Não são todos iguais: os cabos da FAB e os generais do Telegram

Não são todos iguais: os cabos da FAB e os generais do Telegram

Não são todos iguais: os cabos da FAB e os generais do Telegram

Os militares da alta patente que sustentaram o bolsonarismo hoje reaparecem em entrevistas, colunas e vídeos tentando reescrever o passado recente

 

(Foto reprodução)

 

 

Em 12 de outubro de 1964, sete meses após o golpe militar que depôs o presidente João Goulart, o Ministério da Aeronáutica editou a Portaria nº 1.104-GM3. O texto estabelecia que cabos da Força Aérea Brasileira só poderiam permanecer no serviço ativo por no máximo oito anos, exceto se fossem aprovados em concurso para sargento. Na prática, tratava-se de uma medida de saneamento ideológico, um expediente com aparência administrativa, mas função política clara: expurgar da corporação militares de baixa patente que simpatizavam com o trabalhismo, o nacionalismo desenvolvimentista ou simplesmente com a legalidade democrática.

Cerca de 3 mil cabos foram atingidos. Dispensados sumariamente, sem processo administrativo, sem direito à defesa. Essa massa de homens formava o núcleo mais vulnerável da caserna, a base da pirâmide militar. Foram cortados sem alarde. Ao contrário de muitos oficiais da ativa, esses cabos não tinham como negociar sua permanência. Foram silenciados junto com o país.

A Constituição de 1988 abriu caminho para a justiça de transição, e em 13 de novembro de 2002, nos últimos meses do governo Fernando Henrique Cardoso, foi criada oficialmente a Comissão de Anistia, por meio da Lei nº 10.559. Seu objetivo era reconhecer e reparar os atingidos por atos de exceção cometidos entre 1946 e 1988. Mas foi só em 2003, já no governo Lula, que os primeiros casos começaram a ser julgados com sistematicidade, e os cabos da FAB passaram a ser reconhecidos como vítimas da ditadura.

Cerca de 2.500 anistias foram concedidas. O processo teve continuidade nos anos seguintes, até que em 2011, durante o governo Dilma Rousseff, começou um movimento interno de revisão. Mesmo assim, as anistias continuaram sendo vistas como parte de uma política de reparação legítima, ainda que passível de aperfeiçoamento técnico.

A inflexão veio em 2016, com o golpe institucional que afastou Dilma Rousseff da presidência. A Comissão de Anistia, que havia sido referência internacional, passou a ser esvaziada. Técnicos com histórico na luta pelos direitos humanos foram substituídos por nomes ligados à nova direita. Em 2019, sob o governo de Jair Bolsonaro, o processo ganhou contornos de revanche. À frente do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves conduziu pessoalmente uma política agressiva de revisão de anistias, especialmente as dos cabos da FAB. O argumento era que eles não haviam comprovado perseguição política, ignorando o próprio caráter da portaria que os dispensou, assinada em pleno início da ditadura, com uso seletivo e evidente motivação política.

A ofensiva teve respaldo no Supremo Tribunal Federal. Em julgamento realizado em 16 de outubro de 2019, no Recurso Extraordinário 817.338, o STF decidiu que a administração pública poderia revisar as anistias, desde que respeitado o devido processo legal e sem exigir devolução de valores recebidos. A decisão abriu a porteira. Em 2020, o ministério de Damares anulou dezenas de anistias com base nessa autorização.

Mas o pêndulo jurídico voltou a oscilar. Em março de 2025, o Supremo Tribunal Federal invalidou 36 dessas portarias de revisão, restaurando os direitos de dezenas de ex-cabos e reconhecendo que a Portaria 1.104, por sua origem e efeitos, não poderia ser tratada como mero ato administrativo. A perseguição era evidente. A reparação, necessária.

Essa história precisa ser contada assim, com datas, nomes e contexto. Porque ela não é sobre militares tentando limpar a biografia depois de flertar com o autoritarismo. É sobre gente simples, da base, que teve sua vida destroçada por ter acreditado que o Brasil podia ser soberano e justo. E enquanto esses homens passaram décadas esperando que o país os visse, os militares da alta patente que sustentaram o bolsonarismo hoje reaparecem em entrevistas, colunas e vídeos tentando reescrever o passado recente.

Alguns foram ministros, como Walter Braga Netto. Outros ocuparam cargos-chave, como Augusto Heleno e Luiz Eduardo Ramos. Todos silenciaram ou participaram diretamente de um governo que atacou o STF, ameaçou o processo eleitoral, destruiu políticas públicas e instrumentalizou as Forças Armadas. Agora, alguns deles aparecem como moderados, técnicos, patriotas. Tentam limpar a digital. Mas o toque já foi dado.

Não é tudo igual. Os cabos da FAB foram perseguidos por defender um país soberano. Os generais bolsonaristas tentam corrigir a rota, não por arrependimento, mas por cálculo. Sabem que a História está de olho, e o tempo da impunidade institucional está mais curto.

Se a anistia ainda tem algum sentido no Brasil, ela deve servir para reconhecer os perseguidos, não para absolver os cúmplices.

NOTA: Essa história precisa ser contada assim, com datas, nomes e contexto. E precisa ser contada também com lugar de fala. Minha família, como tantas outras, foi marcada profundamente pela perseguição e violência da ditadura militar. Escrever não é um exercício de análise equilibrada entre dois extremos, nem uma tentativa de ver beleza no alto do muro. É um testemunho de quem carrega os efeitos colaterais e a memória de um tempo em que o Estado brasileiro falhou com os seus, e insiste em repetir essa falha.