A lição que vem da Argentina. Por Ana Prestes
A história da penalização do aborto na Argentina começou em 1886 com a sanção do primeiro Código Penal. Nele, a prática era penalizada em qualquer hipótese. Em 1903, com a reforma do código, há um pequeno avanço, os casos de tentativa de aborto não seriam mais punidos.
*A lição que vem da Argentina .
Ana Prestes
A história da penalização do aborto na Argentina começou em 1886 com a sanção do primeiro Código Penal. Nele, a prática era penalizada em qualquer hipótese. Em 1903, com a reforma do código, há um pequeno avanço, os casos de tentativa de aborto não seriam mais punidos. A partir de 1921, uma segunda reforma do código passa a estabelecer que o aborto não seria penalizado no caso de se fazer necessário para evitar risco de vida à gestante, também quando a gravidez fosse fruto de estupro ou violação de vulnerável, como mulheres com adoecimento mental. Em 1937, se apresentou o primeiro projeto parlamentar para reverter a criminalização e buscar a garantia do Estado para o direito de interromper a gravidez. Desde então, inúmeras vezes projetos para a legalização chegaram ao Congresso, sendo que em 2018 foi a primeira vez que um projeto chegou a ser votado nas duas casas parlamentares, Câmara e Senado, e por apenas sete votos não foi aprovado.
O projeto mais semelhante ao aprovado hoje, 30 de dezembro de 2020, surgiu em 2007, fruto da articulação da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto. Nele, era apresentada a proposta de despenalização e legalização do aborto por decisão da mulher até as doze semanas de gestação. O dia escolhido, 27 de maio, era também o Dia Internacional da Ação pela Saúde das Mulheres. Em 2019, ano eleitoral e doze anos após a primeira apresentação do projeto, a Campanha apresentava sua oitava versão do projeto. Os candidatos foram obrigados a se posicionar, pois após a votação histórica de 2018 e com uma estreita derrota do projeto por sete votos no Senado, após ter sido aprovado na Câmara, o tema estava na boca do povo. Ainda candidato, o presidente Alberto Fernández foi o primeiro na história argentina a se comprometer a enviar ao parlamento, logo no início do seu mandato, um projeto de lei de despenalização e legalização da interrupção voluntária da gravidez. Eleito, era a primeira vez na história do país sul-americano que um presidente se posicionava a favor do aborto. Sua abordagem foi principalmente a de localizar o tema dentro dos debates sobre saúde pública e direitos humanos.
O ano de 2020 começou com um gigante pañuelazo, que é o nome que se deu às grandes marchas com o lenço verde desde o início dos anos 2000 e que virou marca da Campanha, no dia 19 de Fevereiro – Dia de Ação Verde pelo Direito ao Aborto. Logo vieram também as atividades do 8 de março e era grande a expectativa de que o projeto entraria no Congresso já em março, no início do ano legislativo argentino. O presidente Fernández chegou a dizer no dia de abertura dos trabalhos do Congresso que em dez dias enviaria o projeto. Mas havia uma pandemia no meio do caminho. Todas as atenções do país e do mundo se voltaram para os cuidados com a prevenção e atenção à saúde dos infectados pelo novo coronavírus que tão fortemente impactou a vida em todo planeta em 2020. Somente em setembro, no dia 28, Dia de Luta pela Descriminalização e Legalização do Aborto na América Latina e Caribe, é que o presidente Fernández se comprometeu uma vez mais a atuar pela legalização do aborto no país. Os meses entre março e setembro não foram, no entanto, de descanso para as inúmeras militantes da causa no país. Se há algo que elas têm deixado como legado nessa última década e meia é a persistir e inovar nos caminhos da luta. Incorporaram-se às comissões criadas para o aperfeiçoamento do projeto a ser apresentado pelo executivo. Fizeram muita política conversando com cada parlamentar. Mantiveram as bases ativas nos bairros, nas cidades, nas províncias e as assembleias nacionais operando.
Fruto desse engajamento, muita política e mobilização, nasceu um projeto melhor do que o votado em 2018. Com menos arestas, mais amplo, inclusivo e difícil de ser combatido principalmente pela oposição fundamentalista religiosa. Com destaque para a conjugação com projeto 1000 dias, que garante assistência plena do Estado às gestantes de baixa renda, do pré-natal até os 3 anos da criança, fundamental para evitar que a interrupção da gravidez se dê por falta de perspectiva de sobrevivência econômica. Outro tema aperfeiçoado foi o do tratamento dispensado aos casos de “objeção de consciência” quando o médico se recusa a realizar o aborto por alegar ser contra seus princípios ou religião. Nesses casos, o profissional poderá transferir a paciente para um colega, desde que a pessoa gestante não esteja correndo risco de vida.
Em resumo, a Lei de Interrupção Voluntária da Gravidez despenaliza e legaliza o aborto que seja solicitado pela gestante que tenha a partir de 16 anos e quando realizado dentro das primeiras 14 semanas de gestação. Fora desse prazo, somente em casos de perigo de vida ou da saúde integral da gestante. A rede de saúde pública estará preparada para receber estas mulheres e executar o procedimento em até 10 dias após o pedido. O aborto passa a ser seguro, legal e gratuito. Estão abarcadas as mulheres e pessoas de outras identidades de gênero com capacidade de gerar vida. Está garantida a atenção pós-aborto, também pelo sistema de saúde pública. No caso de menores de 13 anos, deverá haver consentimento e acompanhamento de pelo menos um dos pais ou representante legal. Adolescentes de 13 a 16 deverão estar acompanhadas. Está garantido o direito do profissional de saúde à objeção de consciência. Não será permitido alegar objeção de consciência na atenção sanitária pós-aborto. O Estado fica com a responsabilidade de implementar a lei 26.150 de Educação Sexual Integral, assim como estabelecer políticas ativas de promoção e fortalecimento da saúde sexual e reprodutiva de toda a população.
Para mim, que venho acompanhando essa luta há tantos anos, tanto por ser internacionalista como feminista, fica a lição de que elas, as mulheres argentinas, tiveram muita sabedoria nessa construção. Não há como olhar para o movimento e não perceber que ele é coletivo. As manifestações parecem as mesmas, na narrativa, na estética, na pluralidade, na mistura de idades, cores e proveniências de classe, seja em Rosário, Córdoba, B. Aires, Jujuy... não se percebe titularidade individual e mesmo organizativa que tenha sobressaído, embora haja discordâncias, debates, consensos suados. O que se vê é um corpo de constituição social que se move sempre em frente. Ergue-se rapidamente após as derrotas e segue. E faz política! Para a votação de 2020, conjugou o projeto do aborto com o projeto dos 1000 dias e abriu possibilidade para a objeção de consciência de médicos contrários ao procedimento. Soube ceder para avançar. Soube persistir, ser resiliente, alegre e de luta em tempos sombrios de pandemia. Como elas próprias dizem, “nossas avós nos garantiram o direito ao voto, nossas mães ao divórcio, e nós deixamos para nossas filhas o direito de decidir”.