e o trabalho da Plataforma Multilateral de Doadores para a Ucrânia [Multi-Agency Donor Coordination Platform for Ukraine]. Contou com a participação de centenas de dirigentes de grandes empresas e governos. A conferência de Lugano esteve na base do planeamento da invasão de capital estrangeiro e multinacionais na Ucrânia após o fim da guerra.

No entanto, como a guerra se arrasta, cada vez com mais milhares a morrerem em combate e infraestruturas dizimadas pelos mísseis russos (e agora também com zonas do território russo a serem atingidas), os governos ocidentais e as multinacionais pretendem acelerar a reconstrução da Ucrânia, fazendo dela um baluarte da UE e da OTAN mesmo enquanto dura a guerra.

A UE veio anunciar um investimento de 50 mil milhões de dólares para ajuda à Ucrânia. A omnipresente companhia de capitais privados Blackrock e o gigante da banca norte-americana JP Morgan alinharam na angariação de capitais privados para a reconstrução da Ucrânia. Estão a «oferecer» os seus serviços, a troco de serem os primeiros a beneficiar de todas as oportunidades de investimento. «O fundo está a ser montado de forma a dar também aos sectores público e privado a oportunidade de investirem em projectos e sectores específicos», disse Stefan Weiler, director do departamento da JPMorgan para os mercados de capitais na Europa Central, Médio Oriente e África. «Haverá diversos sectores de fundos classificados como prioritários para a Ucrânia. O objectivo é maximizar a participação de capitais». Os bancos têm como objectivo obter dinheiro público (ou seja, vindo dos governos) em condições favoráveis, para absorver as perdas iniciais, e, em seguida, obter capital privado para investir nos investimentos rentáveis.

O Banco Mundial calcula o custo da recuperção e reconstrução da Ucrânia após um ano de guerra com a Rússia em 411 mil milhões de dólares, ou seja, o dobro do PIB ucraniano antes da guerra. Mas este cálculo foi feito antes do início da contra-ofensiva de Kiev e da desastrosa destruição da barragem de Kakhova. Como a Rússia continua a destruir infraestruturas, os custo finais podem ultrapassar um bilião de dólares ($1tn).

O objectivo do governo ucraniano, da UE, do governo norte-americano, das instituições multilaterais e das instituições financeiras norte-americanas encarregadas da angariação de fundos para a reconstrução consiste em fazer da economia ucraniana uma zona económica especial, com dinheiros públicos a cobrirem quaisquer perdas potenciais para o capital privado. Além disso a Ucrânia será «liberta» de sindicatos, de taxas fiscais elevadas para as empresas e de todos os obstáculos ao investimento lucrativo dos capitais ocidentais, em aliança com a antiga oligarquia icraniana. Nas palavras do Financial Times: «O financiamento proveniente do sector público tem de ser o esteio do esforço de reconstrução. Mas como se espera que o sector privado desempenhe um papel central não só nas tarefas mas também na angariação dos respectivos fundos, a mobilização do investimento privado atinge uma escala com poucos precedentes.»

Quase 500 negócios globais com sede em 42 países valem mais de $5,2 biliões e 21 sectores já assinaram o Ukraine Business Compact [Pacto Empresarial para a Ucrânia] e comprometeram-se a apoiar a recuperação e reconstrução da Ucrânia. Como disse o Governo ucraniano na CRU-23, «os parceiros internacionais, entre o momento actual e a CRU-24 a realizar na Alemanha, irão trabalhar para lançar novas iniciativas entre empresas, a fim de criar e desenvolver parcerias entre o sector privado e a Ucrânia».

As empresas estrangeiras estão a pedir aos governos envolvidos garantias de risco para os seus projectos (até porque a guerra continua). Além disso, a ajuda externa e os investimentos dependem de condições leoninas, pretensamente para pôr fim à corrupção crónica que já grassava antes da guerra. Infelizmente, os casos de corrupção não param. Por exemplo, o Gabinete Nacional Anticorrupção da Ucrânia (GNAU) e o Gabinete do Procurador Especializado em Anticorrupção (GPEA) detectaram «corrupção em grande escala no Supremo Tribunal, em particular um esquema para obter vantagens indevidas por parte dos dirigentes e dos juízes do Supremo Tribunal», tendo o presidente do Supremo Tribunal recebido um suborno de 2,7 milhões de dólares.

O Governo da Ucrânia pretende criar uma economia capitalista de mercado livre dentro da UE, respaldada no armamento da NATO. Não está previsto investimento público, excepto no caso de «grandes perdas»; será o reinado absoluto das empresas capitalistas; e os interesses dos trabalhadores, sociais e dos serviços públicos serão relegados.

Nas palavras de um comentador ucraniano: «O partido de Zelensky fez aprovar leis que destruíram efectivamente o direito à negociação colectiva, bem como outras protecções laborais na Ucrânia. Também implementou reformas na lei das pensões, anunciadas como uma “descomunização” do sistema de segurança social, mas que, na realidade, se traduzem em cortes radicais. Ambos os planos foram redigidos muito antes da invasão russa, mas o estado de emergência do tempo de guerra ajudou muito a capacidade do partido para implementar a sua agenda – cuja animosidade anti-laboral até entrou em conflito com a normalmente moderada Organização Internacional do Trabalho. Em vez de direitos laborais e bem-estar social, Zelensky e os seus conselheiros promovem “tribunais de smartphones” (uma joint venture com a Amazon) e outras parcerias público-privadas. Com efeito, vêem a Ucrânia do pós-guerra como uma gigantesca zona económica especial à margem da Europa, onde a fraca protecção dos trabalhadores e a ausência de barreiras tarifárias incentivarão o investimento das multinacionais europeias.»

É muito significativo que, durante a guerra, o Governo ucraniano se tenha assumido o controlo de um vasto leque de grandes empresas pertencentes aos oligarcas ucranianos. É muito provável que essas empresas venham a ser vendidas a preço de saldo a companhias estrangeiras, com muitos militares a receberem uma parte.

Todos os partidos políticos de esquerda foram banidos, com base em infundadas acusações de colaboração com a Rússia. As instituições do Estado social herdadas da era soviética desapareceram. Estava prevista uma eleição geral em outubro. Não se sabe se ocorrerá, mas ainda que seja feita, é muito duvidoso que qualquer oposição à actual legislação e à política económica do Governo possa participar.

Outro desafio perante o qual os Ucranianos se vêem confrontados no que diz respeito à reconstrução: grande parte desta ajuda ocidental consiste em empréstimos, e não em doações, de modo que as futuras gerações ficarão sujeitas ao jugo da dívida. A maior parte dos empréstimos é de longo prazo, isto é, 25 anos (antes da guerra o prazo médio era de 15 anos). E a Ucrânia não terá de reembolsar a sua dívida antes de 2033, segundo o Conselho Europeu. É um período de graça sem precedentes. Mas, apesar dos juros bonificados, o serviço da dívida à UE sairá caro. Para resolver este problema, Bruxelas inventou um mecanismo de «juros subsidiados»: os juros serão pagos pelos países da UE, em vez da Ucrânia. O «juro subsidiado» já foi aplicado aos empréstimos à Ucrânia em 2022. Contudo, em 2023, nova faceta foi acrescentada às condições de empréstimo de €18 mil milhões da UE: o subsídio só será prestado, na condição de «terem sido cumpridos os pré-requisitos políticos». De modo que, se a Ucrânia pisar o risco – por exemplo, adoptando direitos do trabalho, aumentando as despesas sociais ou recusando privatizar os bens estatais –, perde o direito aos empréstimos sem juros. Nesse caso, de acordo com o memorandum, a UE suspende os «juros subsidiados».

A CRU-23 prepara um mercado económico livre que, nas palavras do próprio Governo da Ucrânia, «confirma o seu empenho em cumprir as condições do programa do FMI, incluindo a adopção de reformas capazes de proporcionar uma competição justa e aberta, a redução de barreiras alfandegárias e a garantia de práticas judiciais justas e reguladas». O novo Fundo para o desenvolvimento da Ucrânia [Ukraine Development Fund (UDF)], que será gerido pela BlackRock e pelo JPMorgan, «concentrar-se-á na mobilização adicional de capitais privados e na sua canalização para projectos financiáveis; oferecerá financiamentos flexíveis e vocacionados para colmatar as lacunas de financiamento estrutural ou na fase inicial e reduzirá o risco dos capitais privados». O UDF visa «ajudar a abordar um universo de mais de US $ 50 bilhões de capitais privados direccionados pelo UDF e outras instituições que investem na Ucrânia em cinco sectores económicos principais, incluindo: tecnologia, logística e corredores de transporte, energia verde, recursos naturais, reconstrução de infraestruturas, digitalização, agricultura e alimentos, saúde e produtos farmacêuticos».

Há ricas colheitas à vista, principalmente na agricultura. A área de terras aráveis ucranianas adequadas às gramíneas é superior à área total da Itália! Se essas terras puderem ser subtraídas das mãos dos pequenos agricultores ucranianos e dos oligarcas locais e vendida às multinacionais ocidentais, os lucros da produção alimentar serão imensos. Como disse o Financial Times: «já existem empresas prontas a entrar no mercado – especialmente nos sectores da construção civil e respectivos materiais, processamento de alimentos e logística. Um ministro ucraniano disse-me que estas empresas estavam prontas a avançar, assim que os riscos inerentes à guerra baixassem. O Governo planeia a criação de um fundo público de desenvolvimento que atrairia dinheiro dos investidores privados, a troco da protecção de uma participação pública que absorveria as perdas nos investimentos comerciais».

A Ucrânia poderia transformar-se num centro de «transformação verde», graças às excelentes condições do país para fornecer energia sem carbono, metalurgia verde e hidrogénio. Poderia tornar-se líder mundial na tecnologia digital para promover a transparência e a boa gestão económica. A CRU viu o lançamento do «Dream», um sistema digital capaz de seguir todos os projectos de reconstrução da Ucrânia, desde a fase de concepção até à sua efectivação, de modo que os investidores de todo o mundo pudessem seguir de quem é o dinheiro que está a ser gasto, como e onde. E claro está, continuará a ser um consumidor de equipamento militar, para deleite da indústria norte-americana de armamento e seus intermediários.

Poder-se-ia argumentar que a invasão lançada por Putin empurrou o povo ucraniano para as mãos de um governo apostado no mercado livre [entenda-se: livre de restrições, regulações, impostos e medidas proteccionistas – N. do T.], nas medidas anti-sindicais que permitirão aos capitais ocidentais apoderar-se dos bens ucranianos e explorar a sua dizimada força de trabalho. Mas talvez isso fosse inevitável – do ponto de vista das oligarquias pró-russas e pró-ocidentais de antes da guerra –, daqui em diante em proveito exclusivo dos capitais ocidentais.