A criminologia dos bancos centrais “independentes”
A criminologia dos bancos centrais “independentes”
Por Hora do Povo
Clara Mattei, autora de "A Ordem do Capital - como economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo"
CARLOS LOPES
Talvez a única restrição que se possa fazer ao livro de Clara Mattei esteja no título: é possível argumentar que não foram as políticas ditas “de austeridade” que abriram caminho para o fascismo, mas exatamente o fascismo que abriu o caminho para a “austeridade”. Se isso é evidente na Itália, de forma apesar de menos clara, também o é na Inglaterra – esse foi o papel da “independência” do Banco da Inglaterra. A independência do banco central, naquele país, foi (e é) um instrumento fascista, ou um elemento fascista, ainda que dentro de uma suposta democracia parlamentar (v. Clara E. Mattei, A Ordem do Capital – como economistas inventaram a austeridade e abriram caminho para o fascismo, trad. Heci Regina Candiani, Boitempo, 2023).
A política que Clara Mattei chama de “austeridade” é uma velha conhecida nossa, desde a época em que Roberto Campos e Octávio Gouvêa de Bulhões, no primeiro governo da ditadura, tiraram o país do modelo nacional-desenvolvimentista e descarrilaram a economia, submergindo-a na dependência externa, às custas de arrocho salarial, redução do consumo, dinheiro caro (embora não tanto quanto atualmente), na tentativa de limpar o terreno – isto é, a economia brasileira – para os monopólios financeiros multinacionais.
Até hoje não saímos do modelo da ditadura, o que é registrado pela autora em sua nota à edição brasileira – mas o nosso país, uma economia subordinada ao imperialismo, não é o foco do livro. Os dois casos-modelo, que constituem o seu conteúdo histórico, são a Inglaterra e a Itália após a Primeira Guerra Mundial.
Depois daquele primeiro e sangrento conflito mundial, o capitalismo nos países centrais ameaçava, realmente, sair dos trilhos em que se mantivera de 1825, quando a Inglaterra estabeleceu o padrão-ouro, até 1914.
Especialmente durante os “anos vermelhos” que sucederam à guerra (1919-1920), essa era uma ameaça particularmente concreta.
Lembramos, aqui, que isso é tão verdade que a Rússia – um país imperialista, ainda que atrasado, imerso na guerra mundial – realizou a sua Revolução Socialista em 1917.
Foi por essa época que economistas reacionários de todo o mundo se reuniram nas conferências de Bruxelas (1920) e Gênova (1922). O objetivo era fazer o capitalismo voltar ao que era antes da guerra, pois esta evidenciou para as massas, especialmente para a classe operária, que o “mercado” era incapaz de resolver os problemas suscitados pelo conflito – e pelas necessidades das próprias massas.
Assim, durante a guerra, fora necessária uma tremenda intervenção do Estado – inclusive a estatização de alguns setores estratégicos, tanto na Inglaterra quanto na Itália, e, é verdade, algum aumento nos salários, com o consequente aumento do consumo popular.
Agora, para a grande burguesia imperialista – e seus ideólogos, economistas – era preciso “produzir mais, consumir menos”, ou seja, “aumentar a produção” e “diminuir os gastos”, o que implicava, evidentemente, em um corte nos salários.
O lema geral dessa política “de austeridade” (‘produzir mais, consumir menos’), lembra um trecho de A Nova Economia Brasileira, livro de Mario Henrique Simonsen e Roberto de Oliveira Campos, aparecido em 1974, em que os autores recomendam que o povo brasileiro consuma menos proteínas, para que essas possam ser exportadas.
Mas é normal – aliás, é corriqueiro – que áulicos internos repitam indignamente os seus donos externos.
Voltemos ao livro de Clara Mattei.
O principal ideólogo dessa política “de austeridade” na Inglaterra foi um economista do Tesouro chamado Ralph Hawtrey, secundado por dois funcionários, também do Tesouro (e depois do Banco da Inglaterra), Basil Blackett e Otto Niemeyer (de quem alguns leitores, interessados na literatura econômica e histórica, devem lembrar, pois foi um banqueiro que chefiou uma malfadada missão econômica ao Brasil, no início do governo Getúlio, em 1931).
Nenhum deles tinha – ou teve, jamais – qualquer cargo eletivo. Pelo contrário, toda a sua tônica estava em estabelecer um sistema “tecnocrático”, isto é, antidemocrático, que não estivesse submetido ao escrutínio direto do povo, nem ao parlamento, nem ao governo da Inglaterra. Ou seja, um sistema que não precisasse nunca, jamais, de cargos eletivos para mandar no país, isto é, determinar a sua política econômica.
Essa era (como ainda é) a função do “banco central independente”. Nesse sentido, trata-se, como dissemos, de um instrumento fascista, ditatorial.
O objetivo disso, evidentemente, era (e é) submeter a classe operária, ditatorialmente, a um grau inédito – pelo menos desde antes da guerra – de exploração. Mas os ideólogos do Tesouro passavam isso como algo acima (ou fora) das classes, ou seja, as decisões econômicas seriam “decisões técnicas”, “decisões neutras”.
Nas palavras da autora:
“… parte da construção de consenso e coerção em torno da austeridade baseava-se em eliminar da teoria econômica a consciência de classe, mesmo que isso intimidasse certas classes. Sob uma observação mais atenta, essas teorias econômicas reintroduzem as diferenças de classe pela porta dos fundos ao compreender que nem todos os consumidores são igualmente virtuosos. Para os especialistas, era o consumidor improdutivo, ou seja, o trabalhador, que precisava ser controlado, ao passo que o consumidor produtivo, ou seja, o credor/investidor, devia ser recompensado. As medidas de austeridade imaginadas pelos especialistas eram, portanto, um instrumento essencial de redistribuição forçada favorável aos poupadores-investidores e contra a classe trabalhadora de baixa renda e baixa poupança. Essa era a receita para a estabilização monetária: aumentar o capital privado e normalizar as relações assalariadas” (Clara Mattei, op. cit., p. 229).
Esse “modelo” significava uma violenta repressão sobre a população britânica, para que a maioria esmagadora fosse obrigada a se sacrificar, em prol de uma pequena minoria.
Entretanto, isso foi efetuado dentro de uma suposta democracia parlamentar – isto é, sem o estabelecimento, como na Itália, de um regime fascista.
Como?
Outro trecho do livro de Clara Mattei é esclarecedor sobre essa questão:
“… o enraizamento de Hawtrey na luta de classes é revelado por seu silencioso preconceito de classe e sua solução nitidamente tecnocrática (antidemocrática) para a crise. Um programa desse tipo, mais bem representado pela prescrição, por Hawtrey, da independência dos bancos centrais (ou seja, que eles estivessem livres de pressões democráticas), logo se tornou um estratagema comum do establishment britânico” (p. 230).
A maior ameaça, para Hawtrey, estava na inflação. E a causa da inflação eram os gastos do povo, especialmente da classe operária. Por isso, era necessário reduzir o crédito (e o salário) dessas classes, diminuindo o consumo, que era um produto da indisciplina das massas: “O problema não era a expansão do crédito em si, mas o aumento do consumo que dela resultava e que impulsionava um novo aumento do crédito” (p. 244).
O objetivo da política econômica, portanto, era impor o sacrifício (isto é, a abstinência) aos trabalhadores. Enquanto isso, nada semelhante era imposto aos monopólios financeiros, isto é, à burguesia imperialista:
“Entre 1921 e 1932, o maior item do orçamento (…) foram os juros da dívida, o que significava que a nação estava transferindo a receita tributária para os detentores da dívida nacional – a parcela da comunidade que, de acordo com nossos tecnocratas, estava mais ‘inclinada’ a poupar e, assim, a investir” (p. 254).
Mas isso significava uma brutal extração de recursos do povo em prol da acumulação de capital, através do Estado.
As outras medidas complementavam esse quadro:
– menos impostos sobre os mais ricos;
– cortes nos gastos públicos, sobretudo nos gastos sociais;
– privatizações;
– demissão de servidores;
Tudo isso era fundamentado pelo famoso crowding-out, que somente seria desmoralizado na década posterior. A essência dessa falácia, especialmente cultivada pelo Tesouro inglês, é que os gastos do governo obstruem os gastos privados. Ou, sob outra forma, que o governo desvia a poupança privada, ao gastar dinheiro que, normalmente, seria investido em empresas privadas.
O argumento seria exumado pelo sr. Mantega no início do governo Rousseff – mais uma vez, com pífio resultado.
No entanto, é preciso não se perder nesse labirinto. Existe um fio de Ariadne que é preciso seguir: tal como na ditadura aqui no Brasil, o arrocho salarial era (e ainda é) a sustentação da política “de austeridade”.
Em suma, era necessário cortar o consumo (através da redução de crédito ocasionada pelos juros altos) e cortar salários. Com isso, a procura interna seria reduzida, assim como os preços, e haveria uma baixa nos custos de produção, com maior competitividade – com evidente aumento dos lucros.
Nessa política, os juros altos tinham uma função precípua: aumentar o desemprego e diminuir a renda dos consumidores.
Mas, o leitor pode perguntar: com tal contração do mercado interno, onde a burguesia inglesa pretendia vender suas mercadorias? A resposta é: no mesmo lugar onde os gênios econômicos da ditadura pretendiam vender as nossas, com a diferença de que somos um país subordinado. Nas palavras de Clara Mattei:
“Se o povo britânico se abstivesse, de onde viria a demanda por mercadorias britânicas? (…) Nesse quadro, as exportações deveriam ser ao mesmo tempo o motor do crescimento econômico e a chave para um virtuoso balanço de pagamentos” (p. 275).
E já que estamos aqui, terminaremos essa parte sobre a Inglaterra com duas citações do livro que estamos examinando. A primeira tem um conteúdo que o leitor deste artigo já conhece – entretanto, pelo seu poder de síntese, resolvemos reproduzi-la.
“… a austeridade foi um projeto antidemocrático e fundamentalmente repressivo emergindo de uma época de reivindicações democráticas sem precedentes” (p. 281).
“Como organismo privado, (…) o Banco da Inglaterra era ‘livre’ para infligir austeridade sem nunca ter de ‘explicar’, ‘se arrepender’ ou ‘se desculpar’. Nesse sentido, verifica-se que não havia nada mais político que a missão tecnocrática de despolitização” (p. 282).
Vamos agora, rapidamente, pois não é preciso muito depois do que já vimos, à Itália.
Nenhum país da Europa, com exceção da Rússia, esteve tão próximo, após a Primeira Guerra, de transitar para o socialismo, quanto a Itália.
Os precedentes para esse estado de coisas estão no maximalismo italiano, a única tendência socialista, além dos bolcheviques, que foi contra a guerra imperialista.
No pós-guerra, as ocupações de fábrica – sobretudo em Turim, mas não apenas nesta cidade industrial – foram dirigidas pelo legendário grupo L’Ordine Nuovo (nome do jornal que reunia, antes da fundação do Partido Comunista da Itália, Palmiro Togliatti, Antonio Gramsci, Umberto Terracini, Battista Santhià e Angelo Tasca).
Aqui, bastam apenas algumas breves observações sobre a Itália, pois é evidente que a “austeridade” naquele país foi implantada sem sutilezas, isto é, a ferro e a fogo, pela prisão e pela tortura, e também pelo assassinato.
Mussolini dispôs de cinco economistas para realizar o seu projeto econômico. Dois (Alberto de Stefani e Maffeo Pantaleoni) eram aberta e fanaticamente fascistas. Outros dois (Luigi Einaudi, depois presidente da Itália, e Umberto Ricci), se diziam liberais, mas não se distinguiam ideologicamente, durante a ditadura de Mussolini, dos fascistas.
Havia um quinto, que era o patrono desses, mas que vivia na Suíça: o notório Vilfredo Pareto, um mussolinista que morreu em 1923.
Hoje, existe quem tenha uma visão (ou uma concepção) populacheira do fascismo, em especial do fascismo de Mussolini.
Nada mais longe da verdade. Essa quadrilha era profundamente elitista, a tal ponto de considerar que “a população (…) era ignorante quanto às verdades econômicas, portanto agia contra os próprios interesses” (p. 296).
Ou, senão:
“Ser pobre ou da classe trabalhadora era uma escolha e uma patologia” (p. 303).
Não nos estenderemos sobre as medidas “de austeridade”, pois elas apresentam pouca diferença em relação à Inglaterra. Notemos, apenas, que na Itália fascista o banco central não era – e nunca foi – formalmente “independente”. Mas isso pouca diferença fez. Como no Brasil da época em que o degenerado sr. Meirelles encabeçava o BC, ele funcionava como se fosse “independente”, mesmo com os protestos mais veementes do vice-presidente da República, o grande José Alencar. Também na época de Mussolini, era assim. O fato de não existir “independência” formal – como existia na Inglaterra – era perfeitamente secundário, e, mesmo, desprezível.
A invés de nos deter nos fundamentos farsescos – e, no fundo, insignificantes -, vejamos o que as medidas “de austeridade” realmente significaram:
“O novo princípio tributário foi rotulado como produtivista. Priorizava a acumulação de riqueza acima de qualquer ‘objetivo de justiça social ou de redistribuição mais igualitária da riqueza’. A lógica redistributiva era inerentemente classista (e semelhante ao sistema britânico): ao tributar, o Estado coletava recursos de toda a comunidade e depois usava essa receita para pagar os detentores de títulos estatais, ou seja, as classes credoras da sociedade” (p. 313).
Sobre os salários:
“… De Stefani [que era ministro de Mussolini] de fato conseguiu restringir salários. Além disso, para extrair ainda mais (e em silêncio) os recursos dos membros mais pobres da sociedade, o governo fascista aumentou constantemente os impostos sobre o consumo ao longo da década” (p. 313-314).
Ao mesmo tempo, um corte cavalar nos gastos do governo:
“Juntamente com a tributação, a redução dos gastos públicos foi fundamental para transferir recursos do consumo público para o investimento do capital privado” (p. 315).
Como é possível que Mussolini – e seus acólitos econômicos e políticos – tenham conseguido isso, em cima de uma população que, poucos anos antes, estava à beira da revolução socialista?
Através da repressão, pura, simples e feroz, com o desmantelamento do Estado. É aqui onde as lendas sobre o fascismo se mostram mais mentirosas.
Em 1923, apenas um ano após ter tomado o poder, foi desencadeada uma catástrofe:
“Uma torrente final e devastadora (…) veio com a extinção do Ministério do Trabalho e da Previdência Social, em abril de 1923 – um golpe para todos os trabalhadores italianos que pouco antes ganharam uma batalha de vinte anos pela criação do órgão” (p. 317).
Com a repressão, os gastos sociais foram forçados a descer durante todo o governo fascista, ao mesmo tempo que “o montante que o Estado gastou em dívidas e pagamentos de juros foi mais que o dobro do valor gasto em programas sociais e continuou a crescer durante toda a década de 1920 e a maior parte da década de 1930” (p. 317).
Isso era acompanhado pela ideologia de que o Estado é sempre um administrador econômico incompetente, não importa quem esteja à sua cabeça. Sem entrar no argumento específico dos fascistas – que está exposto no livro de Clara Mattei – isso não era diferente do crowding-out britânico. Assim, a necessidade de privatizar era porque as classes poupadoras-investidoras estavam sendo “expulsas” da economia pela propriedade estatal.
Logo, era necessário um amplo processo de privatização. Como consequência, os trabalhadores seriam submetidos à disciplina do “mercado”.
Mas a privatização não era suficiente. Por isso, Mussolini decretou uma legislação repressiva, fascista, da qual o principal exemplar é a famosa Carta del Lavoro, de 1927. O peculiar é que os mesmos economistas que eram contra a intervenção do Estado, agora estavam a favor desta intervenção do Estado.
“O Estado fascista aprovou leis trabalhistas coercitivas que reduziram os salários e proibiram os sindicatos, saindo em defesa das verdadeiras leis econômicas. O paradoxo aqui é gritante: os economistas, tão inflexíveis ao proteger o livre mercado contra o Estado, tinham poucos problemas com a intervenção do Estado no mercado de trabalho” (p. 324).
Com isso, o governo de Mussolini conseguiu um corte estúpido nos salários – afinal, era este o objetivo da sua ditadura.
Mas, outra vez, aparece a mesma pergunta que fizemos em relação à Inglaterra: como vender mercadorias com um mercado interno tão achatado?
A resposta é a mesma:
“… os economistas italianos apostavam na demanda externa para produtos italianos baratos” (p. 332).
Não achamos necessário dissertar sobre os pressupostos de classe dessa política. A ditadura de Mussolini é, por si só, eloquente nesse sentido – inclusive o seu fim, durante a Segunda Guerra Mundial.
Mas a conclusão geral da autora merece ser reproduzida:
“A teoria econômica – seja a economia hawtreyiana ou a economia pura [dos fascistas italianos] – proporcionou consenso para políticas coercitivas, disfarçando-as como benéficas para a sociedade em geral. (…) nossos especialistas ocultaram as relações de dominação por trás de princípios econômicos abstratos apenas para reforçar essas relações de dominação por meio de políticas de austeridade” (p. 339).
O pior é que eles – os supostos “especialistas” – continuaram e continuam fazendo isso. Nem mesmo estamos nos referindo à política econômica da ditadura, mas à situação atual do Brasil.
Sobre isso, nada mais emblemático, nada mais distintivo, que a situação do Banco Central, “independente” do povo, do governo e do parlamento, mas inteiramente dependente da canalha financeira, sobretudo a externa.
[Este artigo é uma homenagem a Cláudio Campos, fundador do HP, que faria aniversário no dia 5 de maio. Agradecemos, também, a Werner Rempel, sem o estímulo do qual dificilmente chegaríamos ao seu final.]