Um ano do 8 de janeiro: balanços e consequências

Um ano do 8 de janeiro: balanços e consequências

ATAQUE À DEMOCRACIA

Um ano do 8 de janeiro: balanços e consequências

Há um ano, golpistas invadiram e vandalizaram as sedes dos Três Poderes. Hoje, 66 deles permanecem presos

SÃO PAULO

s

atos golpistas do 8 de janeiro
Prédio do STF depredado após atos golpistas do dia 8 de janeiro. Crédito: Fellipe Sampaio/SCO/STF

Depois que hordas de golpistas, apoiadores de Jair Bolsonaro (PL), invadiram os prédios da Praça dos Três Poderes no dia 8 de janeiro de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva telefonou a Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). “Caralho, Alexandre, tá todo mundo no exterior. Você tem que fazer alguma coisa.” Naquele dia, apenas Rosa Weber, então presidente da Corte, e Luís Roberto Barroso, na ocasião seu vice, estavam na capital federal. “O que acha de decretar intervenção?”, perguntou Lula no mesmo telefonema. “Presidente, o senhor já falou com a ministra Rosa?”.

O teor da ligação, revelada no livro O Tribunal: Como o Supremo se uniu ante a ameaça autoritária, escrito pelos jornalistas Felipe Recondo, sócio-fundador e diretor de conteúdo do JOTA, e Luiz Weber, diretor de Jornalismo do SBT em Brasília, demonstra o novo modo de agir da Corte depois de ser, por mais de 4 anos, alvo de ataques antidemocráticos que culminaram na invasão e na depredação da Corte. O tribunal, composto por muito tempo por “11 ilhas incomunicáveis”, na metáfora de Sepúlveda Pertence, estava unido em defesa do estado democrático de direito. E os ministros decidiram que naquele momento apenas a presidente do STF falaria em nome da Corte, protocolo que havia décadas não era seguido. A reação do STF foi dura.

Um ano após o 8 de janeiro de 2023, 66 dos investigados que participaram ou incitaram os atos permanecem presos, segundo o último balanço divulgado pelo gabinete do ministro Alexandre de Moraes, relator das ações penais, que tramitam no STF.

 

À época da ocorrência dos ataques, cerca de 2.151 pessoas foram detidas em flagrante. Fazem parte desse grupo tanto aqueles que estavam presentes durante os ataques às sedes dos Três Poderes quanto os que estavam em acampamentos em frente ao quartel do Exército, também em Brasília. O número de denúncias feitas pela Procuradoria-Geral da República (PGR) de pessoas envolvidas no 8 de janeiro chegou a 1.412, dos quais 1.156 são acusados de incitar os ataques, 248 por executá-los e 8 agentes públicos por terem se omitido. Desse total, 1.354 denúncias foram aceitas pelo STF e 30 réus já foram condenados a penas que variam de 3 a 17 anos de prisão.

Em agosto, Moraes suspendeu por 120 dias a tramitação de 1.113 ações penais para que a PGR avalie a possibilidade de negociar Acordo de Não Persecução Penal (ANPP). São os casos dos que estavam acampados, incitaram a tentativa de golpe, mas não participaram ativamente dos atos. Em dezembro, haviam sido homologados 38 acordos. Além de confessar os crimes e pagar uma multa, os réus se comprometeram, entre outros pontos, a prestar serviços à comunidade, a não cometer delitos semelhantes e a participar de um curso sobre Democracia, Estado de Direito e Golpe de Estado.

As sedes dos Três Poderes ficaram destruídas. No plenário do STF, as cadeiras desenhadas pelo arquiteto polonês Jorge Zalszupin foram arrancadas, a toga do ministro Alexandre de Moraes foi roubada e um homem chegou a defecar sob um móvel da Corte. No Planalto, um relógio francês do século XVII foi jogado no chão, o quadro As Mulatas, de Di Cavalcanti, foi rasgado em sete lugares diferentes e a escultura de bronze O Flautista, de Bruno Giorgi, ficou completamente destruída. 

No Congresso, móveis do século 19 foram depredados, a escultura Bailarina, do artista plástico Victor Brecheret, foi jogada no chão e uma tapeçaria de Burle Marx foi urinada e rasgada. Os danos causados pelos atos de vandalismo foram avaliados em mais de R$ 20 milhões, segundo o relatório do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Os réus são acusados de ter cometido os crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, associação criminosa armada, dano qualificado e deterioração do patrimônio tombado. 

Como foi o 8 de janeiro de 2023

Os atos golpistas começaram pouco antes das 15h daquele domingo. Já fazia mais de um mês que golpistas estavam acampados em frente ao QG do Exército em diversas capitais do país. Em Brasília, o acampamento reuniu pessoas de diferentes regiões do país. Próximo àquele domingo, mais de cem ônibus com apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro desembarcaram na capital para um ato contra o resultado das eleições. 

Por volta das 13h, eles deixaram o acampamento andando em direção ao Congresso Nacional escoltados pela Polícia Militar. Lá, após percorrer cerca de 8km, por volta das 15h, eles romperam a barreira da polícia e invadiram o espelho d’água da sede do Legislativo e entraram no prédio. Em seguida, invadiram o Planalto e depois o STF. Em quase cinco horas, depredaram o que encontraram pela frente sem encontrar resistência o suficiente das forças de segurança. As imagens foram transmitidas pelas emissoras de televisão, as quais as autoridades assistiram sem ter o que fazer. 

Próximo às 17h, a Cavalaria da PM chegou à Praça dos Três Poderes, mas não conseguiu conter os golpistas. Só depois das 18h que os vândalos começaram a se dispersar. Apenas às 20h os prédios foram completamente esvaziados e as cenas de destruição cessaram. 

A partir do momento em que as sedes dos Três Poderes foram invadidas, as principais autoridades do país se mobilizaram para conter os vândalos e preservar a democracia no país. 

Naquela tarde, ao ver o Supremo ser invadido pela televisão, a ministra Rosa Weber ligou para o então ministro da Justiça, Flávio Dino, e em seguida para o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB-DF). Embora a mobilização tenha sido publicamente convocada durante a semana, a segurança do DF não foi reforçada. Além disso, o secretário de Segurança do DF, o ex-ministro bolsonarista Anderson Torres estava de férias nos Estados Unidos, onde estava o ex-presidente Jair Bolsonaro. 

Como os Poderes reagiram aos ataques

A primeira reação prática aos atentados à praça dos Três Poderes veio do presidente da República. Ao fim do dia, Lula assinou um decreto de intervenção federal da segurança pública em Brasília. “Achamos que houve falta de segurança. Queria dizer para vocês que todas as pessoas que fizeram isso serão encontradas e punidas. Eles vão perceber que a democracia garante o direito de liberdade, de livre comunicação e expressão, mas vão exigir que as pessoas respeitem as instituições criadas para fortalecer a democracia”, justificou o presidente. 

Mais tarde, a Advocacia-Geral da União (AGU) protocolou no STF uma petição em que requereu uma série de medidas judiciais em resposta aos atos golpistas na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Horas depois, o ministro Alexandre de Moraes afastou o governador Ibaneis Rocha por 90 dias do cargo.

Um dia após os ataques, na segunda-feira (9/1), os líderes dos Três Poderes emitiram uma nota conjunta em defesa da democracia após uma reunião entre o presidente Lula; o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP); o presidente do Senado em exercício, Veneziano Vital do Rêgo (MDB); e a presidente do STF, Rosa Weber. Na nota, os líderes afirmaram estar ”unidos para que providências institucionais fossem tomadas, nos termos das leis brasileiras”.

No dia 10 de janeiro, Moraes decretou a prisão do ex-ministro Anderson Torres e a do ex-comandante da Polícia Militar do DF coronel Fábio Augusto Vieira, responsável pela segurança no dia dos ataques. “Absolutamente todos serão responsabilizados civil, política e criminalmente pelos atos atentatórios à democracia, ao Estado de Direito e às instituições, inclusive pela dolosa conivência – por ação ou omissão – motivada pela ideologia, dinheiro, fraqueza, covardia, ignorância, má-fé ou mau-caratismo”, explicou Moraes.

Prisões e julgamentos dos investigados

O processo de responsabilização dos acusados de incitar e participar dos atos segue em andamento. Até o momento, a Polícia Federal já realizou 22 fases da ‘’Operação Lesa Pátria’’, que busca identificar as pessoas que financiaram e fomentaram os ataques à democracia ocorridos em Brasília no dia 8 de janeiro. Em novembro, por exemplo, a PF buscava cumprir 25 mandados de busca e apreensão e três mandados de prisão preventiva, expedidos pelo Supremo, nos estados de Santa Catarina e Minas Gerais.

Das 66 pessoas que ainda estão presas, oito já foram condenados pelo próprio STF, 33 são réus que ainda aguardam julgamento – que deve ser estendido até fevereiro – e 25 são investigados por financiar ou incentivar os crimes contra o Estado Democrático de Direito. 

A condenação do primeiro réu pelo Supremo aconteceu em 14 de setembro. No julgamento, os ministros entenderam que, a partir da análise das provas, houve ‘’claramente’’ uma tentativa de abolir o estado democrático de direito. No debate no Plenário do STF prevaleceu o entendimento do relator, ministro Alexandre de Moraes. 

Os crimes de prática de associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça, com emprego de substância inflamável, contra o patrimônio da União e com considerável prejuízo à vítima, bem como deterioração de patrimônio tombado, foram imputados aos réus pela PGR – inicialmente criticada por não agir para coibir os atos antidemocráticos do 8 de janeiro. 

A maioria do Plenário do STF, ao julgar os processos, entendeu que, ao pedir intervenção militar, o grupo do qual os réus faziam parte tinha a intenção de derrubar o governo democraticamente eleito em 2022. No voto de Moraes, acompanhado pela maioria dos ministros, ele argumentou que trata-se de um crime de autoria coletiva em que, a partir de uma ação conjunta, todos contribuíram para o resultado. 

O STF ainda determinou que eles pagassem uma indenização no valor de R$ 30 milhões por danos morais coletivos, a ser quitado de forma solidária com todos os demais réus que vierem a ser condenados. 

Consequências políticas

Um ano após os ataques, as consequências políticas são evidentes. Neste 8 de janeiro, o Palácio do Planalto vai ser palco de um ato em defesa da democracia, com a presença do presidente Lula, dos presidentes da Câmara e do Senado, Arthur Lira, e Rodrigo Pacheco, além do presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso. Embora convidados, governadores de oposição, ligados ao bolsonarismo, porém, não devem comparecer.

Investigado em inquérito sobre os ataques, o governador do DF, Ibaneis Rocha (MDB), por exemplo, alegou ter férias, “marcadas muito antes do ato”. O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), estará na Europa e só retorna ao Brasil no dia 9 de janeiro. 

Por outro lado, o Supremo se uniu em defesa da democracia após os ataques. No dia 1 de fevereiro de 2023, primeiro dia depois da  volta do recesso do Judiciário, a cerimônia ganhou aura de manifesto da resistência, contou com a presença dos presidentes dos demais Poderes e um discurso firme em defesa do Estado Democrático de Direito. 

“Não destruíram o espírito da democracia. Não foram e jamais serão capazes de subvertê-lo, porque o sentimento de respeito pela ordem democrática continua e continuará a iluminar as mentes e os corações dos juízes desta Corte Suprema, que não hesitarão em fazer prevalecer sempre os fundamentos éticos e políticos que informam e dão sustentação ao Estado Democrático de Direito”, discursou a então presidente da Corte, ministra Rosa Weber.

Em seu diário pessoal, Rosa Weber concluiu. “Povo sem memória, já se disse, é povo sem história. Aos fatos ocorridos, com as tintas fortes de que se revestiram, é preciso voltar sempre para que não sejam minimizados nem caiam no olvido. Os pontos de memória espalhados no Supremo Tribunal Federal, cumprem a finalidade de, relembrando a barbárie, contribuir para que jamais se repita.”