COMO SE DEU O SUPORTE DOS MILITARES AO GOLPISMO DE 8 DE JANEIRO

COMO SE DEU O SUPORTE DOS MILITARES AO GOLPISMO DE 8 DE JANEIRO

anais da intentona

COMO SE DEU O SUPORTE DOS MILITARES AO GOLPISMO DE 8 DE JANEIRO

Sem o apoio das Forças Armadas, a intentona golpista que depredou a Praça dos Três Poderes não teria acontecido

 

 

Em reportagem publicada na edição de junho da piauí, Ana Clara Costa conta como os militares – em especial os de  patentes mais altas – conspiraram para reverter a eleição de Lula e acabaram ajudando no 8 de janeiro. Aqui, as principais passagens:

– Na primeira semana de novembro, o Comando Militar do Planalto (CMP) pediu ao governo do DF que deixasse em paz os bolsonaristas acampados em frente ao QG do Exército, em Brasília. Em ofício, o coronel Fabiano Augusto Cunha da Silva, do CMP, pediu ao governo do DF que fizesse limpeza e providenciasse ambulância e policiamento – mas alertou que a PM não poderia jamais entregar no lugar. O general Gustavo Dutra, comandante do CMP, reforçou as limitações, dizendo que qualquer ação da PM no local só poderia retirar vendedores ambulantes, mas não manifestantes. Era uma novidade e tanto: nunca o Exército, desde a inauguração de Brasília, permitira que cidadãos comuns se concentrassem naquele espaço em frente ao QG, considerado uma área de segurança.

– No dia 12 de novembro, aconteceu a primeira tentativa de retirar os acampados. O plano da Segurança de Segurança Pública do governo distrital chamava-se “Operação para a Retirada do Acampamento”. Com medo de que o documento vazasse e irritasse Bolsonaro e os acampados, o Exército pediu para mudar o título para “Operação para Reprimir o Comércio Ambulante”. Quando a operação teve início – começando pela retirada dos ambulantes – os fiscais do DF foram hostilizados pelos acampados. Deixaram o local sob o risco de linchamento. A PM, que se posicionava ao lado do acampamento, nada podia fazer para proteger os fiscais. E a Polícia do Exército permitiu que fossem hostilizados e expulsos. Mais tarde, os servidores do governo do DF deixaram registrada em documento a inação dos militares.

 

– No dia 7 de dezembro, quando o acampamento já contava com quase 50 mil pessoas, organizou-se nova tentativa de desmobilização. Novamente, na hora H, os fiscais do DF foram expulsos pelos acampados, sem que a Polícia do Exército agisse. Em vídeos na internet, pode-se ver a polícia protegendo acampados que atacam os fiscais. De novo, o Exército abortou a operação porque não havia “condições de segurança das equipes de fiscalização”. 

– Na transição de governo, em dezembro, o indicado para o Ministério da Defesa, José Múcio, tentou contato com os três comandantes militares. Suas ligações nunca foram atendidas, seus recados nunca receberam retornos e seus pedidos de visita sempre foram repelidos. Múcio teve, inclusive, que pedir ajuda ao então presidente Jair Bolsonaro, que se dispôs a desanuviar o ambiente. Só então o general Freire Gomes (Exército) e o brigadeiro Baptista Júnior (Aeronáutica) receberam Múcio. O almirante Almir Garnier (Marinha) recusou-se a conversar. 

– No dia 29 de dezembro, houve nova tentativa de desfazer o acampamento, em acordo com o general Gustavo Dutra, do Comando Militar do Planalto. Às 6h30 da manhã, os fiscais de comércio ilegal do DF começaram expulsando os ambulantes – e, mais uma vez, foram atacados pelos acampados. O general Dutra, que acompanhava a ação in loco, não se indignou com os ataques aos servidores do DF, mas com a quantidade de policiais. Ali mesmo, mandou uma mensagem de WhatsApp a um funcionário da Secretaria de Segurança Pública do DF reclamando: “Estou preocupado com a quantidade de meios [policiais] que vieram. Conforme pleiteado, deve ser sem violência”. E voltou a lembrar os limites da ação: “Retirada das estruturas [barracas] vazias. A tropa hipo [cavalaria], só em último caso. Não podemos subir a temperatura hoje.” A Polícia do Exército não protegeu os fiscais, entrou em atrito com a PM e o general Dutra, novamente, abortou a operação de retirada dos acampados.

 

– Entre 26 e 30 de dezembro, o pesquisador Guilherme Lemos da Silva Moreira, da Universidade Federal de São Carlos, ficou à paisana no acampamento, colhendo material para um trabalho de antropologia social. Testemunhou o corpo mole da Polícia do Exército. “Eles quase pediam desculpas por terem de chamar a atenção dos acampados por algum motivo”, conta Lemos. Segundo ele, os militares ajudavam com o trânsito quando os manifestantes partiam para fazer buzinaços e apartavam eventuais brigas. O estacionamento da Poupex, a previdência privada do Exército, foi até liberado para uso dos acampados motorizados. A única vez que o pesquisador presenciou ação mais contundente dos militares foi quando dois repórteres estavam sendo espancados por bolsonaristas. Usaram gás de pimenta para apartar.

– Em depoimento à CPI do Distrito Federal, o comandante-geral da PM, coronel Jorge Eduardo Naime Barreto, contou que começou a sentir a animosidade do Exército assim que se aproximou do acampamento no QG para efetuar as prisões, na noite do dia 8. Ao posicionar a tropa de choque para ação, foi abordado por um tenente do Exército. Exaltado, o militar dizia que o coronel não podia estar ali fazendo prisões porque era “área do Exército”. O coronel prosseguiu com as prisões, levando cerca de cinquenta pessoas. Minutos mais tarde, viu uma cena insólita. “Quando eu olhei para trás, tinha uma linha de choque do Exército, montada com blindados”, disse. “Eles não estavam voltados para o acampamento. Eles estavam voltados para a PM, protegendo o acampamento.”

– Na noite de 8 de janeiro, quando os policiais se preparavam para prender os acampados que tinham acabado de depredar a Praça dos Três Poderes, o Exército voltou a proteger os baderneiros. Conforme a piauí apurou, o então interventor do DF, Ricardo Cappelli, teve uma conversa dura com o general Dutra, comandante militar do Planalto, que começou prevendo uma catástrofe se houvesse prisões: “Se o senhor entrar [no acampamento], haverá um banho de sangue”, disse Dutra. Cappelli perguntou: “Banho de sangue por quê, general? Por acaso tem manifestante armado dentro do acampamento, sendo protegido pelo Exército?”. O general respondeu que não. “É porque está de noite, os ânimos estão exaltados, vai ter gente que vai correr, vai ter enfrentamento, as pessoas podem se machucar.” O banho de sangue, bem entendido, seria a tropa do Exército investindo contra os policiais, e não contra os manifestantes. 

 

– Na mesma noite de 8 de janeiro, Ricardo Cappelli encontrou-se com comandante do Exército, Júlio Cesar Arruda, no prédio do Comando Militar do Planalto. O general estava irritado com a tentativa de prender os baderneiros que se refugiaram no acampamento depois de depredar a Praça dos Três Poderes. Arruda abriu a reunião usando sua artilharia verbal. 

– O senhor ia entrar aqui com tropas sem a minha autorização? – indagou Arruda, dirigindo-se a Cappelli. 

– Não, general. Eu ia consultá-lo – respondeu Cappelli, constrangido com a abordagem à queima-roupa. 

– Eu acho que tenho uma tropa um pouco maior que a sua, não é, coronel Fábio Augusto? – provocou Arruda, virando-se para o comandante da PM, que presenciava a conversa. 

Cappelli argumentou que a situação daquela noite era absurda, que o acampamento tinha de ser desfeito e as prisões precisavam ser efetuadas o quanto antes. 

– O senhor não concorda, general? – perguntou Cappelli. 

– Não – cortou Arruda. – O senhor tem que entender que o Brasil está dividido. 

A resposta do comandante do Exército, que descumpria uma ordem para prender os baderneiros, deixava claro de que lado estavam os militares.

– Ao raiar do dia 9 de janeiro, quando finalmente o Exército concordou em prender os baderneiros e desmobilizar o acampamento, a operação transcorreu com uma tranquilidade absoluta. Um capitão do Exército pegou um megafone e orientou os acampados a deixarem as barracas e se dirigirem, levando seus pertences, aos ônibus estacionados ali perto. Eles obedeceram, seguindo em fila. Estavam, finalmente, presos, sem qualquer reação, tumulto ou banho de sangue.

– O general Júlio Cesar Arruda protegeu um ninho de manifestantes – que incluía criminosos, como os que tentaram explodir uma bomba perto do aeroporto de Brasília –, resistiu à ordem do interventor de prender os golpistas e chegou ao extremo de usar o batalhão de choque do Exército para arreganhar os dentes diante de uma tropa da Polícia Militar. Mesmo assim, atravessou a tempestade sentado na cadeira de comandante do Exército. Hoje, está na reserva.