Nova onda progressista da América Latina é 'mais frágil', diz Rafael Correa

Nova onda progressista da América Latina é 'mais frágil', diz Rafael Correa

Nova onda progressista da América Latina é 'mais frágil', diz Rafael Correa

Ex-presidente do Equador diz que novos governos de esquerda enfrentam falta de apoio popular e direita "disposta a tudo"

Thales Schmidt


Rafael Correa, ex-presidente do Equador - Kenzo Triboullard / AFP

Rafael Correa diz que prefere ficar em casa a fazer um governo que "não está disposto a arriscar". O ex-presidente equatoriano (2007-2017) saiu de seu lar na Bélgica, onde vive como exilado político, para participar de eventos na Argentina e no Brasil. Em São Paulo, o governante que participou da primeira onda de governos progressistas na América Latina, no início dos anos 2000, conversou com o Brasil de Fato e comparou o atual momento político da região com o período em que esteve no poder.

Ao lado de outros líderes como Evo Morales (Bolívia), Néstor Kirchner (Argentina), Hugo Chávez (Venezuela) e Lula durante o seu primeiro mandato, a eleição de Correa em 2006 coroou um período de vitórias para a esquerda na região. Foi a chamada "Onda Rosa", ou "Onda Progressista".


Foto de 2007 com os então presidentes da Venezuela (Hugo Chávez), Argentina (Néstor Kirchner), Equador (Rafael Correa) e Brasil (Lula). / AFP

Após um período com a direita no poder e a extrema-direita no Palácio do Planalto, a maré refluiu e a América Latina tem uma nova "Onda Rosa". Lula ganhou as eleições novamente, a Argentina é guiada por Alberto Fernández, o economista Gustavo Petro é responsável pelo primeiro governo progressista da história da Colômbia e o ex-líder estudantil Gabriel Boric governa o Chile. Para Correa, contudo, o novo momento político tem uma esquerda mais fragilizada. 

"Olhe a correlação de forças nos Congressos. Lula não tem a maioria em nenhuma das duas câmaras, ele também não tinha antes, mas nesse momento estamos enfrentando adversários dispostos a tudo. Nós tínhamos essa maioria no Congresso na Bolívia, Equador, mas havia muito mais apoio popular aos governos, havia mais consenso nacional. Eu não vejo isso em muito dos atuais governos progressistas", diz o ex-presidente. "Acho que são governos mais heterogêneos. Um Lula, que vem do Partido dos Trabalhadores, não é igual a um Boric, que é, no máximo, um social-democrata."

 

Se retornar ao seu país, Correa pode ser preso. O ex-presidente afirma ser vítima de um processo de lawfare - o uso do judiciário contra inimigos políticos - e compara o seu caso com o de Lula e de outras lideranças latino-americanas, como Cristina Kirchner. Para ele, existem dois vetores fundamentais do que ele classifica como perseguição jurídica: a imprensa e "juízes covardes ou abertamente corruptos".

Para enfrentar o uso do judiciário pela direita, Rafael Correa defende a divulgação da verdade e lembra do papel de Julian Assange. O jornalista responsável pela divulgação de possíveis crimes de guerra dos EUA no Iraque e no Afeganistão recebeu asilo na embaixada do Equador em Londres, no Reino Unido, por decisão de Correa. A medida, todavia, foi revogada pelo seu sucessor, Lenín Moreno, e o jornalista do WikiLeaks está hoje em uma prisão de segurança máxima.

"Imagine por um instante que Julian Assange não tivesse denunciado os crimes de guerra dos EUA, mas da China ou da Rússia, já teria um monumento para ele em Washington", afirma Correa ao Brasil de Fato

O movimento político de Correa ressurge no Equador. O atual presidente do país, o direitista e banqueiro Guillermo Lasso, enfrenta um processo de impeachment e Correa prevê que Lasso já "caiu" e que o país tem um "consenso nacional" pela sua saída do cargo. Nas últimas eleições, o Partido Revolução Cidadã elegeu os prefeitos das duas maiores cidades do país e realizou, nas palavras do ex-presidente, uma "proeza política". 

Correa ainda desaprova Boric pelas opiniões negativas do presidente chileno em relação ao governo da Venezuela e também se defende da crítica de Petro de que a primeira onda progressista não tinha "clareza em relação à mudança climática".

O ex-presidente discorda do que chama de "ecologismo infantil" e avalia que para preservar a Amazônia é necessário investir em uma exploração do petróleo e da mineração "com responsabilidade ambiental e social para superar a pobreza". Durante o seu mandato, a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie) rompeu com Correa por apontar contradições entre a Constituição progressista do país e as práticas econômicas adotadas pela gestão do então presidente.

"O ecologismo infantil do 'não ao petróleo, não ao ouro', isso é um absurdo. Necessitamos explorar responsavelmente nossos recursos naturais, com responsabilidade ambiental e social para superar a pobreza, superar pelo desenvolvimento. E nós adicionamos que não somos nós os principais contaminadores, são os países ricos, não os países em desenvolvimento. Temos urgência em superar a pobreza, evitar crimes cotidianos, porque são crimes a morte a crianças de patologias perfeitamente evitáveis com acesso a serviços adequados de saúde."

Confira os principais trechos da entrevista:

Brasil de Fato: O senhor é alvo de 51 processos e vimos o que acontece com Cristina Kirchner e o que aconteceu com Lula. Na sua opinião, como o progressismo e as esquerdas da América Latina podem tentar se proteger do lawfare?

Rafael Correa: É uma estratégia regional, não são coincidências na América Latina. As ditaduras em Uruguai, Chile e Argentina, não eram coincidência, eram o Plano Condor. Então isso é, ao menos, permitido, senão abertamente respaldado, pelos EUA. Uma estratégia regional para perseguir líderes progressistas e conseguir com a judicialização da política o que não foi conseguido nas urnas.

Para isso, é preciso que tenhamos exercido o poder, e exercemos. Em dez anos de poder, é impossível não ter um caso de corrupção. Governo honesto não é o que não tem casos. Quem disser isso, é um mentiroso. Quem disser: "Vou governar e não haverá corrupção" está se comprometendo com algo que não pode cumprir.

Governo honesto é o que não tolera a corrupção. E nós jamais toleramos, mas é impossível que não haja casos. Mas veja como estávamos no ranking de corrupção da Transparência Internacional, nas estatísticas do Banco Mundial. Lideramos a luta contra a corrupção na América Latina. Mas é especialidade da imprensa fazer crer que antes não havia corrupção, que foi inventada nos nossos governos, generalizar os casos isolados e, é claro, colocar a culpa no presidente. E assim criam esta realidade.

Sempre encontrarão um pretexto e criarão uma narrativa. "A vírgula que faltou foi para beneficiar a pessoa tal."

Não importa se o caso é real, criam a narrativa e te envolvem nos objetivos políticos. Quais são os pilares para criar essa estratégia chamada "lawfare"?

O principal é o pilar midiático. Enquanto não resolvermos o problema midiático da América Latina, seguirá havendo lawfare. E com isso eles roubam a democracia e, com a falta de verdade, nem sequer poderemos superar o subdesenvolvimento porque para isso precisamos da verdade e informação, para tomar as decisões e a ação coletiva correta. Com a imprensa que temos, isso não é possível.

É preciso criticar a imprensa ruim, e não toda a imprensa. Quando falo disso, dizem que odeio os jornalistas. Meu segundo filho é jornalista. Não odeio ninguém. Mas é preciso denunciar o mau jornalismo, assim como os maus políticos, denunciar a imprensa ruim, assim como a política ruim. Sem uma boa imprensa e uma boa política não teremos democracia nem desenvolvimento.

A imprensa latino-americana não é ruim, é muito ruim. Deixemos de tapar o sol com a peneira. Mente abertamente, está politizada, é um instrumento de dominação e perseguição, de manutenção do status quo por parte de nossas elites.

É preciso enfrentar o problema midiático. É um poder sem contrapoder. E cada vez que se tenta regulá-lo, enfrentá-lo, é atentado à liberdade de imprensa. E não, é potencializara liberdade de imprensa. A liberdade só pode se basear na verdade. Então são necessárias leis para controlar, dar o direito à verdade aos cidadãos e impedir que os meios de  comunicação, guardiões da verdade, sejam os primeiros a roubá-la.

O segundo pilar são os juízes: covardes ou abertamente corruptos e que, sob pressão midiática, apenas copiam as manchetes. Nos condenam nas manchetes, não no tribunal. Pode haver juízes honestos, mas nas circunstâncias atuais, com essa pressão midiática, precisamos de juízes heróicos. E isso é raro.


A vice-presidenta da Argentina, Cristina Kirchner, em evento com Correa em Buenos Aires no dia 21 de março / Luis Robayo / AFP

Assange está em uma cadeia por decisão dos EUA. O seu governo deu asilo a ele, o que depois foi revogado. Qual é a sua opinião sobre Assange estar preso agora por decisão da Casa Branca e o que isso significa para a América Latina?

Muito fácil, imagine se prendêssemos um jornalista por dizer a verdade. "Ah, é que era informação confidencial!". Bom, se são agentes do serviço secreto e está expondo a vida deles dá para entender, seria irresponsável.

Nem toda verdade tem que ser exposta abertamente. Há coisas para lidar com cuidado. Mas ele denunciou crimes de guerra! Um jornalista dizendo a verdade e denunciando crimes de guerra?! O que ele fez de mau? Ruim seria não denunciar!

Este jornalista está preso e está sendo massacrado. Imagina por um instante se isso fosse feito por países latino-americanos e por governos de esquerda, já estaríamos no Tribunal Penal Internacional, em Haia. Imagine por um instante que Julian Assange não tivesse denunciado os crimes de guerra dos EUA, mas da China ou da Rússia, já teria um monumento para ele em Washington. O que demonstra Julian Assange? A terrível moral dupla que existe em nível internacional, que a justiça é apenas a conveniência do mais forte, como dizia Trasímaco nos diálogos de Platão há mais de 2 mil anos.

O que está acontecendo com Assange é escandaloso, diante da indiferença do mundo e do silêncio cúmplice de boa parte do jornalismo, que está sendo quebrado, mas só agora que já acabaram com a vida dele. Ele está acabado em vida. Veja como envelheceu.

Então a Grã-Bretanha prendeu um jornalista por dizer a verdade sobre crimes de guerra. E os EUA querem que seja  extraditado para dar a ele uma pena de 170 anos por dizer a verdade sobre crimes de guerra. Isso não resiste à menor análise.

O presidente da Colômbia Gustavo Petro disse à imprensa brasileira que a primeira onda progressista cometeu muitos erros e não teve clareza sobre as mudanças climáticas e, que se os mesmos erros forem repetidos, esse novo movimento fracassará. Qual sua opinião?

Não escutei Petro dizendo isso. Eu o respeito muito, acredito que é o presidente mais competente da região, mas não estou de acordo. O Equador tem a Constituição mais verde da história da humanidade. O mundo inteiro reconheceu a Constituição que garante o maior número de direitos do mundo inteiro. Como pode dizer que não trabalhamos com a mudança climática? Nós lideramos a luta contra a mudança climática, a conservação da natureza, mas fomos inteligentes de não assumir responsabilidades que não são nossas.

A responsabilidade ambiental é geral, mas diferenciada. Os maiores contaminadores não somos nós, o que contamina é a opulência, não a pobreza. Ainda temos crianças que morrem de patologias da pobreza: diarreia, gastroenterite. Eles também são parte da natureza.

Então o ecologismo infantil do 'não ao petróleo, não ao ouro', isso é um absurdo. Necessitamos explorar responsavelmente nossos recursos naturais, com responsabilidade ambiental e social para superar a pobreza, superar pelo desenvolvimento. E nós adicionamos que não somos nós os principais contaminadores, são os países ricos, não os países em desenvolvimento. Temos urgência em superar a pobreza, evitar crimes cotidianos, porque é crime a morte a crianças de patologias perfeitamente evitáveis com acesso a serviços adequados de saúde.

Posso dar muitos outros exemplos. Quando recebi o país, 44% da energia elétrica era renovável e outros 40% ou 50% [era] térmica, contaminante, e outras de fontes alternativas, inclusive importada. Hoje temos quase 95% de energia renovável, isso é atuar eficazmente em favor da conservação ambiental, contra a mudança climática. Não podemos aceitar que digam que não nos preocupamos com isso.


O presidente da China, Xi Jiping, visitou o Equador em 2016 para a inaugração da hidroelétrica Coca Codo Sinclair, construída pela empresa chinesa Sinohydro / Juan Cevallos / AFP

Petro disse que seu plano é que não se façam mais projetos de exploração de petróleo na Colômbia. Qual sua opinião sobre essa proposta, parece realista?

Provavelmente é realista. Eu gostaria de escutar que ele vai suspender toda a exploração petroleira atual. Provavelmente já tem o suficiente, vou explicar: no Equador tampouco exploramos mais. Eu exploraria, inclusive para ter informações. Ninguém pode negar a informação, o conhecimento, a apuração, porque isso é exploração petroleira, saber quantas reservas têm e depois se pode discutir se exploramos ou não e em quais condições.

Existe muito mito nessa questão, grande parte dessas reservas estão na selva amazônica. Um poço petroleiro afeta um hectare de terreno. O maior problema da selva, não nós enganemos, se quisermos realmente conservar o meio ambiente, superar o subdesenvolvimento, vamos partir da verdade. Bolívar dizia, “não nos dominaram pela força, mas pela ignorância”.

O principal perigo para a selva não é a exploração petroleira, é a expansão da fronteira agrícola e pecuária. Todo dia, se desmata centenas, senão milhares de hectares, de florestas com a pecuária extensiva que existe na selva, sobretudo no Equador, feita, por exemplo, pelo [povo indígena] Shuar.

A terra na Amazônia não é propícia para o gado, então uma cabeça de gado precisa de um hectare para pastar. É o mais antieconômico que existe, mas como a terra não custou, ela é mal utilizada. "Ah, mas são tradições ancestrais". O gado foi trazido pelos espanhóis. E por que muitas vezes acontece isso? Ou o desflorestamento em que participam muitas vezes os povos ancestrais? Por falta de alternativas de renda.

E essas alternativas de renda podem ser dadas pelos recursos petroleiros. É como na mineração, há muitos mitos. A boa mineração recicla 95% da água. Do contrário, a mineração informal está destruindo nossas selvas e nossos rios. Por quê? Por falta de alternativas de trabalho para essa gente, que pode utilizar bem os recursos da mineração formal, em grande escala.

O principal vetor da contaminação da água doce no Equador, e em quase todos os países da América Latina, são as águas residuais das grandes cidades. Até Quito despeja sua água residual no [rio] Machángara. Consertar isso significa bilhões de dólares que podem vir da mineração.

Se queremos conservar o meio ambiente, temos que partir da verdade, derrubar mitos. Nosso campo [de exploração de petróleo] Pañacocha, que desenvolveu nosso governo, ganhou um prêmio internacional de cuidado ambiental, os recursos ficam para melhorar a comunidade, fizemos comunidades do Milênio, com casas novas, escolas do milênio, centros de recreação. Melhora do nível do nível de vida, atenção à saúde.

Então não é o petróleo o principal perigo para a selva, você pode ter uma exploração petroleira adequada, não é a mineração. É a falta de trabalho e de renda. Por isso, estão desmatando a selva e há pecuária extensiva.


O presidente da Colômbia: Gustavo Petro / Juan Barreto / AFP

Nós temos diferentes gradações na onda progressista de agora, assim como tivemos na onda progressista que o senhor fez parte. Por exemplo, Petro vai à ONU e fala sobre a regulação da cocaína, a folha de coca, mas também temos Gabriel Boric, que faz críticas públicas à Venezuela….

Por isso que digo: há uma heterogeneidade muito maior. Parece que para Boric o principal problema da Venezuela são as exportações que estão bloqueadas. Então do que estamos falando?

E o que acha das críticas de Boric?

Uma barbaridade porque conheço a realidade da Venezuela, sei do que sofreu. A Venezuela é um país que tem seis anos de sanções criminais, mais de 600 [sanções], que tinha US$ 52 bilhões em receitas petroleiras e em 2020 teve US$ 700 milhões.

Bloqueie, então, a venda de cobre do Chile por seis meses, e não seis anos, e vamos ver o que acontece com o país, a migração, as medidas que terão que tomar. E a desestabilização interna gerada por esse bloqueio. Vamos ver as restrições que terá que impor.

Acho inacreditável que esqueçam que a Venezuela está sendo agredida, está bloqueada, tem uma economia de guerra tal como Cuba.

É como encontrar um morto com 40 punhaladas nas costas e dizer que morreu por problemas de saúde. Como se pode aceitar isso? Nem da direita se pode aceitar isso.

Talvez Boric queira ser mais alinhado com uma social-democracia europeia quando diz essas coisas? Porque quando se pensa nessas críticas, não há unidade.

A verdadeira esquerda deveria questionar a democracia liberal. Porque a democracia liberal e a suposta liberdade e o voto são instrumentos de dominação, um dos elementos da democracia são eleições livres, todos estamos de acordo com isso.

Mas para que haja liberdade, [é preciso] que haja verdade, a verdade os fará livres. E que verdade temos com os meios de comunicação que temos? Temos eleições totalmente manipuladas, não temos informações, temos manipulação e com isso não há eleições livres.

Com as assimetrias econômicas que existem na América Latina, isso diz Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia de 2001, necessariamente surgem assimetrias de poder que dominam o sistema político e acabou a democracia.

Nos EUA já não manda o povo estadunidense, manda o grande capital, tudo funciona para o grande capital. Criticam o partido único de Cuba. O erro de Fidel e Raul foi não ter inventado o partido fidelista e raulista e a cada quatro anos sair do poder. É isso que fazem os EUA, os democratas e republicanos. Quais diferenças substanciais entre os dois partidos?

Então a verdadeira esquerda deveria questionar supostas democracias que muitas se convertem em instrumentos de dominação e temos que lutar para que se convertam em instrumentos de liberação. Isso passa pelo desenvolvimento econômico, converter a democracia em desenvolvimento econômico.

A América Latina tem eleições, mas todavia não tem democracia real. E esse é outro desafio da esquerda: construir democracias verdadeiras. Mas Boric não sabe disso. Acredita que existe apenas um modelo democrático, isso não é correto. 

Sobre o que é possível na América Latina. Boric conseguiu agora passar pelo Senado a diminuição da jornada laboral para 40 horas semanais, mas ainda faltam 5 anos para que esse novo limite seja imposto. No Brasil, Lula ganhou, mas com uma coalizão ampla com setores até de centro-direita. Então temos avanços, mas o avanço para a classe trabalhadora do Chile…

Qual é o avanço? Que morram e possam votar? Que você me esteja falando do século 21, 40 horas de trabalho semanais, a maioria dos países latino-americanos, conseguimos [essa jornada] no século 20, ou seja, chamar isso de avanço? É incrível.

Qual caminho você enxerga para a esquerda latino americano, então?

Acredito que se não está disposto a arriscar, não assuma. Eu não poderia assumir para dizer que meu grande feito de governo foi baixar a jornada laboral do século 21 de 44 horas, 40 horas, e isso acontecerá em 5 anos. [Se for] para isso, fico em casa. E na academia acredito que posso colaborar um pouco mais.

Se não está disposto a arriscar… Por isso na América Latina não existe evolução, existe revolução. Nos falam da democracia do consenso, comparando com os países europeus, onde há consenso sobre o sistema, porque lá funcionou, tem um bom nível de vida.

Por exemplo, um país como o Equador tem o PIB per capita ajustado para poder de compra, são coisas técnicas, comparável ao de 1918 nos EUA. Isso significa que é mais próximo aos EUA de 1860 do que o de 2023. E o que aconteceu em 1860?

Em 1861 começou uma guerra civil [nos EUA]. Por quê? Porque um presidente decidiu abolir a escravidão, isso lhe custou uma guerra civil e a própria vida. A pergunta é se Abraham Lincoln poderia ter abolido a escravidão com o consenso dos escravistas? Com os aplausos dos escravistas? Este é mais ou menos o marco da América Latina. A região mais desigual do planeta, exploradora e explorada. Vamos conseguir isso com o consenso dos exploradores? Vamos ajustar isso de forma drástica com evolução ou com uma revolução? Porque Abraham Lincoln foi uma revolução, que lhe custou uma guerra civil. E consertou, [mas] se tivesse perdido a guerra civil, teríamos dois EUA. Todavia é preciso fazer-lo, senão não seja presidente, ao menos como presidente com valores.

Então você acredita que temos que ter mais gosto pelos conflitos?

Não é gosto pelos conflitos, não acredito que ninguém tenha gosto pelos conflitos. Mas falam que somos confrontadores, como não confrontar em uma situação como a da América Latina? Onde nem sequer se paga imposto, então acabam com a evasão de impostos e está confrontando? E vai conseguir que paguem imposto com os aplausos dos evasores?

Durante meu governo, uma empregada doméstica tinha o salário básico de US$ 160 e no código de trabalho dizia que elas ganhavam US$ 80. Na verdade, era uma escrava doméstica. O código de trabalho dizia que tinha apenas uma tarde livre a cada 15 dias, era empregada da porta para dentro, que trabalhava 24 horas. Escrava doméstica, não tinham pagamentos adicionais pela lei, direito trabalhista, aposentadoria, férias. Com que justificativa?

Havia tanta aceitação disso, pelos exploradores e pelos explorados, que nem sequer era discutido, não estava em nenhuma agenda prévia ao meu governo, nem nos partidos de esquerda. E nós acabamos com tudo isso porque são trabalhadoras como qualquer outro, temos que pagar o mínimo, ter direitos trabalhistas, férias. E por isso confrontamos com as senhoras que não podiam ir à academia porque tinham 3 empregadas domésticas que cuidavam dos filhos, cozinha, limpeza e, agora, só podia ter uma, bem paga e com direitos.

No Brasil, temos uma esquerda que tem justificativas da realpolitik, a correlação de forças, e não há como não falar disso, porque dependemos de um Congresso para passar leis, mas talvez seja um perigo pensar que a esquerda tenha sempre o discurso do que é possível? Bolsonaro sempre disse que iria mudar tudo. A radicalidade ficou com a direita?

Pinochet fez isso também, com ditadura, brutalmente. Então me está dando a razão, sendo radical se pode mudar as coisas. Em todo caso, governar é uma arte. Nem covardes em nome da prudência, nem temerários em nome da valentia, acredito que resume bastante bem o que estamos discutindo. Mas a mensagem final aqui: senão disposto a mudar as coisas e arriscar até sua vida, não se diga progressista e não aceite uma candidatura.

As teses do neoliberalismo mudaram com a crise de covid-19, temos EUA e Europa fazendo grandes investimentos públicos. Aqui na América Latina, é difícil que tenhamos o mesmo nível de investimento, então olha-se para a China para que traga dinheiro, projetos. Como garantir esse investimento sem afetar o "bem viver"?

A China é a principal financiadora do mundo, financia os EUA. Necessitamos de financiamento para o desenvolvimento. Equador foi um exemplo de financiamento com a China. Era a fome e a necessidade.

Eles têm capacidade de financiamento e qual é seu tendão de Aquiles? Energia. Petróleo. Qual é nosso tendão de Aquiles? Financiamento. Claro que podemos nos colocar de acordo para ganhar e ganhar. Eu não vejo como isso vai prejudicar o bem viver. Graças a eles temos uma das matrizes elétricas mais amigáveis com o meio ambiente do planeta, uma das cinco mais amigáveis. Graças a eles, fizemos obras de infraestrutura, sistemas de segurança, como isso afeta o bem viver?

Não nos metamos em brigas políticas que não são nossas, a briga entre China e EUA. Aproveitemos essa briga para beneficiar nosso povo, como faz os EUA. Isso é pragmatismo, precisamos aprender com os anglo-saxônicos, EUA e Grã-Bretanha: atuam em função de seus interesses. Qual é a diferença? O que interessa aos EUA não é o povo estadunidense, mas sim o grande capital. Nós temos que conseguir que no interior do nosso país, mande o povo e atuar em função do nosso interesse que, no final do dia, é o interesse do nosso povo e o da grande maioria.

Edição: Patrícia de Matos