PERÚ: A invenção de um candidato de extrema direita
A irrupção de Rafael López Aliaga, um milionário solteiro ligado ao Opus Dei que promete combater a “nova ordem marxista”, como candidato com possibilidades na corrida presidencial expõe a profunda crise política em que o Peru chega às eleições
A invenção de um candidato de extrema direita
A irrupção de Rafael López Aliaga, um milionário solteiro ligado ao Opus Dei que promete combater a “nova ordem marxista”, como candidato com possibilidades na corrida presidencial expõe a profunda crise política em que o Peru chega às eleições
JOSEPH ZÁRATE|ELIEZER BUDASOFF
Lima / Cidade Do México
O veículo se chama Porkymóvel. Um 4x4 Mercedes Benz prateado com um R gigante azul-celeste. R de Rafael e de Renovação Popular, o partido liderado por este empresário de 60 anos dono de hotéis e de trens turísticos, que está sendo chamado pelo nome do famoso porquinho do Looney Tunes: Porky (conhecido por Gaguinho no Brasil). Um apelido sugestivo para um candidato a presidente ligado ao Opus Dei que disse ser “viciado na Eucaristia” e que se autoflagela todos os dias com o cilício ―uma corrente de metal com pontas― para permanecer casto, que está “apaixonado” pela Virgem Maria, que diz que as quarentenas são “marxistas” e que existe um plano global que tenta destruir a economia para instaurar um “paraíso socialista”.
São duas da tarde de um sábado de meados de março. Faltam três semanas para as eleições gerais no Peru, que acontecem neste domingo, e o ultraconservador Rafael López Aliaga, que em janeiro deste ano mal alcançava 2,4% em uma pesquisa de intenção de voto, desce do Porkymóvel para inaugurar um comitê de campanha em uma loja de fechaduras. É um bairro de avícolas, lojas e oficinas mecânicas em Villa María del Triunfo, um dos distritos mais populosos e com mais infecções de covid-19 em Lima, e o candidato ―de camiseta azul-celeste e rosto muito vermelho por causa do calor― quebra com uma martelada uma garrafa de champanhe barato, abaixa a máscara e vocifera:
― Ninguém para a onda de esperança! A onda que luta sozinha contra a corrupção imunda! Somos os únicos. Puro candidato da Odebrecht. Vejam como essa porcaria de imprensa nos ataca... Mas só vai durar até 28 de julho... A mermelada [marmelada] acabou, senhores!
A mermelada é o equivalente peruano do chayote [chuchu] mexicano e da coima argentina: uma gíria popular para a prática do suborno. Diante de quase cinquenta simpatizantes com faixas e bandeiras celestes, López Aliaga continua seu discurso:
― Chega de quarentena também, basta, ou se morre de covid ou se morre de fome, é preciso trabalhar, basta, é preciso manter as portas abertas...
― Rafael, Rafael, Rafael!
Ao longo do dia, López Aliaga percorrerá as ruas do sudeste de Lima acompanhado por uma extensa caravana de carros e caminhonetes com faixas, cumprimentando as pessoas de dentro do Porkymóvel e entregando sacolas de compras com um R estampado. A menos de um mês das eleições, as pesquisas parecem ter transformado sua candidatura em algo mais do que uma caricatura da direita populista latino-americana: em 28 de março, seus 2,4% eram 9,7%, segundo uma pesquisa nacional do Instituto de Estudos Peruanos (IEP). Um número pequeno que, no cenário fragmentado das eleições presidenciais, poderia ser suficiente para lhe permitir disputar o segundo turno com Yohny Lescano, candidato do partido Ação Popular, que no final de março liderava as preferências com até 11% das intenções de voto. Ou, como resume o cientista político peruano Alberto Vergara, “um segundo turno entre as versões subdesenvolvidas de Bolsonaro e de AMLO [o presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador]”.
No cenário atual das eleições deste domingo no Peru, arriscar qualquer previsão é como lançar-se da Cordilheira dos Andes com uma imitação de wingsuit: as últimas quatro pesquisas nacionais, publicadas uma semana antes da votação, projetam um múltiplo empate entre os candidatos no primeiro lugar e nenhum chega sequer a 13% de intenção de voto. López Aliaga, que já não aparece em segundo lugar, mas continua entre os seis candidatos com mais possibilidades, diz mesmo assim que não acredita nas pesquisas da “imprensa marmelera”.
― Por que não acredita nas pesquisas?
― Não, nessas pesquisas eu não acredito... – diz López Aliaga ao EL PAÍS.
― As três o colocam em segundo ou em terceiro lugar.
― Mas isso é falso. Você vai ver, vai ter uma surpresa. Estamos acima de 20% em nível nacional.
― E como chegou a esse número? Por quais informações se baseia?
― Eu tenho um instituto de pesquisa, não sou bobo. Tenho uma posição financeira consolidada. Tenho meu próprio instituto de pesquisa, que me faz uma amostra representativa também. Eu pago pesquisas privadas para que me deem informações certas sobre cada região.
― E como se chama esse instituto de pesquisa? Onde podemos ver esses dados?
― Não, isso eu não vou te dizer, porque é um assunto particular meu.
Há muitas coisas que López Aliaga, engenheiro industrial e ex-professor universitário, não explica. Ele parece ter aproveitado melhor do que ninguém o espírito de confusão e a alegre impunidade discursiva que prevaleceu na disputa presidencial do Peru. Um país que no contexto da pandemia sofreu a mais calamitosa queda do PIB da América Latina e que hoje contabiliza diariamente mais de 200 mortos pelo vírus: como se um avião comercial cheio de passageiros caísse todos os dias. Em sua caravana proselitista, diante dos feirantes e das donas de casa que saem para varrer suas calçadas, o candidato repetirá alguns dos bordões de sua campanha: que no mesmo dia em que tomar posse como presidente expulsará a Odebrecht do país e que entrará em um avião e irá para os Estados Unidos comprar pessoalmente 40 milhões de vacinas. Nunca explicou em detalhe como pretende fazer as duas coisas.
Apesar de explorar o lugar do outsider da política ―espaço que o ex-jogador de futebol George Forsyth, hoje candidato do partido Vitória Nacional, também tentou ocupar―, López Aliaga não é um recém-chegado na vida institucional do país: participou sem sucesso das eleições legislativas de 2020 com o partido Solidariedade Nacional (hoje Renovação Popular) ―obteve 1,49% dos votos, insuficiente para obter uma cadeira― e foi vereador em Lima na gestão de Luis Castañeda Lossio (2007-2010), ex-prefeito da capital do país, hoje prostrado por um câncer e investigado por conluio qualificado e lavagem de dinheiro.
Tampouco são inéditos seus ataques à imprensa, seu discurso contra o aborto e a abordagem de gênero, sua disseminação de teorias da conspiração ou seu perfil de empresário de sucesso que não precisa roubar porque tem uma fortuna, uma imagem do político como gerente que exploraram outras figuras de direita na região, como o chileno Sebastián Piñera ou o argentino Mauricio Macri. López Aliaga está vinculado com 42 empresas e duas offshore (investigadas no caso Panamá Papers), com um patrimônio que, segundo ele mesmo declarou, “ultrapassa um bilhão de dólares somente em trens e hotéis”, oriundos principalmente de concessões e usufrutos com o Estado e a Igreja Católica obtidos durante o processo de privatização iniciado sob o regime de Alberto Fujimori.
A novidade é que sua candidatura se tornou uma possibilidade real no caminho à presidência, embora se trate de uma história conhecida na região.
Um mercado persa
Se tivesse que explicar o cenário eleitoral de seu país a um amigo de passagem por Lima, Alberto Vergara, autor de vários livros e artigos sobre política latino-americana e pesquisador de pós-doutorado na Universidade de Harvard, seria direto em sua introdução: “Estamos diante de um panorama de merda, mas é algo que pode ser explicado. Não estamos diante de algo excepcional, que não tenha antecedentes no Peru ou na América Latina”, explica.
Desde julho de 2016, quando Pedro Pablo Kuczynski ―de direita― assumiu a presidência do país depois de derrotar por uma pequena margem Keiko Fujimori ―de direita―, o Peru está mergulhado em uma série interminável de crises que incluíram, entre outras coisas, a renúncia de Kuczynski, o suicídio do ex-presidente Alan García, a prisão de Keiko Fujimori, a dissolução do Congresso e a destituição de Martín Vizcarra promovida pelo novo Congresso, fato que empurrou milhares de peruanos às ruas para protestar no meio da pandemia e levou o país a ter três presidentes diferentes em uma semana.
As crises políticas não são alheias a ninguém que vive na América Latina, mas nos últimos anos o Peru parece obcecado em vencer a corrida da instabilidade institucional na região. A origem desta situação ―uma disputa permanente pelo poder entre todos e à vista de todos, com uma maioria de políticos sem lealdade a um projeto coletivo, nem a um partido, ou a nada que não sejam interesses setoriais ou particulares― é “uma degradação muito longa da representação no Peru”, descreve Vergara, e o resultado das normas que regeram a construção dessa representação: uma dinâmica “cheia de compra e venda de lugares nas listas para o Congresso ou para candidatos a governador ou prefeito. Uma espécie de gigantesco mercado persa da representação em um sistema de leilões em que qualquer um pode terminar em qualquer partido e onde o ativo mais valorizado é quanto dinheiro você coloca na campanha”.
Esse espírito de improvisação e oportunismo se aprofunda quando se examina a montagem das chapas eleitorais. Um exemplo disso é o processo de seleção de candidatos do partido Renovação Popular ao Congresso. No final de março, investigações jornalísticas revelaram que o partido de López Aliaga ―que afirma ter entrevistado 500 candidatos por Zoom quando adoeceu de covid-19 no ano passado― tinha pelo menos oito candidatos que concorreriam ao Congresso para representar diferentes regiões do país, mas todos moravam em Lima; eram vendedores ambulantes ou pequenos comerciantes cujas próprias famílias não sabiam que estavam em campanha. Uma candidata do Renovação Popular para representar a região de Pasco no Congresso, por exemplo, nunca pôs os pés em Pasco. “Mas você sabe qual é a função de um congressista, basicamente?”, perguntou uma repórter. “Na verdade, não. Mas aqui vou eu. Estou trabalhando nisso”, respondeu a jovem.
“O Peru talvez seja o caso mais extremo de colapso partidário na América Latina”, dizem Steven Levitzky e Mauricio Zavaleta no livro Por que não há partidos políticos no Peru?. Nesta “democracia sem partidos”, como a definem os autores, em que os políticos desenvolveram estratégias para concorrer com sucesso a um cargo sem ter de se vincular a um projeto partidário, a candidatura de López Aliaga parece um exemplo grotesco do produto que melhor se vendeu na última década no mercado eleitoral latino-americano: “Um perfil muito baseado em discursos autoritários, de mão dura, e gerar constantemente conteúdo falso em suas redes sociais, com milhares de bots no Twitter. Uma máquina de desinformação para polarizar e gerar medo”, define Óscar Castilla, jornalista e diretor do portal Ojo Público, que além de publicar investigações sobre a opacidade dos negócios do candidato, há meses rastreia e analisa as mensagens da campanha de López Aliaga nos meios de comunicação e nas redes sociais.
É uma fórmula que foi vista em campanhas como as de Trump ou Bolsonaro, diz Castilla, mas que no Peru rendeu-lhe os benefícios da “novidade” e uma exposição privilegiada nos grandes meios de comunicação: segundo um monitoramento feito por Grupo de Pesquisa de Partidos e Eleições da Pontifícia Universidade Católica do Peru, até 28 de março López Aliaga era o candidato que tinha obtido o maior número de entrevistas (43) dos 18 candidatos a presidente na disputa. A maioria dessas entrevistas (29) aconteceu no Willax, um canal conhecido pelo viés conservador e pela divulgação de notícias falsas.
Um salto no vazio
Quando o Porkymóvel para no sinal vermelho, um jornalista que acompanha a caravana desde o início e tenta entrevistá-lo há horas, se aproxima correndo do carro do candidato e pergunta: “Rafael, por que quer ser presidente? "
“Para sacarme la mierda pelo Peru” ―grita López Aliaga, enquanto o veículo retoma o caminho em direção a Pamplona Alta, uma das áreas mais pobres de Lima.
“Sacarse la mierda”: uma fórmula popular no Peru para dizer “fazer muito esforço” ou “trabalhar duro” (ou, em outro contexto, “se machucar”). “Gosto muito porque o Rafael te diz coisas assim, de frente. Não é político, por isso muitas vezes suas palavras podem soar um pouco grosseiras”, diz Yorlan Nestares, de 31 anos, um dos porkylovers que acompanham a caravana desde o início ou se juntam ao longo do caminho, quando se detém para inaugurar comitês de campanha. “Ele tem experiência na gestão de grandes empresas. Ele vai contra a Odebrecht e essa agenda caviar que tenta impor o aborto, é coerente com a sua fé”, diz Jenny Contreras, de 37 anos, de Villa El Salvador e dona de uma livraria.
Para o cientista político Carlos Meléndez, o crescimento de um personagem com um discurso tão radical em um cenário político em que abundam figuras conservadoras, vai além da crise dos partidos e também responde a uma realidade em que “o eleitorado está hiperfragmentado: é um eleitorado de nicho, com figuras populistas para todos os gostos”, explica o editor e autor do livro Minicandidatos, uma radiografia das propostas eleitorais e dos rostos que as representam. “Cada uma dessas frações é incapaz de falar a mais de 10% do eleitorado peruano. Estamos vivendo uma campanha para fanáticos, para seitas, para lovers”.
Há alguns anos, diz Meléndez, para um setor ultraconservador “talvez fosse muito vergonhoso apresentar alguém como Rafael López Aliaga”, e então se colocaram ao lado da figura de Keiko Fujimori, líder de um partido que tinha “muitos interesses por trás”. Mas com a perda de prestígio do fujimorismo e o crescimento das mobilizações mais progressistas, mais liberais, López Aliaga se tornou a voz de setores que se sentem oprimidos pela “onda progressista”: as reivindicações estudantis, as feministas, o movimento MeToo, os protestos populares. Isso “o leva a mostrar o chicote e a corrente com que se flagela publicamente. É um ato de desespero, porque se sente genuinamente ameaçado”.
Algumas semanas depois de a caravana ter passado pela região Leste de Lima, talvez alentado pelo declínio de sua posição nas pesquisas nas quais não acredita, López Aliaga decidiu participar do debate organizado pelo Júri Eleitoral Nacional, a que a princípio cogitara não comparecer. Lá, diante de milhões de peruanos, o candidato acostumado a atacar a imprensa, o Governo e seus adversários políticos em seus comícios e entrevistas no Willax, a princípio limitou-se a ler alguns papéis diante das câmeras. Hesitava. Equivocava-se de documento. Mal se entendia o que dizia. Sua segurança, em um ambiente que não controlava, parecia ter desaparecido.
No entanto, em um cenário de incertezas quanto ao futuro, candidaturas como a de López Aliaga continuam a dar certa ilusão de segurança a um setor do eleitorado (entre 6,8% e 8,4%, dependendo da pesquisa) que espera o líder que resolverá seus problemas “agora mesmo, para ontem”. O cientista político Vergara, que observou várias eleições com lupa, não acredita que seu apelo seja um fenômeno inexplicável: “Quanto mais críticos são os tempos, mais abertas as pessoas costumam estar para dar um salto no vazio”.