43 anos da Lei da Anistia: do caminho para o fim da ditadura à impunidade militar
Fruto de um amplo movimento da sociedade brasileira, em especial de vítimas da ditadura e seus familiares, que exigiam a libertação dos presos e a volta dos exilados políticos, a Lei de Anistia foi sancionada em 28 de agosto de 1979 pelo último presidente do regime militar, João Batista Figueiredo.
43 anos da Lei da Anistia: do caminho para o fim da ditadura à impunidade militar
Ato pela anistia na Praça da Sé, em São Paulo (foto: Ennco Beanns/Arquivo Público do Estado de São Paulo)
Fruto de um amplo movimento da sociedade brasileira, em especial de vítimas da ditadura e seus familiares, que exigiam a libertação dos presos e a volta dos exilados políticos, a Lei de Anistia foi sancionada em 28 de agosto de 1979 pelo último presidente do regime militar, João Batista Figueiredo.
Mas, após 43 anos, ainda é alvo de questionamentos de setores da população brasileira que veem no dispositivo uma fonte de impunidade para os agentes da ditadura e uma violação à legislação internacional de direitos humanos.
A Saiba Mais reuniu a opinião expressa em entrevistas concedidas à Agência por pesquisadores e vítimas da ditadura para discutir os efeitos da Lei de Anistia até os dias de hoje.
“A lei da anistia foi feita pelo regime ditatorial e livrou os seus que praticaram crimes de tortura num país em que não houve justiça de transição e em que a Constituição de 1988, no que pese muitos avanços, conservou dispositivos que tornam possível a intervenção militar nos assuntos internos, inclusive na política”, afirma o cientista social Willington Germano, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Assim, a abertura política foi marcada pelo discurso da “reconciliação”, que sobreviveu ao longo do regime formalmente democrático instituído com a Constituição de 1988.
“A Lei de Anistia de 1979, foi um instrumento das elites políticas civis que organizaram uma transição de regime político para salvar a si próprias, por meio de um Congresso controlado”, avalia o advogado brasileiro Paulo Abrão, ex-secretário Executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
A impunidade para os que participaram das torturas durante o regime militar, no entanto, é vista pela vítimas e familiares de desaparecidos na ditadura militar e entidades ligadas aos direitos humanos como uma interpretação errônea da lei.
“Essa ideia de que a lei da anistia anistiou os torturadores é uma ideia totalmente falsa. A lei não anistia os torturadores. Mas Tancredo Neves e Ulysses Guimarães fizeram uma negociação e inventaram que os torturadores não podiam ser julgados porque cometeram crimes conexos. Essa visão da lei de anistia precisa ser derrubada”, contesta o ex-preso político Ivan Seixas.
Um movimento pela reinterpretação da Lei da Anistia no Supremo Tribunal Federal (STF) foi lançado em 2021 por diferentes organizações de direitos humanos e do meio jurídico: #ReinterpretaJáSTF.
“A interpretação predominante e imposta da Lei da Anistia foi de uma lei que anistiou tanto atos cometidos em resistência à ditadura, quanto atos de violência política de agentes da estrutura da repressão ditatorial. Essa estratégia pretende equiparar a violência do Estado e as ações da resistência, e tem sido utilizada nas últimas décadas para tentar impedir quaisquer avanços na promoção dos direitos à memória, à verdade, à reparação e, principalmente, à justiça, para as vítimas da ditadura e seus familiares”, contesta Paulo Abrão.
Considerada um passo fundamental para a redemocratização do País, o movimento quer trabalhar para que a memória não se perca para as próximas gerações. A campanha se baseia no argumento da incompatibilidade da lei de 1979 com os acordos internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário. Mas o pedido, desta vez, é pela sua reinterpretação.
A discussão ganhou novo fôlego quando o STF pautou a revisão da Lei da Anistia, em 2010, com a relatoria do ex-ministro Eros Grau. Na época, manteve-se o entendimento adotado pelos militares, por sete votos a dois. Um recurso apresentado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) contra a decisão está parado desde então.
Em 2019, a ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge pediu ao STF prioridade à discussão. Ela alertou que a manutenção desse entendimento tem livrado torturadores da execução de sentenças da Comissão Interamericana de Direitos Humanos nos casos Vladimir Herzog e da Guerrilha do Araguaia.
A luta pela Anistia
A campanha pela anistia ampla, geral e irrestrita, que teve seus momentos mais intensos em 1978 e 1979, foi um dos momentos mais significativos da luta pela democracia e contra a ditadura, fruto de uma frente política e social que mobilizou o conjunto dos movimentos sociais e dos setores da oposição. Por seu caráter humanitário e político, sensibilizou amplamente a população e teve repercussão internacional.
Foi em 1975 que de fato iniciou-se uma campanha organizada pela anistia, com o surgimento em março do Movimento Feminino pela Anistia (MFPA), na cidade de São Paulo, sob a liderança de Therezinha Zerbini, esposa do general cassado Euryales Zerbini. O movimento ganhou repercussão internacional quando Therezinha participou da 1ª Conferência Mundial sobre a Mulher, promovida pela ONU na Cidade do México como parte das comemorações do Ano Internacional da Mulher.
Na conferência da ONU foi divulgado o Manifesto da Mulher Brasileira, que reivindicava “anistia ampla e geral a todos aqueles que foram atingidos pelos atos de exceção”. No Brasil, o manifesto do MFPA recebeu 16 mil assinaturas, recolhidas por comitês estaduais, o mais importante deles no Rio Grande do Sul. Em dezembro de 1976, militantes gaúchas do MFPA lançaram uma bandeira com a palavra “anistia” sobre o caixão do ex-presidente João Goulart durante seu sepultamento em São Borja.
A partir de 1978 começaram a se organizar no país Comitês Brasileiros pela Anistia em vários Estados, reunindo militantes políticos e sociais, além de familiares de presos políticos e exilados. Estas organizações, que também se formavam no exterior, articularam-se para impulsionar o movimento.
O 1º Congresso Nacional pela Anistia, realizado em novembro de 1978, em São Paulo, deixou clara a proposta defendida pelo movimento. A anistia deveria ser ampla, geral e irrestrita; não poderia ser confundida com perdão ou esquecimento dos crimes praticados pela ditadura; e buscaria o esclarecimento desses crimes, com a responsabilização dos culpados. Ao mesmo tempo, deveriam ser reintegradas às suas funções as pessoas que haviam sido afastadas arbitrariamente de seus cargos.
Em 1979, Elis Regina, a maior cantora da Música Popular Brasileira na época, gravou com grande sucesso “O Bêbado e a Equilibrista”, bela canção de João Bosco e Aldir Blanc que se tornou um verdadeiro hino da anistia. O samba em ritmo lento fala de um país que “sonha com a volta o irmão do Henfil” e onde “choram Marias e Clarices”, aludindo a Maria Figueiredo, mãe de Henfil e Betinho, e a Clarice Herzog, viúva do jornalista Vladimir Herzog, assassinado no DOI-Codi de São Paulo em 1975.
Mesmo sem ter alcançado totalmente seus objetivos, a votação da Lei da Anistia, em agosto de 1979, representou uma grande vitória das forças democráticas sobre o regime.
Com informações do Memorial da Democracia