Pela posse de Jango, Brizola planejou investida militar em Santa Cruz e região

Pela posse de Jango, Brizola planejou investida militar em Santa Cruz e região

Pela posse de Jango, Brizola planejou investida militar em Santa Cruz e região

Plano de Brizola era partir do Sul em direção às capitais, passando por Santa Cruz e Ourinhos

Pela posse de Jango, Brizola planejou investida militar em Santa Cruz e região

 

Publicado em: 21 de agosto de 2021 às 02:41
Atualizado em: 01 de setembro de 2021 às 13:56

A batalha pela posse de João Goulart

 

Miguel Abeche

Eram 5h da madrugada de 25 de agosto de 1961 em Cingapura, no sudoeste da Ásia, quando Dirceu Di Pasqua bateu na porta da suíte do hotel Rafles. Um sonolento e assustado João Goulart abriu a porta e, ainda sem tempo de perguntar o que acontecia, foi saudado por seu secretário que o cumprimentou de um modo diferente: “Senhor presidente”.

Jango, como era popularmente conhecido o vice-presidente João Goulart, voltava de uma viagem à China e perguntou o porquê de acordá-lo em horário tão impróprio e o chamando de “presidente”.

Di Pasqua contou a Jango que João Etcheveria, repórter do jornal “Última Hora”, fora informado por um funcionário da agência de notícias Associated Press que o presidente Jânio Quadros renunciara e que o vice Jango era o novo presidente.

Nisso, outros participantes da comitiva que foram acompanhar a viagem oficial do vice-presidente começaram a se chegar à suíte de João Goulart. Lá estavam Raul Riff (secretário de imprensa de Jango), Franco Montoro (deputado federal), Barros de Carvalho (senador por Pernambuco), Dix Huit Rosado (senador pelo Rio Grande do Norte) e Gabriel Hermes (deputado federal).

No horário de Brasília eram 19h e os antigos teletipos enchiam as redações dos jornais do mundo todo com a notícia da renúncia do presidente do Brasil. O senador Barros de Carvalho pediu uma garrafa de champagne para brindar o novo presidente. Jango foi precavido: “Você pode tomar uma champagne, mas vamos brindar ao imprevisível”.

Enquanto isso, no Brasil o presidente da Câmara Federal, Ranieri Mazzili, havia assumido a presidência interinamente e, quase que imediatamente, foi cercado pelos ministros militares de Jânio Quadros, que vetaram a posse de João Goulart. Era uma tentativa de dar um golpe e rasgar a Constituição.

Brizola ao lado do general Machado Lopes, comandante do Terceiro Exército, que aderiu ao movimento constitucional

O motivo alegado era o mais estúpido possível. A elite brasileira vetava a posse do novo presidente por supostamente ter ligações com os sindicatos e ser o herdeiro político de Getúlio Vargas. Acrescentavam, ainda, que Jango tinha ligações com os comunistas. Era a velha e mal ajambrada fórmula que, na falta de argumentos, apresentava o “fantasma vermelho”.

Afinal, como impedir a posse de um vice-presidente eleito duas vezes pelo voto direto e com uma popularidade tão grande que o levou a ter mais votos do que o presidente eleito em 1955, Juscelino Kubitschek? Como vetar um político que, na eleição seguinte, derrotou o vice da chapa de Jânio? Naqueles tempos, a votação para presidente e vice, assim como para prefeito e vice, era feita separadamente.

Em maio à crise política, no Palácio Piratini, sede do governo do Rio Grande do Sul, estava o governador Leonel de Moura Brizola, 39 anos, casado com Neusa Goulart, irmã de Jango. Ao saber do veto dos três ministros militares do ex-presidente Jânio Quadros, avisou: “Não vão dar o golpe por telefone”!

E passou a preparar imediatamente a defesa da Constituição, colocando a Brigada Militar (Polícia Militar) gaúcha de prontidão. Em seguida, iniciou uma série de contatos com militares das guarnições do Exército no próprio Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro.

Soldado durante a cadeia pela legalidade

Enquanto isso, o líder conservador Carlos Lacerda se posicionava contra a Constituição e o Estado Democrático. Governador do antigo estado da Guanabara, ele desencadeou a repressão na cidade do Rio de Janeiro. Instalou a censura, aprendeu edições de jornais e revistas, invadiu sindicatos e estações de rádios. Além disso, mandou prender estudantes, sindicalistas e lideranças populares.

Afinado com a trinca militar golpista, Lacerda desencadeou o terror na Guanabara. As estripulias do governador e a baderna patrocinada pelos ministros militares chegou ao extremo de mandar prender o marechal Henrique Teixeira Lott pelo fato de ele ter divulgado carta de apoio à Constituição à posse imediata de João Goulart na presidência da República.

Mas havia resistências, inclusive entre os conservadores. O deputado da UDN carioca Adauto Lúcio Cardoso se revoltou contra o golpe e apoiou a posse de Jango, inclusive pedindo a prisão de Carlos Lacerda e dos ministros militares do ex-presidente Jânio Quadros. “São fascistas sanguinários”, bradou.

Foi, então, que a baderna instalada pelos golpistas encontrou no jovem governador gaúcho Leonel Brizola uma barreira intransponível. Se no início ele se encontrava isolado no extremo sul do País, Brizola transformou Porto Alegre na “Capital da Constituição e Legalidade”              .

Para isolá-lo, o ministro da Guerra Odílio Denys e seu chefe de gabinete, general Orlando Geisel (irmão do futuro presidente Ernesto Geisel), ordenaram que todas as emissoras de rádio de Porto Alegre fossem retiradas do ar. A exceção era a rádio Guaíba, pertencente a Breno Caldas, dono de um forte conglomerado de imprensa no Sul do País.

Imprensa noticia a tensão armada

Brizola mandou cercar o transmissor da rádio Guaíba e levou os aparelhos para os porões do Palácio Piratini, conclamando o povo gaúcho e os brasileiros a se unirem na defesa da Constituição e da legalidade. O lema era “todos pela posse de João Goulart e contra o golpe fascista”.

Ao saber disso, o ministro Odílio Denys mandou explodir a torre de transmissão da rádio Guaíba, mas os oficiais não obedeceram. Afinal, as guarnições baseadas em Santiago, sob o comando do general Oromar Osório, e a de Santa Maria, comandada pelo general Pery Bevilacqua, já estavam a caminho de Porto Alegre para se juntar ao governador Leonel Brizola em defesa da posse do presidente João Goulart.

Veio, então, outra ordem estapafúrdia, para que os jatos da base aérea de Canoas bombardeassem o Palácio Piratini, sede do governo gaúcho e da resistência contra o golpe. Esta mensagem, porém, foi interceptada por um rádio amador e decodificada pelo serviço de inteligência da brigada gaúcha.

Neste momento, mais de 100 mil pessoas se encontravam na frente do Palácio Piratini e, ao serem informadas do possível bombardeio, começaram a cantar o refrão do Hino da Independência: “Ou ficar a Pátria livre ou morrer pelo Brasil”.

Em meio à tensão, a surpresa veio dos cabos e sargentos da Aeronáutica, que esvaziaram os pneus dos caças e tiraram as bombas dos aviões, não permitindo a decolagem e praticamente inutilizando a base para operações contra o governador Brizola.

Enquanto isso, começava a “Cadeia da Legalidade”, que teve início apenas com a rádio Guaíba. Entretanto, no segundo dia já eram quatro emissoras, pulando para 114 no dia seguinte. No quinto dia, mais de 200 emissoras de rádio estavam em rede transmitindo discursos do governador gaúcho e sua reação ao golpe.

Foi um momento mágico na história do Brasil. Em todo o País, a população ia para a frente das rádios pedindo que todas se coligassem com a “Cadeia da Legalidade”. Assim, Brizola foi ganhando a mente e os corações dos brasileiros para a defesa da Constituição e da posse do novo presidente.

O momento maior foi quando o comandante do Terceiro Exército, o mais equipado do Brasil, pediu uma conferência com Brizola. O general Machado Lopes não era amigo do governador e seu chefe do Estado Maior, coronel Antônio Carlos Muricy, era conhecido pelo ódio que nutria por Brizola e Jango.

Ao ser informado do pedido, Brizola ponderou que havia três alternativas para o pedido de audiência: prendê-lo, destituí-lo do governo ou apoiá-lo. Em seguida, foi para o rádio e fez o mais veemente discurso em defesa da democracia. Avisou que estava pronto para morrer em defesa da Constituição e contra o golpe.

Ao chegar ao Palácio gaúcho, o general Machado Lopes foi recebido por uma multidão cantando o Hino Nacional. Ele desceu de seu Chevrolet Belair preto e ouviu mais de 100 mil pessoas gritando os nomes de Jango e Brizola.

Brizola havia se preparado se o general comandante desse alguma ordem que não fosse solidária ao movimento legalista. Ele o prenderia no Palácio e resistiria a qualquer tentativa de ataque.

Mal entrou na sala, o general Machado Lopes disse: “Governador, o Terceiro Exército sob meu comando e as unidades e guarnições baseadas nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná estamos com a legalidade e a Constituição. Vamos defender a posse do presidente constitucional do Brasil, o gaúcho Joao Goulart”.

Governador gaúcho em 1963, Leonel Brizola inspeciona armas; plano incluía invasões em Ourinhos e Santa Cruz do Rio Pardo, caso houvesse uma guerra civil

Após cumprimentá-lo pela decisão, Brizola levou o general para a sacada do Palácio e anunciou ao povo que o Terceira Exército estava com o presidente Jango. A multidão delirava, cantava, dançava e todos se confraternizavam.

Jango voltava para o Brasil por um longo caminho. As velhas raposas sacaram uma emenda do deputado gaúcho Raul Pilla e aprovaram no Congresso o parlamentarismo. Brizola avisou Jango: “Não aceite. Pegue um avião e vá para Brasília. Leve seu filho com você, vá desarmado e assuma a presidência. Nós estamos subindo para o Rio e Brasília com o Terceiro Exército e a brigada militar gaúcha”.

O general Machado Lopes foi destituído do cargo pelo ministro golpista. Em seu lugar, nomearam o velho Cordeiro de Farias. Este ligou para o general Machado Lopes para saber sobre a transmissão do cargo. E ouviu do general legalista: “Se você puser o pé no Sul, será preso. Esta trinca que deseja rasgar a Constituição não manda mais. São fora da lei”.

Na verdade, Machado Lopes já se aproximava da fronteira do Paraná com São Paulo com a tropa. De Itararé, iria para São Paulo e Rio de Janeiro. O caminho incluía passagens em Ourinhos, Santa Cruz do Rio Pardo e Bauru, de onde seguiriam para Brasília.

No entanto, a batalha estava ganha. A maioria das unidades não obedeciam mais ao comando do ministro golpista Odílio Denys.

Jango aceitou o parlamentarismo, contrariando Brizola e o Terceiro Exército. O governador gaúcho, aliás, não foi à posse de Jango.

Soldado das forças gaúchas aproveita um momento para descansar e ler jornal no telhado do Palácio Piratini, no Rio Grande do Sul

Foram treze dias em que o Brasil não dormiu e a guerra civil esteve perto. Bateu na porta, inclusive, da região de Santa Cruz do Rio Pardo. Foi um momento em que homens corajosos não permitiram um golpe no estilo “república das bananas”.

Brizola, enfim, foi o grande presidente que o Brasil não teve. O homem que trouxe a soja para o Brasil, o governador da Educação (construiu mais de 6.000 escolas no Rio Grande do Sul), aquele que resolveu o crônico problema da energia e telefonia no Estado do Rio Grande. No Rio de Janeiro, construiu mais de 600 escolas “Cieps”, fez a “linha vermelha” e cuidou das crianças, fazendo de tudo para tirar os garotos da rua e leva-los para a escola.

Hoje, 60 anos depois daqueles acontecimentos, me recordo daqueles 13 dias em que o Brasil não permitiu o golpe contra a Constituição, quando eu e minha mãe acompanhamos pela “Cadeia da Legalidade” aquele momento da história republicana.

Antônio Carlos Magalhaes, em depoimento sobre a morte de Brizola, reconheceu: “Leonel de Moura Brizola tem a melhor biografia do Brasil republicano”. Assino embaixo. Afinal, ACM era adversário de Brizola, que hoje é oficialmente um herói nacional justamente pela sua participação em defesa da democracia e da liberdade nesse episódio histórico de 1961, tão pouco lembrado.

Brizola nunca foi presidente da República. Mas ninguém mereceu mais esse cargo do que ele.