Amorim: “o mundo tem sede de um novo Brasil”

Para ele, declínio da hegemonia dos EUA e do neoliberalismo fiscal abre caminho para ordem multipolar. País será decisivo, caso se livre do bolsonarismo

Amorim: “o mundo tem sede de um novo Brasil”

Amorim: “o mundo tem sede de um novo Brasil”

Num cenário internacional marcado por crises e incertezas, ex-chanceler vislumbra brechas. Para ele, declínio da hegemonia dos EUA e do neoliberalismo fiscal abre caminho para ordem multipolar. País será decisivo, caso se livre do bolsonarismo

OUTRASPALAVRAS

CRISE BRASILEIRA

por 

Entrevista a Antonio Martins

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O diálogo com Celso Amorim encerra a primeira fase do projeto Resgate. As 47 entrevistas realizadas em 2021 estão disponíveis no canal OP-TV. Parte do material já foi transcrito e publicado em texto. O Resgate voltará, ampliado, no ano decisivo de 2022

Às vésperas do final do ano, algumas das ideias centrais lançadas por Outras Palavras há seis meses, no Projeto Resgate, parecem estar ainda mais vivas. As chances de o Brasil derrotar a ameaça fascista concretizaram-se e são mais amplas do que nunca – embora dependam, ainda, de muita luta e inteligência. E este esforço será ainda mais necessário para impulsionar, após a possível vitória eleitoral, as mudanças estruturais de que o país precisa – pois contra elas armam-se, desde já, as resistências. Mas e o cenário internacional, tão decisivo? Como ele pode influir na conjuntura brasileira que se abrirá a partir de 2022? E de que forma um país empenhado em transformar a si mesmo pode influir numa ordem mundial conturbada e caótica?

Na manhã da última quarta-feira (15/12), o ex-chanceler Celso Amorim interrompeu uma agenda intensa para conversar sobre este tema crucial. Nas semanas anteriores, ele acompanhara Lula em dois eventos de enorme repercussão. Esteve na Europa, onde o ex-presidente, recebido com distinção incomum, falou claramente em combater a desigualdade e em novas relações com a natureza. E foi à Argentina, onde Lula propôs retomar e expandir o projeto da unidade lationamericana. No diálogo, Amorim pareceu, aos 79 anos, contagiado por estas experiências. Sua liderança no Itamaraty, entre 2003 e 2011, fez da política externa um dos pontos avançados, em um governo que, segundo ele próprio, combinou elementos “de centro e de esquerda”. No novo cenário, pensa o ex-chanceler, é possível ir mais longe. “O mundo tem sede de um novo Brasil”, diz ele, citando fala recente do ex-primeiro-ministro francẽs Dominique de Villepin.

Duas alterações marcantes na ordem internacional levam Amorim a vislumbrar brechas. A primeira, ele qualifica como “algo que acontece uma vez em cada século”. Os EUA, potência dominante, estão sendo ultrapassados no terreno econômico pela China. Mas sua capacidade de comandar a ordem global está enfraquecida também em outros domínios – inclusive o bélico. Em 2003, quando o ex-chanceler assumiu pela segunda vez o ministério das Relações Exteriores (ele chefiou o Itamaraty também no governo Itamar Franco), Washington pôde ignorar o Conselho de Segurança da ONU e iniciar a segunda guerra contra o Iraque. Agora, lembra Amorim, além da emergência econômica da China há o ressurgimento político-militar da Rússia – o que limita ainda mais a capacidade de ação dos EUA. Em tensão, os norte-americanos oscilam. Sob Trump, voltaram as costas para o mundo. Com Biden, ensaiam um retorno às instituições internacionais. “Mas ainda não se deram conta de que não poderão voltar a fazê-lo na condição de potência hegemônica”, destaca o ex-chanceler.

A segunda transformação é o declínio do neoliberalismo fiscal. A ideia de que as políticas econômicas devem, em toda parte, ser presididas pela obsessão de “não contrariar os mercados” está ruindo. No país de em que surgiu o “consenso de Washington”, lembra Amorim, o presidente Joe Biden pendura um retrato de Franklin Roosevelt numa parede da Casa Branca, lança pacotes trilionários de cuidado social e estímulo à economia e propõe aumentar os impostos sobre os super ricos e as corporações.

Esta virada, prossegue o ex-ministro, tem impacto direto nas relações internacionais. A pressão pelo “acordos de ‘livre’ comércio” tende a ser menor. Já é possível argumentar, por exemplo, que as cláusulas destes pactos que estabeleciam, quase obrigatoriamente, amplos privilégios para as empresas (os famigerados “direitos do investidor”) resultam com frequência em ataque aos direitos sociais e devastação da natureza.

Que estratégias Celso Amorim imagina, para navegar no cenário deste novo oceano global? Nesse ponto, ele retoma uma antiga trajetória. O papel do Brasil está ligado, em primeiro lugar, ao da América do Sul, pensa. Aqui, seria possível pensar processos de integração tão intensos quanto os que marcaram a União Europeia décadas atrás. A Unasul – que os governos de direita tentaram enterrar – precisa ser reconstruída. O Mercosul, reavivado — com a imediata incorporação da Bolívia. E a Cepal, que inclui México, Caribe e América Central, retomada.

Amorim vê, neste processo, duas velocidades, ditadas pela geopolítica. A integração sul-americana pode ser rápida. Até mesmo governos de direita (como o de Alvaro Uribe, na Colômbia), ou neoliberais (como o de Alejandro Toledo, no Peru) aderiram a ela, porque precisavam de uma contrapartida ao poder dos Estados Unidos. A situação do México – e, em medida ainda maior, a dos países da América Central – é distinta, devido a uma integração muito mais profunda com a economia e a sociedade norte-americana. Mesmo assim, o ex-chanceler anima-se com a potência de uma possível parceria política entre Lula, o argentino Alberto Fernández, o mexicano Lopez Obrador e – atenção total às eleições deste 19/12! – o chileno Gabriel Boric.

O segundo ponto da estratégia de Amorim é a África. O ex-ministro julga que o Brasil pode propor, ao continente, parcerias distintas das oferecidas por Estados Unidos, Europa e China. Refere-se, em especial, a ações no campo da Saúde (Brasília ajudou, durante os governos de Lula, a articular programas contra a AIDS) e produção de alimentos (a Embrapa deu assistência técnica a países africanos; o Brasil chegou a reunir, num encontro, ministros e subministros da Agricultura de 40 das 55 nações do continente). Mas tem em vista também parcerias econômicas e geopolíticas e lembra que o apoio africano foi essencial para que Brasília elegesse os diretores-gerais de órgãos como a FAO (José Graziano – 2012-2019) e OMC (Roberto Azevedo: 2013-2020).

De que forma um Brasil do qual “o mundo tem sede” poderia contribuir para o surgimento de uma ordem internacional menos hierarquizada e desigual? Amorim continua defendendo a reforma do Conselho de Segurança da ONU e a multiplicação de fóruns informais menos dominados pela ordem eurocêntrica – como o G20. Indagado sobre a possível desambição desta agenda, ele reage com uma proposta ousada. Lembra que continua propondo “uma nova São Francisco”. Refere-se à conferência, nos Estados Unidos, que levou à criação das Nações Unidas, em 1945. Argumenta que, num mundo tão distinto do que havia então, é espantoso não terem surgido outras formas de governança global. E parece concordar que a globalização atual é um processo opaco, não democrático e colonizado pelo capital e pelos Estados mais poderosos.

Há muito a debater com o ex-chanceler. Ele continua a defender a participação central do Brasil na intervenção da ONU no Haiti, iniciada durante seu período no Itamaraty. Ao falar das relações com a África, talvez releve o papel da própria Embraba no estímulo à concentração fundiária, em países como Moçambique (o economista Ignacy Sachs advertiu certa vez que, nas condições em que agia, o Brasil arriscava-se a exportar, aos africanos… o latifúndio).

Mas, numa época em que o país apequenou-se tanto, é impossível não lembrar, com saudades e desejos, da “diplomacia ativa e altiva” de Amorim. Ou da frase lapidar de Chico Buarque, que disse, em 2010, orgulhar-se de viver num país “que não fala fino com Washington, nem fala grosso com a Bolívia”. A entrevista está se encerrando quando o ex-chanceler depara-se com uma pergunta final. Estaria disposto a reassumir o posto de chanceler? Sai-se com uma metáfora militarque não nega a possibilidade. De toda a conversa, fica a impressão nítida. Caso a hipótese se concretize, o Itamaraty será um ponto de apoio crucial aos que se empenham em livrar o Brasil de tudo o que nos trouxe ao fundo do poço.

Leia a transcrição da entrevista completa:

Antonio Martins: Oi, boa noite. Eu sou o Antônio Martins, editor do site Outras Palavras e esse é o Resgate. O Resgate é o programa que procura discutir a possibilidade de vencer o fascismo, em 2022, e a possibilidade de que nós não voltemos simplesmente ao velho normal. O velho normal foi o que nos trouxe até aqui, o velho normal, são os 500 anos de colonização, é a inserção num capitalismo dependente periférico, são os últimos 40 anos de neoliberalismo. Nós temos a satisfação muito grande de receber, hoje, pra discutir o Brasil pós ameaça fascista e pós-neoliberal, não são favas contadas, mas é uma possibilidade real e nós vamos discutí-la com o embaixador Celso Amorim, ex-ministro das relações exteriores do Brasil, uma figura notável justamente pelo esforço bem-sucedido em mudar no plano internacional, a condição de país dependente, colonizado, do Brasil. É importante a gestão do ministro Celso Amorim, e o Brasil se retirou da ALCA, o projeto de dominação dos Estados Unidos, de recolonização dos Estados Unidos. O Brasil teve papel decisivo na construção da UNASUL e da Antonio Martins: CELAC, duas articulações dos povos da América e dos povos e dos estados da América Latina, de caráter autônomo. O Brasil teve uma política completamente distinta em relação à África, participou da criação dos BRICS e se envolveu, inclusive, em iniciativas de busca da paz internacional como a tentativa de resolução do conflito entre os Estados Unidos e o Irã, realizada de forma inédita.

E nós queremos discutir com o embaixador Celso Amorim as possibilidades e as condições de que o país, que virou motivo de chacota nas relações internacionais mais recentemente, volte a ter esse papel. Boa noite, embaixador! Nós estamos falando de dia, excepcionalmente nesse programa do Resgate está sendo feito em gravação, devido à agenda do embaixador, mas as pessoas não ver na quinta-feira à noite. Então, bom dia, boa noite, embaixador!

Celso Amorim: Boa noite.

Antonio Martins: Boa noite a todos! Embaixador, eu lhe faço uma primeira pergunta, assim como em 2003, um novo governo brasileiro tende a assumir num cenário internacional instável e marcado por desequilíbrios, talvez, ainda maiores. Em 2002, nós tínhamos a guerra dos Estados Unidos contra o Iraque, desafiando a ONU, e a possibilidade de uma ordem multilateral. Agora, nós temos uma pandemia em que a reposta internacional é claramente desarticulada. Como o senhor vê o papel do Brasil na tentativa de articular, por exemplo, uma ação comum mínima, que inclua a quebra das patentes e a vacinação de toda a população mundial?

Celso Amorim: Olha, Antonio, são questões muito amplas e complexas, né? Eu vou, talvez, começar pelo seu comentário inicial. Começar pela análise da própria relação internacional. Não quero ir muito longe nisso, se você quiser depois a gente aprofunda. É verdade que, naquele momento, havia talvez uma menor instabilidade no sentido que hegemonia norte-americana, não era praticamente contestada a própria guerra do golfo, a guerra do Iraque e a segunda Guerra do Golf, na invasão do Iraque. Em 2003 ela foi algo contestado no conselho de segurança. Nos Estados Unidos foram, assim mesmo, de maneira unilateral, com apoio, único apoio significativo, realmente, foi do Reino Unido. Então, agora eu acho que é uma coisa, a situação um pouco mais complexa. E que tem lados bons e maus. Eu não vou falar da pandemia – já já! – mas antes de falar da pandemia, preciso que nós tenhamos presente que o mundo está numa transformação que é um tipo de transformação que ocorre uma vez em cada século. É a ultrapassagem da economia líder, da economia maior do mundo, que é a economia norte-americana, pela economia chinesa. Isso não é um fato trivial, né? Ainda mais que são formas de organização da sociedade, da economia, muita semelhanças também em vários aspectos, mas tem também muita diferenças. Então, mesmo que não haja abertamente uma guerra ideológica, do tipo que houve na na Guerra Fria, você tem uma rivalidade que é importante. E tem também um contexto mundial mais complexo, não vou discorrer sobre isso senão nós ficaríamos muito longe, vou tentar passar para a sua questão.

Ao mesmo tempo você enfrenta, eu diria que três grandes, de natureza social global, e outros aspectos que poderíamos mencionar. Uma das três grandes crises, primeiro a que você mencionou, a pandemia, a mudança climática de maneira acelerada e cada vez mais perigosa, e a desigualdade, que se tornou, até pra muitos setores, até muitos setores do capitalismo mundial percebem que esse nível de desigualdade é disfuncional. Outros não, outros apostam na superexploração e querem continuar nesse caminho. Então, é um mundo em mutação, né? O que eu vejo é que o Brasil tem que atuar de maneira, digamos, com as suas possibilidades, naturalmente, nós, digamos, consolidar ou fortalecer certa tendência à multipolaridade, porque ao mesmo tempo que você tem essa rivalidade, Estados Unidos – China, como algo dominante, você tem a Rússia que continua sendo uma grande potência militar, você tem a União Europeia, que o presidente Lula acabou de visitar, depois podemos falar – se você quiser – visitou quatro países europeus, você tem a União Europeia que tem força, tem capacidade de inovação, inclusive, apesar do Bush chamá-la de “a velha Europa”, mas é uma velha Europa que inova, que tem capacidade de pensar coisas novas, de agir de maneira nova, haja vista as eleições recentes na Alemanha, nos países que escandinavos etc. E você tem os países em desenvolvimento, que você mencionou aí, da Ásia, da África da América Latina e Caribe que também compõe um quadro específico. Então, nesse quadro, o Brasil, que é um grande país – hoje em dia ele não é um grande país, infelizmente, porque ele está apequenado – mas que é um país grande, que tem um enorme potencial pra atuar internacionalmente. Ele deve fortalecer as tendências, nesse sentido, no sentido de consolidar a multipolaridade e, ao mesmo tempo, trabalhar para uma maior cooperação internacional, tentando, digamos, aumentar as áreas de cooperação e diminuir as de conflito.

Isso que eu estou dizendo pode parecer utópico, mas é assim que tem que se trabalhar, não sozinho, tem que ser solidário, tem que ser – nós dissemos a propósito da da política externa, em 2003 – ativo e altivo, mas tem que também ser solidário com os países de nível de desenvolvimento semelhante, já começando pela América Latina e Caribe, América do Sul, obviamente, mas também com África e outros. Um panorama muito geral e depois, talvez, eu possa dar alguma resposta. Só pra falar uma coisa que você mencionou, que eu acho que deveria também mencionar, é a questão das patentes. O Brasil sempre teve uma posição de liderança nesse campo. Aliás, devo dizer que até antes do do nosso governo, do governo do presidente Lula, que levou isso adiante, mas já tinha uma posição de liderança, né? E é triste, lamentável, ver o Brasil em certo momento, nem só a reboque, mas assim como obstáculo, há uma visão mais – agora parece que está mudando um pouquinho, porque os próprios Estados Unidos mudaram um pouco, então fica difícil não mudar – mas o Brasil, no mínimo, é um reboque, quando não como obstrução para uma distribuição mais democrática de medicamentos, nesse caso das vacinas.

Antonio Martins: Embaixador, vamos aprofundar, já que o senhor já começou debatendo a crise da unipolaridade americana, emergência da China como potência econômica, a reemergência da Rússia, que nunca deixou de ser, mas, agora, aparece mais claramente como uma potência militar, inclusive desafiando os Estados Unidos, no próprio Oriente Médio. E os Estados Unidos, ao mesmo tempo, embora com uma política bastante transformada interna, mas parecem insistir na tentativa de emparedar a China. Essa nova situação, em que os Estados Unidos não dão todas as cartas, como o senhor vê a possibilidade de aproveitá-la, pra isso que o senhor chama de uma ordem multipolar?

Celso Amorim: Olha, deixa eu tentar analisar por partes. Os Estados Unidos, você tem lados positivos e lados não tão positivos. Para ser assim eufemístico, diplomático. O lado positivo é que há uma certa volta ao mundo multilateral, quer dizer, os Estados Unidos voltam a se interessar pela questão do clima, voltam para o acordo de Paris, voltam pra Organização Mundial de Saúde. Isso é positivo. Não é, digamos, suficiente, mas é positivo, é uma atitude diferente da atitude do Trump. Agora, eu acho que os Estados Unidos voltaram para o mundo, sem perceber as mudanças que ocorreram no mundo, expectativa de que seria como foi nos anos noventa, por exemplo, e de certa maneira até no início dos anos dois mil… é, digamos assim, a potência dominante, a potência hegemônica, né? Isso não é mais possível! Então isso, obviamente, cria também instabilidades que nós estamos vendo.

Você citou os países, nós podemos até citar as regiões onde isso acontece. O mar do sul da China, Taiwan especificamente. No caso da Rússia, a questão da Ucrânia, para falar assim muito superficialmente das questões mais candentes, né? Então, há isso, mas, agora, como é que vai se lidar com isso, é um questão ainda que tem que ser desenvolvida. Eu acho que é preciso que haja compreensão, de parte a parte, mas, sobretudo dos Estados Unidos, de que é um mundo novo. Os Estados Unidos não estão acostumados a atuar no mundo, os Estados Unidos eram país muito isolacionistas, só deixaram de ser isolacionistas para ser dominantes. Então, participar de um mundo porque não há como mais ser isolacionista, em que, ao mesmo tempo os Estados Unidos não são uma potência hegemônica, é uma situação com a qual eles não estão habituados. É um problema, independentemente do que nós possamos pensar do capitalismo e tal, que é outra análise também obviamente é importante, mas digamos, eles não estão, talvez até intelectualmente, psicologicamente, preparados para participar de um mundo em que eles são iguais. O Obama, de certa maneira, começou a pensar nisso. O Obama, foi o primeiro presidente americano, que eu saiba – eu até tenho procurado novamente esse discurso dele e não consegui encontrar, se você for um bom pesquisador será uma ajuda – mas o foi o primeiro presidente americano que falou em multipolaridade e até quando ele falou de liderança, vamos liderar por trás, que é uma forma exótica de liderar. Mas de qualquer maneira, havia uma consciência de que eles já não eram mais a potência totalmente dominante. Eles poderiam ter uma certa hegemonia, mas agora a situação mudou ainda mais. Principalmente – você apontou os dois fatos, eu apontei, você completou – a questão econômica, obviamente, que a China desponta como uma maior potência mundial, ela já é a maior economia do mundo, em termos de poder de compra, que é um dos critérios que o FMI, o Banco Mundial usa, mas ao longo da década, com certeza, se não houver nenhum fato absolutamente excepcional, será também a maior potência em termos de preços de mercado. Portanto, será indiscutivelmente a maior economia do mundo. E na Rússia, eu diria que as mudanças foram mais subjetivas do que objetivas. Não é que a Rússia tenha tido um surto de crescimento fenomenal. Não! Ela até andou muito estagnada, depois, dependendo um pouco dos preços do petróleo, do gás, melhora um pouco, mas ela não teve um um surto excepcional, continua desenvolvendo seus armamentos, mas houve uma atitude subjetiva assertiva que, no período imediato pós Guerra Fria, não havia. Digamos, talvez, que o símbolo maior disso tenha sido a a questão da Crimeia. Pode analisar também. Mas essas questões são complexas, elas criam instabilidades, há risco de conflitos, isso tem que ser encarado com realismo, pelo secretário geral da ONU, porque quem quer que tenha influência, alguma influência na na paz internacional, pelos países também, países como da União Europeia, Alemanha, França, podem ter um papel, acho que América Latina pode ter um papel… e tem também, mas ao mesmo tempo cria oportunidades, a oportunidade que de você poder dialogar sem exclusões. Quer dizer, você pode dialogar com a China, obter o que tem de melhor e tentar também continuar dialogando com os Estados Unidos. Em muitos aspectos, Estados Unidos continuam sendo o país mais avançado. Talvez, a China passe também, não sei, em termos de tecnologia, mas ainda são os Estados Unidos.

Então, eu acho que há várias coisas que nós podemos fazer e fazer, sobretudo, sem a ideia de que nós temos que nos alinhar a um país ou a um bloco. Acho que o o grande pecado do período pós-Dilma, pós-PT, pós-Lula foi, digamos, a volta a uma certa dependência em relação aos Estados Unidos, mas, no período Bolsonaro, de maneira extrema porque aí já não era mais dependência, era subserviência e de caráter inclusive pessoal, a uma pessoa, o Trump. Então, eu acho que essas mudanças nos Estados Unidos, eleição do Biden, não mudaram muito, como você disse, em vários aspectos do relacionamento internacional, mas mudaram internamente, isso não deixa de ter também algum efeito. Você por exemplo vê, hoje, uma reação dos deputados norte-americanos, das bancadas, não necessariamente só do Bernie Sanders, não, um pouco mais ampla, há uma aproximação, por exemplo, com o Brasil do Bolsonaro, coisa que você não veria em outros períodos. Então, eu acho que isso tudo faz com que o mundo mereça uma atenção especial. Mas, obviamente, o mais importante nós ainda não falamos, que é a América Latina, Caribe e África, você vai falar depois de BRICS, enfim.

Antonio Martins: Vamos chegar lá, já. E, além de não se curvar, de não aceitar uma postura submissa, o senhor foi muito ativo nesse campo de aproveitar as brechas da ordem internacional. Vou citar alguns exemplos, todo mundo sabe a história do BRICS, mas por exemplo o Brasil sediou, não me lembro o ano, uma conferência entre países da América do Sul e países árabes, q

ue foi 2005.

2005, uma conferência inédita. Alguns anos mais tarde o senhor tomou a iniciativa de convidar o chanceler da Turquia para negociar, com sucesso, um acordo para terminar com o conflito entre Estados Unidos e o Irã. No primeiro caso, a mídia brasileira disse que era um absurdo, que não tinha sentido o Brasil querer se articular com os países árabes, que isso estava fora do escopo da nossa diplomacia. No segundo caso, a iniciativa foi bombardeada pela própria secretária de estado dos Estados Unidos, a Hillary Clinton, que frustrou totalmente a possibilidade de um acordo e agora a situação se deteriorou muito mais. O senhor acha que, nesse novo cenário internacional, haveria espaço para efetivar melhor iniciativas como essa em que o Brasil seja protagonista num mundo multipolar?

Celso Amorim: Olha, eu costumo dizer, eu disse isso a propósito da África, na primeira visita que eu fiz à África, como ministro do Lula. Já tinha ido lá, como ministro ddo Itamar, em outras funções etc. Mas a primeira vez que eu fui à Africa como ministro do Lula, eu disse que a África tem sede de Brasil. Nessa viagem que eu fiz com o presidente Lula, o ex-presidente Lula, à Europa, no Parlamento Europeu e Bruxelas, Alemanha, aliás eu não fui, mas ele foi, França e Reino Unido, a minha sensação é que o mundo hoje tem sede de Brasil. A América Latina tem sede de Brasil – eu poderia me alongar – mas, por quê? Eu vou contar uma história, talvez seja uma maneira mais rápida de ilustrar, do que fazer uma análise teórica. Quando eu – você sabe que eu me empenhei muito pela liberdade do presidente Lula, quando ele estava na prisão em Curitiba, busquei contatos, inclusive na Europa, e um desses contatos foi com um ex-ministro do exterior, e depois primeiro ministro da França, Dominique Villepin, e ele mesmo é que me sugeriu que eu que eu fizesse um seminário, que acabou sendo feito e foi muito bom, muito positivo. Mas por quê? Ele dizia: “porque o mundo precisa do Brasil”. Naquela época, a época do Trump. “O mundo precisa, mas tem que ser o Brasil democrático, um Brasil…” Ele não disse o Brasil progressista, ele era ele tinha sido ministro do Jacques Chirac, a direita republicana, como eles chamam lá, que não tem nada a ver com a nossa direita no Brasil, mas enfim. Uma centro direita, né? Até o Macron que, embora tenha vindo do governo Holando, mais ou menos, hoje em dia, está mais no centro, mas enfim. Então eu sinto que há essa necessidade. Por que que o Lula foi recebido como foi recebido? Pelos méritos pessoais dele, indiscutíveis, né? Tudo que ele encarna, encarnou, não só, mas também porque precisam do Brasil. O Brasil é necessário. Na América Latina as pessoas falavam que o Brasil agia como querendo ser líder, que isso despertava rivalidade… Eu não sinto isso. Eu sinto o contrário. Eu cito, digamos assim, uma América Latina, para ser relevante, precisa do Brasil. Sobretudo a América do Sul. O México é um caso a parte, está tendo um governo extremamente progressivo, muito progressista, muito ativo, tem tomado atitudes altamente louváveis, mas tem aquela situação que você pode dizer que a maldição, é o que se referiu Porfírio Dias, né? “Pobre México tão longe de Deus e tão perto dos Estados Unidos.” Não acho que seja assim tão longe de Deus, mas perto dos Estados Unidos é, né? Então, isso condiciona muita coisa ainda. Mas eu volto a dizer, o governo atual tem tomado atitudes extraordinariamente corajosas, em vários aspectos, mas tem uma limitação. O Brasil não tem essa limitação, não tinha, não tem historicamente porque, veja bem, mesmo se você pegar o período em que eu fui ministro do Itamar, também como mencionei, naquela época, antes se falava na iniciativa para as Américas, depois veio a ideia da ALCA, o comércio do Brasil já era equilibrado, não era com China, China ainda era pouco, União Europeia, na época Comunidade Europeia, eu acho que ainda nem era União Europeia. Os Estados Unidos e, digamos, o resto. Então, era mais ou menos um terço. Não, quer dizer, um terço para o resto.

Então, o Brasil não tinha, diferentemente, por exemplo, do caso estou citando – o México – porque é preciso dar um exemplo, que já tinha um comércio antes de fazer o NAFTA, já tinha o comércio de setenta, oitenta por cento pros Estados Unidos. Então, é diferente. O Brasil tinha condições e tem condições de trabalhar por um mundo multipolar, de ter, digamos, liderar um movimento que não é um movimento de hostilidade aos Estados Unidos. Não, nem é preciso, nem deve ser! Mas o movimento sim de independência. Não nos interessam alianças, ainda que repaginados, refeitas, isso não nos interessam ALCAS, não é do nosso interesse. Agora, sim, nos interessa ter uma relação madura com os Estados Unidos, como interessa até Com a Europa, com a Rússia, com a China… e, obviamente, com os países em desenvolvimento, eu situo num outro plano porque aí é uma relação solidária, de países que têm problemas semelhantes, e que é fundamental até pra atuação do Brasil em órgãos multilaterais, como foi na OMC, a nossa relação aqui na região, mas com a África, né? E também o dever que temos com a África até pelo débito que temos em relação à África na nossa formação.

Antonio Martins: Embaixador, a gente já vai chegar na questão da América Latina e da África, mas eu queria lhe fazer uma pergunta sobre a cenário internacional ainda. Uma outra diferença me parece ser o declínio, pelo menos do neoliberalismo fiscal, o declínio do consenso de Washington, o presidente Lula governou, inclusive, numa situação em que se exigia – e num certo sentido essa ideia era introjetada nos governantes – e exigia uma disciplina fiscal que o impediu, por exemplo, de fazer as chamadas reformas estruturais, esse consenso de Washington tem sido muito questionado, a China jamais o cumpriu, durante a pandemia todos os países abandonaram a ideia de que o Estado só pode gastar aquilo que arrecada. E, agora, a contraposição maior vem do próprio país de onde surgiu o consenso de Washington, onde o Biden está lançando um conjunto de pacotes de estímulo à economia, de trilhões de dólares. Acho que, somando tudo, dá uns cinco trilhões de dólares. De que maneira o declínio do Consenso de Washington, que a gente chama de neoliberalismo fiscal, pode contribuir também tanto para libertar os Estados da tirania dos mercados, quanto para constituir uma ordem internacional mais justa.

Celso Amorim: Eu acho que ajuda muito, ajuda muito. Eu não sou economista, então o que eu vou dizer agora, eu falo aqui sob risco, digamos, de estar dizendo uma bobagem. E é óbvio que o que eu vou dizer também tem que ser também qualificado. Mas quando eu me pergunto como é que você vê uma política econômica de um eventual governo progressista, digamos do presidente Lula, que é o mais provável, né? É o que desejamos, mas enfim, como ele disse que ainda não é candidato, eu tenho que respeitar essa situação. Como seria essa política econômica? Não sei, mas eu acho que pra mim, que sou leigo, a política que o Biden está seguindo. Não tem que ser muito diferente. Eu não vejo, aliás o Biden está não só, digamos, fazendo uma política que se poderia chamar de keynesiana, de apostar no crescimento e através do crescimento lograr o equilíbrio num nível mais alto. Mas ele até, digamos, na tentativa, eu não sei se ele vai ser bem-sucedido, porque o congresso lá também não é brincadeira, né? Mas até de aumentar os impostos sobre os ricos, sobre as grandes fortunas e sobre os lucros, que é uma coisa que, ao meu ver, vai até um pouco além do keynesianismo, né? É uma coisa assim realmente rooseveltiana, como ele aliás mandou colocar o retrato do Roosevelt lá, não sei se é no Salão Oval ou na sala dele, mas, enfim, de qualquer maneira, no gabinete dele. Mas de qualquer maneira, eu vejo dessa maneira, eu acho que o neoliberalismo, ao contrário do que muitos dizem, eu acho que está em decadência, eu não acho, diferentemente, que o capitalismo está entrando numa crise final. Não, nada disso! Agora, também acho que o o capitalismo se adapta.

A própria China tem muitas características de um estado capitalista, quer dizer, se você olhar, sei lá, o nível de desigualdade na China é muito grande, entre os cem maiores milionários do mundo, tem trinta, sei lá o número, desses chineses. Agora, ao mesmo tempo tem um nível de planejamento, que é diferente do que acontece no Ocidente, do que acontece em termos de mercado. Então, eu acho que esse cenário é mais favorável. Há um outro aspecto, que eu acho que tem que ser notado, que começou a ser percebido depois da crise dos Lemann Brothers, mas não resultou, vamos dizer assim, que é a clareza de que essa liberdade total de fluxos financeiros, que começou com Tatcher, Reagen, que se expandiu, não pode funcionar também. Isso também cria instabilidade, desemprego, crises constantes, especulação em cima de especulação, nós vimos os protestos do Chile, vimos os protestos de várias partes do mundo, vimos a reação nos próprios Estados Unidos, eu acho, portanto, que em termos globais haverá uma maior compreensão.

A própria ideia, digamos assim, veja bem, eu não sou contra o livre comércio, mas o livre comércio tem que ser modulado de acordo com graus de desenvolvimento, de acordo com vários aspectos em questões sociais, questões de saúde. Eu acho que a própria pandemia, o desafio do aquecimento global e a questão da desigualdade que, volto a dizer, já muitos capitalistas, você pega uma pessoa feito o Soros, por exemplo, que ele representa… quer dizer, aqui no Brasil, o Hermínio Fraga fala nisso, quer dizer esse nível de desigualdade é disfuncional. Então, até que ponto haverá, mesmo sem confrontar diretamente o capitalismo como tal, você tem um espaço para uma reforma que seja importante. A dimensão desse espaço ainda é uma coisa que só a prática vai dizer, mas eu acho que a gente tem um quadro internacional, como você notou, mais favorável para uma política de crescimento, de desenvolvimento social, com muita atenção também ao meio ambiente.

Antonio Martins: Isso nos remete, também, à ordem financeira internacional. Essa semana mesmo, a revista Economist chama atenção para o risco que os países em desenvolvimento, metidos em novas crises financeiras, tem um diagrama inclusive muito interessante, segundo o qual o Brasil é um dos países que tem situação mais vulnerável, diante de dois problemas: a possível desaceleração da economia da China, que parece que está começando a ocorrer, e nós estamos muito vulneráveis pela nossa pauta de exportações; E o aumento da taxa de juros, nos Estados Unidos. Bom, há alguns meses, há dois meses, me parece, o FMI, contrariando tudo que fazia há muito tempo, emitiu 650 bilhões de direitos especiais de saque, para os seus membros. É uma medida muito limitada, mas talvez inédita, nesse volume, porque são recursos sem contrapartida, os recursos que podem de alguma maneira aliviar a dívida dos países do Sul e, por isso, a própria diretora gerente do FMI está sofrendo pressões muito intensas, acho que o próprio Stieglitz que disse que é um novo golpe que está em curso, o golpe contra a a direção do FMI. O senhor vê possibilidade de ampliar, de um FMI, dessa luta por uma nova ordem internacional, significasse desdobrar também numa revisão dessa ordem financeira internacional do neoliberalismo?

Celso Amorim: Olha, eu vejo. Eu acho que, digamos, a administração Biden, pelo que ela está fazendo é internamente, vai um pouco nessa direção. O grau de mudança, não sei. Quer dizer, houve mudanças importantes na Europa também, quer dizer, pela primeira vez se aceitou o conceito de uma dívida em nível europeu, uma mudança na política fiscal europeia importante, não sabemos bem como será, porque embora os socialdemocratas tenham sido o primeiro partido, o ministro da economia lá é da nova coalisão liberal, né? Liberal mesmo, no sentido econômico. Então, há sempre o conflito, essas coisas não se resolvem, mas eu acho que aquela ideia sacrossanta do consenso de Washington, que era liberalizar, privatizar e desregulamentar, essa tríade, isso, acho que já ficou para fora. Agora, vai depender do grau, nós estamos vendo, por exemplo, as dificuldades que a Argentina está tendo de negociar a dívida com o próprio FMI. Apesar do FMI ter avançado na sua concepção de como combater as crises. Então, eu acho que são forças que não é uma coisa homogênea, mas eu vejo o mundo com mais, ao mesmo tempo que há riscos de crise, como esses que o economista apontou, que são crises de curto prazo, claro que são graves, que você pode chegar no médio e longo prazo, tem que passar pelo curto prazo, mas não vejo que isso seja uma coisa definitiva, eu acho que haverá formas de adaptação. Vamos ter que enfrentar a realidade. Agora, essa desaceleração da economia chinesa, a gente está ouvindo falar há muito tempo, né? Então, a desaceleração, passar de oito pra seis, diminui um pouco a demanda, mas não de maneira significativa. A China é e continuará a ser um motor importante, não único, mas um motor importante da economia mundial. Eu não sou tão pessimista assim não. Agora, eu não sei, eu também não tenho bola de cristal, obviamente, e nem capacidade da análise econômica pra dar uma opinião segura sobre isso. Eu sei que num mundo em que a distribuição do poder seja mais equilibrada, nós teremos mais condições de atuar.

Antonio Martins: Vamos entrar na América do Sul e na América Latina. Boa parte dos avanços que o senhor protagonizou e ajudou a articular, a criação da UNASUL, a criação da CELAC, tem sido ou revertidos ou neutralizados, que caminho o senhor vê pra recompor essa essa experiência inédita, descolonial, aqui na América do Sul?

Celso Amorim: Olha, eu vejo muitos fatos positivos, né? Eu vejo, por exemplo, a a força das lideranças latino-americanas progressistas é muito grande. Eu tenho muita confiança de que vai ser possível ganhar as eleições no Brasil. Você tendo a Argentina, Brasil, mesmo México, apesar de todas as dificuldades geopolíticas que o México tem, com governos progressistas, não sabemos ainda o que acontecerá no Chile, no Peru houve uma eleição positiva, mas também há uma certa fragilidade, é difícil você fazer uma definição, mas eu acho que isso, a recreação, eu vou dizer assim, de maneira simplificada porque é muito longo, a preservação do MERCOSUL, com a incorporação imediata da Bolívia, que só falta o Congresso Brasileiro entrar, é bom pra todo mundo. A Bolívia é o coração da América do Sul, é muito importante, as pessoas têm que ter um pouco de visão geopolítica, não é só o que vai ganhar imediatamente, quer dizer, o que aquilo significa em termos de geopolítica… Uma postura, eventualmente, não sabemos ainda qual vai ser a eleição, como vai ser a eleição no Chile, eu tenho preocupações mas tenho também confiança, mas de qualquer maneira nós estamos assistindo até na Colômbia, que tradicionalmente tem se colocado mais à direita, tem agora um candidato com muita possibilidade de vitória mais mais também. Enfim, eu acho que mesmo independentemente desses movimentos que já ocorreram, que estão ocorrendo, eu acho que, digamos, a recriação da UNASUL é algo urgente. Eu acho que, por prudência talvez, enquanto digamos a situação no Brasil é fundamental, nesse aspecto. Eu participei de uma reunião outro dia, uma reunião privada, não vou citar o nome da pessoa, mas interessante que um interlocutor presente, que era um chileno, disse uma coisa muito interessante, claro que isso tem que ser visto dentro do contexto que estávamos discutindo, que era a integração da América Latina, mas mais especificamente da América do Sul, que eu acho que na América Latina a gente pode falar mais de uma cooperação, uma cooperação intensificada, na associação. Acho que para falar integração, no sentido que é integrada a União Europeia, eu acho que pesa muito a proximidade. Razões de outras questões. Mas ele dizia, falando da integração na América do Sul, dizia assim: “se pra nós, no Chile, as coisas andarem bem e no Brasil as coisas andarem mal, em termos eleitorais, não vai ocorrer a integração. Se no Chile as coisas andarem mal, mas no Brasil andarem bem, vai haver integração”. O que eu quero dizer com isso? Que o Brasil é absolutamente fundamental. Na época em que nós lutamos sob a liderança do presidente Lula, para criar a UNASUL, o MERCOSUL já existia, nós tratamos e solidifica-lo, fortalecer, criar acordos no Mercosul, com outros grupos, enfim, tentar vencer problemas internos, criar compensação para os países menores, fomos bem-sucedidos em alguns aspectos, não em outros, mas enfim.

O Mercosul foi uma questão de fortalecimento. Mas a UNASUL não, a UNASUL foi criada, começou como Comunidade Sulamericana de Nações, e o Brasil esteve à frente desse processo, depois também outros países entraram, mas o Brasil esteve muito à frente desse processo. E era um processo plural. Quer dizer, nós tínhamos obviamente a Venezuela, bolivariana, lá com as ideias que eles têm, o Correia muito também à esquerda, o Brasil com um governo de centro-esquerda, vamos dizer, muitos aspectos de centro e outros mais de esquerda, na área de justiça social, mas tinha o Uribe, o Uribe é um homem indiscutivelmente de direita, mas o movimento pela integração era algo tão forte que ele achava bom, ele não achava ruim não. É uma coisa interessante, e o Peru, que não era um governo de direita do estilo do Uribe porque não tinha os mesmos problemas, ninguém pode dizer que o Toledo era um homem de esquerda, de jeito nenhum. No entanto, ele também tinha um interesse em equilibrar até as relações que eles estavam tendo com os Estados Unidos, buscando a maior integração com a América do Sul.

Então, eu acho, eu ia contar um fato curioso porque as pessoas não lembram. Por exemplo, foi o Uribe, quem primeiro convidou o Lula, presidente do Brasil, para uma reunião da Comunidade Andina, que se realizava em Mendelim, uma cúpula. Isso foi um passo importante na integração, com a quebra de suspeita, de ceticismo, o Brasil participa de quase todas as ecorregiões da América do Sul, mas não participam dos Andes, não participa dos Andes, e é convidado para uma reunião da comunidade Andina. Então, eu acho, para resumir, que a reconstrução da UNASUL é uma tarefa urgente, eu acho que deve até começar antes da eleição no Brasil. Agora, sendo realista, eu acho que ela só se consolidará mesmo se o Brasil tiver um Governo progressista. Não precisaria nem de um governo de esquerda não, mas vamos lembrar também, porque a gente tem que fazer justiça, que a primeira cúpula da América do Sul foi o Fernando Henrique que convocou. Então, o que eu acho que o governo Lula – por isso que a gente diz ativo e altivo – ele aprofundou e acelerou muitas das tendências que, de certa maneira, estavam presentes na diplomacia brasileira meio amorfas, meio assim sendo contestadas, mas não é que nós tenhamos feito uma política totalmente diferente, nós intensificamos e aceleramos os aspectos melhores que já existiam dentro da tradição brasileira. Ao contrário do que eu coloco com o Bolsonaro, que é absolutamente um ponto fora da curva. Você não pode comparar com nada! Nada! Não tem nada, na história do Brasil, que se compare com o que está ocorrendo hoje, que separe-a. Você tem, desculpe aqui, já passei para um outro assunto, mas tem relação, há uma reunião da CELAC, criada, em boa parte, por iniciativa brasileira, porque a primeira reunião, ainda não tinha o nome, nós chamamos de CALC, depois é que virou CELAC, perto de Salvador, na Bahia, foi a primeira vez que houve uma reunião onde toda uma cúpula, de todos os chefes de governo, chefes de todos os países latino-americanos e caribenhos, sem a tutela norte-americana ou europeia, de quem quer que seja. Então, isso é a primeira. Agora, há uma reunião do CELAC no México e o único país que não participa, não é que o presidente não foi não, o único país que não participa é o Brasil, é uma coisa fora do comum, né?

O Saramago tem aquele livro “A jangada de pedra”, que a península ibérica, é como se o Brasil de repente quisesse sair da América Latina e ficar aí no mundo, não sei, e ficar à venda aí para quem quisesse comprar, quem desse mais. É uma coisa de louco, mas enfim.

Antonio Martins: Vamos falar um pouquinho da democracia na América do Sul. Durante os governos de esquerda, aqui no Brasil a gente assistiu, agora Honduras está voltando a ter um governo mais democrático. O golpe de estado em Honduras, o golpe de estado no Paraguai, depois e, por fim, o golpe do estado no próprio Brasil mesmo. Pelo menos os dois primeiros, o terceiro também, tiveram clara interferência dos Estados Unidos, e os países da América do Sul, embora essa articulação seja tão importante, não puderam fazer muita coisa. O senhor vê a possibilidade disso se alterar? Como uma América do Sul articulada poderia responder a fatos como esse sem cair numa posição intervencionista? De que forma enfrentar essas ameaças?

Celso Amorim: Olha, quando a gente fala dos Estados Unidos, a gente precisa ver que aquilo também não é uma realidade homogênea, não tenho nenhuma ingenuidade a respeito disso, eu sei da história, do que que aconteceu ao longo do tempo, o que tem acontecido, o que aconteceu no Brasil em relação à coparticipação, departamento de justiça, do FBI e etcétera. Agora, Estados Unidos tem, digamos assim, uma espécie de estado profundo, para usar a expressão que tem sido usada, começou a ser usada, acho, na época da guerra do Vietnã, sobretudo. Mas você tem os governos, as vezes as posições não são… as vezes um predomina sobre o outro, ela sempre é uma mistura das duas coisas. O Obama que foi, a meu ver, não teve assim iniciativas notáveis, mas ele meio que normalizou, quase normalizou, não normalizou porque ele não foi capaz de terminar com as sanções, mas pelo menos um plano diplomático normalizou as relações com Cuba. É uma coisa interessante. Nós estávamos falando da UNIASUL, e quando o Obama foi presidente, a primeira reunião da cúpula das Américas que ele que participou, ele pediu uma reunião com a UNASUL, já que tinha mídia brasileira falando mal da UNASUL, dizendo que era um projeto bolivariano, e o Obama pede uma reunião com a UNASUL, até porque percebe que é uma maneira de dialogar com a América do Sul, dialogar com quem ele talvez não pudesse dialogar diretamente. Quer dizer, ele não tinha como falar com o Chaves, não tinha como falar com outros, mas na UNASUL ele podia ir, lá estava o Chaves, lá estavam outros. Então eu acho que não é uma coisa homogênea, eu acho que isso é uma coisa que você tem que ir atuando nas brechas, tendo consciência de que existem esses outros fatores, mas nem sempre eles são determinantes. Às vezes, coincide, às vezes, as situações… por exemplo, durante um bom tempo a própria questão da Venezuela, quando o Brasil criou, o presidente Lula propôs a criação do grupo de amigos, e os Estados Unidos participaram, e houve o referendo revocatório e o Chaves ganhou, isto é, não foi revogado, e os Estados Unidos aceitaram, que continuaram lá tramando, eu não sei, provavelmente sim.

Mas então eu não eu acho que a gente tem que ver essa coisa, porque senão você fica assim numa situação de que é tudo ou nada, e como é muito difícil ter tudo, você acaba no nada. Entende? Então, eu acho que a gente tem que trabalhar, tem que procurar dialogar, tendo consciência de que tem essas forças lá, porque tem uma extrema direita aqui. Você podia imaginar que ia haver sentimentos de extrema direita, raivosos, odientos, como eles emergiram? Você podia imaginar que as pessoas iam tratar de raça, de gênero, da maneira que está sendo tratada aqui? Eu não podia. Sinceramente, não podia. Eu podia imaginar um governo mais neoliberal, menos neoliberal, mais progressista, mais reforma social, menos reforma social, mais independente, mais depende, já podia. Mas o governo como é o Bolsonaro, eu não imaginava. Estava fora da minha imaginação. Então, a gente tem que ter consciência e clareza de que certas coisas podem acontecer. Mas eu acho, nós temos campo para fortalecer a integração da América do Sul. Se o Obama compreendeu que ele tinha alguma utilidade para ele, a UNASUL, eu acho que é possível que o Biden, ele até agora não revelou isso, mas quem sabe, né? Até a evolução dos acontecimentos, ele está muito dependente da maior maioria dele no congresso, depende de um senador. Então, a política externa dele, na realidade, em relação ao Obama, é um retrocesso. Em relação à América, sobretudo no que diz respeito à América Latina. Vamos ter uma expectativa, há sinais de que eles estão querendo começar a dialogar, eles não interferiram, pelo menos perceptivelmente, na eleição no Peru, aceitaram rapidamente e tal. Eu não sei, não quero ser ingênuo, vejo que há muitas questões, mas eu acho que essas questões têm que ser enfrentadas primeiro com a democracia nos países e com a solidariedade entre eles. Eu acho que é o que nos podemos… agora, veja bem, eu estou dizendo isso, mas ao mesmo tempo não deixo de perceber que o presidente Biden convoca uma cúpula das democracias, convida países, não vou nem falar do Brasil, mas convida países de credenciais altamente duvidosas, como a Polônia, por exemplo, está sendo questionado na própria União Europeia, e não convida a Bolívia, que tem um governo eleito, que se opôs a um golpe, que foi eleito de maneira transparente, até a própria OEA, que antes tinha favorecido o golpe, depois reconheceu que a eleição… e por que não convida? Ou seja, idiossincrasias que nós vamos ter que, com tempo e com de diálogo, eu acho que a gente pode também ajudar a mudar. Até porque, uma relação é difícil compreender. É muito difícil para os Estados Unidos abandonarem uma ideia que está lá embutida na cabeça deles, de que nós somos o quintal. E ao mesmo tempo a América Latina não quer e não vai aceitar, com raras exceções, como o governo atual, não quer ser quintal. Então, há uma tensão aí, inevitável, mas como é que vai se lidar com essa tensão, depende da capacidade de diálogo, da capacidade de discussão, depende da nossa habilidade em jogar com outras associações de alianças sem, necessariamente, hostilizar os Estados Unidos, obviamente defendendo sempre o nosso interesse.

Isso foi possível. Você está lembrando aí que nós nos opusemos à ALCA, e nós fizemos isso sem brigar, sem brigar. O Bush veio duas vezes ao Brasil, convidou o Lula, que também esteve duas vezes lá, mas sendo que uma delas no campo, que é a casa de campo do presidente americano, ficamos – eu estava acompanhando – nós ficamos lá cinco, seis horas, era uma relação muito próxima. Eles nos convidaram para – como você mencionou – para a cúpula de Anápolis, a reunião de Anápolis, lá nas cercanias de Washington, sobre o Oriente Médio. Só três países em desenvolvimento foram convidados, três países não predominantemente islâmicos, vamos dizer. O Brasil, Índia e e África do Sul, aliás, membros, os três, de um grupo que nós havíamos criado que era o IBAS. Então, sabe, eu acho que a realidade não é assim tão tão opaca e tão impermeável, temos que trabalhar conscientes dos problemas, mas ao mesmo tempo não nos desesperarmos diante das dificuldades e das ameaças.

Antonio Martins: Falando dos acontecimentos inesperados, o senhor repetiria a política do Brasil em relação ao Haiti?

Celso Amorim: Olha, eu vou te dizer, o Haiti, para mim, foi uma grande frustração. Não só o Haiti, outros países em que a gente não esteve presidente militarmente, mas que a gente poderia ter ajudado mais do que talvez. Que é muito difícil tudo, que é a Guiné-Bissau. Mas países pequenos em que, digamos, a atuação do Brasil poderia fazer muita diferença. Mas a minha grande decepção com Haiti foi a própria ONU. O que aconteceu lá, claro que também tem que ter muitas críticas, eu não vou dizer que não. Agora, essa ideia de que que o Haiti é que fez, que a presença no Haiti que fortaleceu os militares no Brasil, por favor, isso não tem nada a ver. Você tem pessoas que estiveram no Haiti, como o general Heleno, que fazem parte do atual governo e você tem outros que chefiaram a missão no Haiti, também, como o general e Pujol, que se opôs à linha do governo. Então, sabe? Essa relação direta, eu sinceramente não concordo. Não sei se era isso que você estava aludindo. Agora, eu acho que a comunidade internacional, como um todo, se é que você pode falar assim, abandonou o Haiti antes da hora. Estava com pressa de ir embora, estava caro, porque, veja bem, aquilo é uma ação do Conselho de Segurança. A ação do Conselho de Segurança só se dá quando há uma ameaça à paz e à segurança internacionais. Ora, o que o Haiti, desde o início, ameaçava a paz da segurança internacional? A imigração para os Estados Unidos, era a única ameaça que eles viram, né? Quando eles erradamente acharam que essa ameaça já não estava mais, começaram a tirar, e aí deu no que deu. Você vê o que tem hoje? Não é uma questão ideológica, o Haiti dominado por grupos de narcotraficantes. Era essa a questão, não houve, eu sempre fui a favor e defendo ardorosamente o princípio da não intervenção, mas ali foi uma solução da ONU, quem ia dominar o Haiti eram esses narcotraficantes que estão dominando agora. Então, é lamentável que a gente tenha ficado há tantos anos e que não tenha, digamos, consolidado essa situação que requereria…

Veja bem, vou dar um exemplo. Houve o terremoto do Haiti, o Brasil foi o primeiro país a colocar dinheiro, à disposição do Banco Mundial, para investimento. Primeiro, em quantidade significativa. E as contrapartidas não vieram. Acabou que o dinheiro que a gente pôs, dispôs lá, e depois em vários projetos, mas o projeto estruturante, que nós pensávamos fazer, até com o apoio do Exército Brasileiro, que era uma represa de gastromonito, que o Haiti tem um tremendo problema de energia, quem foi responsável foi o desmatamento, enfim, pela dependência total que o Haiti tem até para o seu orçamento, por causa das compras de petróleo. Não foi pra frente! O Brasil deu 40 milhões, mas era preciso que outros países entrassem e ninguém quis dar. Só queriam dar condicionado à privilégios. Então, aí é um fracasso da comunidade internacional, tremendo o fracasso da comunidade internacional, que eu lamento. Agora, eu não acho que a gente fez coisa errada, o que eu acho é que talvez tivéssemos empenhar mais, mas enfim é complicado isso. Essas coisas, você sempre aprende, você sempre vai fazer de maneira talvez um pouco diferente. Agora, a substância do que nós fizemos era certa.

Antonio Martins: Vamos falar um pouco da África, que o senhor está dizendo que tem sede do Brasil. Também desde 2016 a presença brasileira recuou. A África continuou sofrendo a influência, muito contraditória, e talvez essencialmente negativa dos países coloniais, e a África sofre, convive com a presença cada vez maior da China, que parece muito ambígua, em alguns aspectos apoiando o projeto de transformação e em outros mantendo a posição de extrator de matérias-primas. De que maneira o Brasil poderia cumprir um papel que levasse o mundo a ter uma posição diferente diante?

Celso Amorim: Olha, Martins, o Brasil estava tendo esse papel. Eu vou resumir o que o Brasil pode jogar na África com uma frase de um pesquisador, de um intelectual africano, o Calestro Jumann, ele dizia o seguinte “para cada problema africano existe uma solução brasileira”. O que nós estávamos mostrando é que essa frase dita era verdadeira, era verdadeira. Então, o que nós pudemos ajudar, em termos de combate a doenças, de pequena agricultura, de investimentos em tecnologia agrícola, como da Embrapa, é uma coisa muito estruturante e muito importante, os africanos perceberam isso. Depois de, enfim, certa evolução e atuando junto com a EMBRAPA e com a MDA, na época, o presidente Lula convidou aqui os ministros, e vice-ministros de agricultura, da África, e vieram acho que entre ministros e vice-ministros, vieram uns 40, mais ou menos, talvez uns 30 eram ministros mesmo. A maior parte deles, ou um grande número deles, nunca tinha visto um ao outro. Eles vieram a se encontrar no Brasil.

Veja bem, e aí tratar de projetos de cooperação, etc. O Brasil foi, através da União Africana, tinha projetos de desenvolvimento rural, nós fizemos uma, começamos uma fábrica de medicamentos antirretrovirais, em Moçambique, depois isso foi meio abandonado, sei lá… Parece que agora virou de antitérmicos, é melhor fazer o antitérmico do que não ter nada, né? Mas obviamente não é o que nós queríamos. O que eu quero dizer é o seguinte, o Brasil, até porque – não esse Brasil que a gente está vendo hoje – mas o Brasil que vinha crescendo, bem ou mal, desenvolvendo instituições, porque o Estado brasileiro desenvolveu instituições importantes ao longo de várias décadas, até no governo militar, né? Você tem a Embrapa, você teve outras instituições que devolvem pesquisas parciais, enfim, você tem uma agência de desenvolvimento industrial, a BDI.

E tudo isso, digamos, instrumentos que facilitam uma cooperação técnica mais imediata com esses países, tem o BNDES, que também estava começando a atuar na África, de maneira mais efetiva, inclusive em cooperação com o Banco Africano de Desenvolvimento. Então tudo isso são coisas que podem ocorrer e devem ocorrer de maneira crescente. Sem falar – e aí eu puxando a brasa para a minha a sardinha – assim na articulação diplomática. O Brasil atuava junto com a África em muitos assuntos. Já me aconteceu, não vou contar a história toda porque é muito longa, mas até justamente sobre os temas de patente, de eu participar de uma reunião e dizer “olha, mas eu quero um africano aqui também, que sem uma nuancezinha diferente da nossa, vou entrar na tecnicalidade agora, não era uma oposição, mas era uma nuance”. Eu falei “olha, eu quero um africano” e o afriacno disse “se o Brasil estiver, nós estamos representados”.

Então, veja, o Brasil tem essa condição. O Brasil fez essa, você falou da cúpula, no Brasil, América do Sul-Países Árabes, tinha muita preocupação também de dar uma personalidade à América do Sul, mesmo antes da criação da UNASUL, nessa época não tinha UNASUL, a gente estava tratando de dentro de casa, mas queríamos dar essa personalidade, com a África fizemos a mesma coisa. Talvez, eu não acho que foi um erro, mas talvez tivesse sido mais fácil fazer o que o que o presidente da Nigéria propôs, que era uma reunião Brasil-África, não é? Mas sei lá, nós também, muito empenhados na unidade da América do Sul, contra-propusemos África-América do Sul. Não foi mal, mas é mais difícil de movimentar do que uma coisa que é só do nosso lado, um país. Enfim, mas o que eu digo é o seguinte, o potencial para ação e para ação de cooperação técnica, de cooperação econômica, mas também do ponto de vista da articulação diplomática, é muito grande. E eu acho que é reconhecido. O Brasil não teria… Essas duas coisas ocorreram no governo Dilma e claro que tem o mérito do governo Dilma. Mas, obviamente, tudo que foi feito antes, o Brasil não teria ganho o direito de fazer as olimpíadas, ainda no governo Lula, e depois eleito, ele não teria conseguido eleger o diretor geral da FAL e o diretor geral da OMC, em tão pouco tempo, se não tivesse um amplo apoio de outros países, como países africanos.

Antonio Martins: A conversa está ótima, infelizmente a gente tem que começar a encerrar. Eu gostaria de lhe fazer mais duas perguntas. O senhor tem defendido, já quando foi chanceler, a ampliação do conselho de segurança da ONU, e o senhor, ao mesmo tempo, criou uma dinâmica nova nas relações diplomáticas do Brasil, que foi incluir a participação da sociedade civil de forma regular, nos fóruns governamentais, nos fóruns em que o estado brasileiro era chamado, a sociedade civil em instâncias, em eventos como os fóruns sociais mundiais. Tem defendido posições talvez mais avançadas ou mais radicais, em relação à mudança da ordem internacional. Por exemplo, a crítica ao fato de existir uma globalização que criou uma esfera internacional, que muitas vezes se sobrepõe à esfera dos estados nação, e essa esfera Internacional não tem democracia nenhuma. Não tem representação, não tem objetivos comuns, efetivos, né? Tem os objetivos do milênio da ONU, os objetivos do desenvolvimento da ONU, mas eles não não têm força de efetivação, inclusive, porque não tem recursos para isso. O senhor não acha, às vezes, que simplesmente ampliar o conselho de segurança da ONU é uma proposta tímida demais para essa ordem internacional sem democracia?

Celso Amorim: Bom, é tímida, mas é necessária, porque, vamos e venhamos, questões de paz e de guerra continuam sendo importantes para o mundo. Questões como a invasão do Iraque, que você mencionou, ou a questão do Afeganistão. As sanções e as ameaças militares à Venezuela, são questões importantes. Nós não podemos ignorá-las, e elas são discutidas no Conselho de Segurança, não são discutidas em nenhuma outro foco. Então, não podemos diminuir. Agora, se você me perguntasse “uma reforma do Conselho de Segurança é algo suficiente para mudar o mundo?”, eu diria que não. Para mudar positivamente – e eu creio que o que aconteceu nos últimos anos acentua essa insuficiência – você precisa trabalhar numa reforma mais ampla. Embora não possa ficar condicionando uma coisa ou outra, porque senão nada acontece. Mas, sem dúvida, eu acho que depois da crise dos Lemann-Brothers, um passo importante foi dado em termos de fóruns informais, com a substituição, na época parecia substituição – hoje em dia ficou menos claro isso, mas pode voltar a ser – do G7 pelo G20. Do G20, que tem os BRICS, que tem uma influência muito grande no G20, tem a Argentina, tem México, aqui da América Latina. Então, isso foi um passo adiante, agora tem o G20, como você talvez tenha colocado implicitamente. O G20 tem um peso, né? A única reforma significativa, embora limitada, do sistema de cotas do FMI, de votação, portanto, foi em função das pressões dos BRICS no G20. Então, não é uma coisa insignificante. Agora, o G20 tem uma cadeia de comando que ele vai influenciar no Banco Mundial? Não tem. Depende um pouco, depois da disposição dos países, a influência dos Estados Unidos no Banco Mundial ainda é desproporcional, como aliás até agora no banco Interamericano é uma vergonha o que aconteceu, mas você não faz essa pergunta.

Então, eu acho que é necessário fazer agora, para falar a verdade, eu também não quero que digam “ah, o Celso está exagerando, não sei o que”. Eu eu acho que o ideal é ter uma nova São Francisco. O mundo de hoje é um mundo muito diferente do mundo de 75 anos atrás. Outro dia eu estava em um debate, até coordenado por uma norte-americana, que já foi secretária de planejamento do departamento estado, Anne Maurice Watter, e ela dizia “não é possível, daqui a pouco vai fazer 100 anos com as instituições, é impossível”. Vamos imaginar um mundo dos anos 50, governado como eram as instituições de 1850. Não tem cabimento, então não pode. Então, tem que haver essa reforma. Essa reforma, ao meu ver, exigiria uma uma grande cúpula. Mas não adianta nem falar em assembleia da ONU, com as regras, tem que ser uma coisa ampla, pode ser com as regras da Assembleia da ONU, mas tem que ser uma coisa política, um impulso político, não é para cada um falar 3 minutos. Hoje em dia não se pode fazer o que fizeram em Versalhes, porque os chefes de estado também não têm tempo mais para isso. É difícil, mas talvez eles lançarem uma cúpula e os ministros ficarem lá um tempo maior, negociando, a partir de um projeto que talvez um G20, ligeiramente modificado, porque o G20 é muito melhor do que o G7, porque tem país em desenvolvimento, mas tem muito pouco africano. Só tem África do Sul, devia ter Egito, devia ter Nigéria, devia ter um país que representasse as pequenas ilhas, enfim, eu não quero aqui ficar fazendo arquitetura, nem eu sou nenhum demiurgo, aqui, para ficar dizendo como é que tem que ser. Mas tem que haver essa vontade política de mexer. O secretário geral da ONU pode ter a boa vontade. Eu acho que o TR é um bom secretário geral, mas ele não tem não tem força. É preciso que os países se convençam disso. É preciso que haja lideranças empenhadas nisso. E, sinceramente, pelo que eu tenho visto, eu acho que o Lula é uma dessas lideranças. Aliás, não sou eu que acho não, quem acha é o Macron, é o presidente do conselho da Espanha, quem acha é o chanceler, que lá é o primeiro ministro da Alemanha, quem acha é, pelo menos os sociaisdemocratas do parlamento europeu, quem acha são os nossos vizinhos argentinos, com os quais havia rivalidade e hoje é uma total irmandade. Então, eu acho que é esse o caminho mais imediato, que eu vejo, pra mudanças.

Antonio Martins: A última pergunta, é óbvio que tem a ver com isso. O senhor tem acompanhado o ex-presidente Lula na viagem à Europa, na viagem à Argentina, o que esses contatos todos têm lhe demonstrado, em relação ao papel do Brasil no mundo? E na hipótese de uma vitória democrática nas eleições do ano que vem, o senhor estaria preparado para voltar a assumir o Ministério das Relações Exteriores?

Celso Amorim: Olha, vamos falar, aqui, aquilo que eu gosto muito. Tem um ditado anglo-saxão, que é muito pragmático, é um uma metáfora militar, o comandante lá da guarnição chega para o general e fala assim: “que eu faço ali quando chegar naquela ponte?”, “olha, quando a gente chegar na ponte a gente vai ver o que vai fazer”. Então, temos que chegar lá! Enquanto isso, a gente fica só atuando e deixando clara essa importância do Brasil. Que é importante, Martins, eu acho que é uma coisa importante, uma das coisas que me chamou a atenção, independentemente de manipulação, etc. de notícia que também existe, ou de tentar até, no início, camuflar o êxito da visita, só que ficou impossível depois da recepção do Macron. Coisa absolutamente impossível. Eu nunca vi nada igual. Pode ser que o Mandela, em algum momento tenha sido recebido dessa forma. É possível que sim. Mas o político, o ex-presidente, que está na oposição, é recebido como chefe de estado, não é trivial. É porque ele é visto realmente com uma grande perspectiva. Então, eu acho que essas são as perspectivas, é isso! Há uma expectativa em relação ao Brasil. Não, e o que eu ia dizer é o seguinte, o que é curioso é que eu acho que, além disso tudo, a nossa mídia meio que ficou surpresa, porque ela não sabe o grau, ela sempre tentou criticar, não só por razões ideológicas, mas pra apequenar o Brasil. Ah, o Brasil não pode, o Brasil não deve, o Brasil não tem que se meter. Por exemplo, nós não falamos aqui, ou você mencionou, mas não nos estendemos, eu não vou querer me estender, tampouco, sobre a negociação do acordo de Teerã, declaração de Teerã, que o Brasil fez junto com a Turquia, foi um pedido do Obama. Foi um pedido do Obama! Eles recusaram, por razões de política interna, o acordo que nós tínhamos proposto, mas um ano e meio depois eles começaram a fazer a mesma coisa. A mesma coisa! Então, eu acho isso. Eu acho que o Brasil sim tem condições de participar e melhorar a ordem mundial. Eu acho que o nome das pessoas não importa, o que importa é a direção geral. E a direção geral, para minha opinião, hoje, é encarnada pelo presidente Lula, com alianças que serão, que têm que compreender que o momento que o Brasil vive, de certa maneira, tem uma semelhança com o que foi o momento da democratização. Nós temos que realmente eliminar o fascismo, eliminar não fisicamente, mas eu digo assim o fascismo tem que ser afastado, isso não é parte da tradição brasileira, ou é uma parte muito pequena e que virou dominante. Isso que nós temos que avançar, com as forças democráticas, com todos aqueles que estejam dispostos a trabalhar por um Estado plural, justo, independente, soberano, etc.

Antonio Martins: Muito obrigado, embaixador! Essa diálogo de hoje encerra o Projeto Resgate. Em 2022, nós vamos voltar, logo em janeiro de 2022, discutindo alternativas para um Brasil pós-fascismo, pós-ameaça fascista, e pós-neoliberal. Também, para retomar a sua metáfora. Esperamos que venha essa ponte e que a gente possa cruzá-la muito bem. Muito obrigado embaixador, sempre bom estar aí em contato contigo.