MANIPULAR FANÁTICOS É ARTE FÁCIL
Houve algumas mulheres brilhantes nos primórdios da matemática —inclusive Theano, que no século 6º a.C. passou de discípula a mulher de Pitágoras—, mas nenhuma que se comparasse a Hipácia, que viveu no século 4º da era cristã.
MANIPULAR FANÁTICOS É ARTE FÁCIL
SÉRGIO RODRIGUES
Houve algumas mulheres brilhantes nos primórdios da matemática —inclusive Theano, que no século 6º a.C. passou de discípula a mulher de Pitágoras—, mas nenhuma que se comparasse a Hipácia, que viveu no século 4º da era cristã.
Filha de um professor de matemática da Universidade de Alexandria, Hipácia “ficou famosa por fazer as dissertações mais populares do mundo conhecido e por ser uma grande solucionadora de problemas”. As palavras são do inglês Simon Singh, bamba da divulgação científica, no livro “O Último Teorema de Fermat” (Record).
Era danada aquela Hipácia. Matemáticos renomados que não conseguiam resolver problemas cascudos recorriam a ela. Quando lhe perguntavam por que nunca se casara, respondia que já era casada com a verdade.
Cirilo, pilar da Igreja e patriarca de Alexandria, cidade onde conviviam cristãos e judeus —além de pagãos como Hipácia—, começou um dia a “oprimir os filósofos, os cientistas e os matemáticos, a quem chamava de hereges”, conta Singh.
Hipácia era um alvo vistoso para os negacionistas da ciência. E mulher, ainda por cima! O relato de seu fim vai nas palavras de Edward Gibbon (1737-1794), autor do clássico “Declínio e Queda do Império Romano”:
“Num dia fatal, na estação sagrada de Lent, Hipácia foi arrancada de sua carruagem, teve suas roupas rasgadas e foi arrastada nua para a igreja. Lá foi desumanamente massacrada (por uma) horda de fanáticos selvagens. A carne foi esfolada de seus ossos com ostras afiadas e seus membros, ainda palpitantes, foram atirados às chamas.”
Consta que os assassinos daquela mulher notável escaparam à condenação subornando as autoridades. Cirilo, que nada fizera além de incitar covardemente a malta, só precisou assobiar para cima com ar inocente. Quem mandou matar Hipácia?
Para o Houaiss, fanatismo é “zelo religioso obsessivo que pode levar a extremos de intolerância” e também “facciosismo partidário; adesão cega a um sistema ou doutrina; dedicação excessiva a alguém ou algo”.
A ordem dos fatores importa. O fanatismo nasceu religioso e só mais tarde passou a se estender ao mundo laico, embora mesmo neste tenha conservado um ranço de paixão mística.
O latim “fanaticus”, de onde importamos a palavra em fins do século 18, é ligado ao substantivo “fanum”, local sagrado, templo. Era nesses lugares que os primeiros fanáticos se manifestavam, levados a extremos de entusiasmo pela chama divina.
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De inspirado, entusiasmado, visionário, sentidos que poderíamos chamar de positivos, o leque semântico da palavra não demorou a se abrir já no latim clássico para abarcar os sentidos de furioso, louco, delirante, desvairado, desatinado.
Afinal, quem acredita estar recebendo ordens diretamente do próprio Deus não costuma dar ouvidos a mais ninguém.
O que não está nos dicionários, mas nunca careceu de demonstrações práticas ao longo da história, é a facilidade com que líderes políticos sem escrúpulos manipulam em proveito próprio, soprando a tal “chama divina”, esta fraqueza nunca ausente nas coletividades humanas: a propensão ao fanatismo.
O espetáculo desolador protagonizado nos últimos dias pela franja mais desatinada do bolsonarismo, uma pobre gente manipulada covardemente por nossa versão século 21 do patriarca Cirilo, me lembrou o destino terrível de Hipácia.
Se lhes dermos a chance, vão esfolar a democracia viva com ostras afiadas. E nem precisarão subornar ninguém depois.