Reforma agrária continua travada após 2 meses de governo Lula
Reforma agrária continua travada após 2 meses de governo Lula
Por Daniela Penha e Diego Junqueira |
Duas trouxas de roupas. Foi o que sobrou para Aziel Souza dos Santos, a esposa e os quatro filhos pequenos recomeçarem a vida após terem sido expulsos do acampamento Hugo Chávez, em Marabá (PA) em 2018. As 250 famílias que viviam ali aguardam desde então por um pedaço de terra para trabalhar, e esperavam notícias melhores com a chegada de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao poder. Mas apesar de o novo governo apostar na reforma agrária para combater a fome, pouco mudou em 60 dias de gestão.
Em 2018, cerca de 250 famílias foram expulsas do acampamento Hugo Chávez, em Marabá (PA), e desde então aguardam solução (Foto: Divulgação/Assessoria de Comunicação da CPT Nacional)
A demora para definir o novo presidente do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), anunciado apenas nesta semana, é apontada por movimentos de trabalhadores do campo como um dos motivos para o atraso na retomada da reforma agrária. No entanto, o baixo orçamento deixado pelo governo de Jair Bolsonaro para este ano, o pouco crédito para a produção e o desmonte das políticas de desapropriação e distribuição de terras são vistos como desafios. Reverter esse cenário é considerado urgente pelos movimentos ouvidos pela Repórter Brasil, mas o plano continua engavetado.
“A gente achava que iria começar a toda velocidade, porque já são seis anos de desgoverno”, lamenta o sociólogo Givanilson Porfírio da Silva, assessor da presidência da Contag (Confederação Nacional do Trabalhadores na Agricultura), que fez parte do grupo de desenvolvimento agrário na equipe de transição. “Ainda é o governo Bolsonaro nas superintendências [estaduais] do Incra. Se isso não mudar, nada adianta, porque são as equipes locais que executam as políticas”.
Durante o governo Bolsonaro, a vida dos camponeses ficou “suspensa” devido à paralisação de todos os processos de aquisição, vistoria, regularização e distribuição de terras, medida determinada na primeira semana de seu mandato, em 2019. Atualmente há 360 processos de criação de assentamentos congelados, de acordo com o Incra. Enquanto isso, 90 mil famílias vivem acampadas pelo país, segundo o MST (Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).
O governo Lula ainda não detalhou o plano de reforma agrária, mas o relatório da equipe de transição aponta alguns caminhos: voltar a reassentar trabalhadores, ampliar a concessão de crédito para o plantio, reforçar a assistência técnica e revisar o cadastramento das famílias.
Além disso, a reforma vai se articular com outros programas que também devem ser reforçados, como o de produção de alimentos saudáveis, redução de agrotóxicos e compras públicas de alimentos. O Programa de Aquisição de Alimentos, por exemplo, chegou a ter orçamento de R$ 1 bilhão em 2014, mas recuou para 2,6 milhões em 2023. A gestão é do Ministério do Desenvolvimento Agrário e da Agricultura Familiar. Com Lula, a pasta passou a comandar a Companhia Nacional de Abastecimento, que também sofreu cortes importantes no governo Bolsonaro e estava sob guarda-chuva do Ministério da Agricultura.
Essas políticas são necessárias para combater a fome, segundo o governo, pois a agricultura familiar é a principal responsável pelos alimentos que chegam à mesa da população. Por isso, o objetivo é ampliar a área plantada de culturas alimentares como arroz, feijão e mandioca, já que o governo avalia que nos últimos anos as políticas públicas priorizaram os plantios de soja, milho e café e a bovinocultura, em razão dos preços favoráveis no mercado internacional.
Além de distribuir terra, a reforma agrária precisa vir acompanhada de políticas públicas para que os agricultores familiares não desistam de produzir (Foto: Gustavo Marinho/MST)
“É necessário combater o agronegócio como forma de produção de alimentos, porque isso está adoecendo o país”, afirma Pablo Neri, que integra a coordenação nacional do MST. “É pelo combate à fome que vamos ter que reformular a reforma agrária no Brasil”, concorda Ademir de Lucas, especialista em extensão rural e organização de produtores da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP).
Reconstrução
Qualquer política a ser implantada, entretanto, vai esbarrar na falta de recursos. Em 2011, o programa de aquisição de terras para a criação de novos assentamentos tinha R$ 930 milhões em caixa, cifra que caiu gradualmente até sofrer um corte abrupto em 2017, com Michel Temer, quando chegou a R$ 41 milhões. O orçamento de 2023, elaborado pelo governo Bolsonaro e aprovado no Congresso no ano passado, destina irrisórios R$ 2,4 milhões. “Isso não dá para comprar nem um apartamento em Brasília, imagina uma propriedade rural”, critica Silva, da Contag.
Para driblar a falta de orçamento, um dos primeiros passos é levantar e organizar informações. Hoje, segundo o Incra, os processos de aquisição de terras para criar novos assentamentos não estão informatizados, o que dificulta o planejamento e o controle da reforma agrária.
Além disso, faltam dados até sobre as terras públicas – que pertencem ao próprio governo e, por isso, poderiam ser distribuídas sem a necessidade de adquirir áreas privadas. “O governo não tem uma dimensão do que é terra pública e do que pode ser destinado para reforma agrária”, salienta Isolete Wichinieski, que integra a coordenação nacional da CPT (Comissão Pastoral da Terra).
Após identificar as terras disponíveis, a segunda etapa seria estudar o histórico dos acampamentos que aguardam regularização para selecionar os casos mais sensíveis. Para Wichinieski, é urgente pensar na Amazônia Legal. “É um dos territórios com mais conflitos e, do ponto de vista de terras públicas, é o que mais tem”, diz.
Outro desafio é recuperar o espírito original da reforma agrária, pois o governo Bolsonaro substituiu o programa por uma política de concessão de títulos provisórios para quem já era assentado. Os títulos de domínio dão a propriedade da terra para o assentado, ao contrário do que ocorre na concessão de direito de uso, em que a área do assentamento permanece coletiva e não pode ser comercializada. Ao titularizar a terra, o governo se exime da responsabilidade de promover políticas públicas no local e, na prática, também insere essas terras no mercado.
Sem incentivo, os pequenos produtores acabam vendendo as áreas que conquistaram para grandes fazendeiros, o que pode agravar ainda mais os conflitos no campo e a concentração de terras.
A agricultura familiar é a principal responsável pela produção de alimentos no país, e incentivá-la é essencial no combate à fome (Foto: Divulgação/MST)
Espera amarga
A expulsão da família de Aziel do acampamento Hugo Chávez, em Marabá (PA), causa traumas até hoje. Em uma madrugada de julho de 2018, pistoleiros chegaram atirando, ameaçando moradores e ateando fogo em tudo o que encontraram. Um dos alvos era a esposa de Aziel.
“A gente fala que foi livramento. Ela conseguiu fugir. Eles ameaçaram nossa filha, uma criança. Diziam que iriam jogar a menina no carro pegando fogo. Um companheiro conseguiu tirar ela de lá”, ele relembra o terror.
O Incra informou que já tentou a compra da fazenda onde está o acampamento, mas não houve acordo com o proprietário. As famílias continuam aguardando, alojadas em outro acampamento há quase cinco anos.
A espera e a violência alimentam o medo, que eles driblam para seguir. “A gente não pode deixar que esse medo nos impeça de lutar pela nossa família e pelas outras. A luta pela terra é árdua”, diz.
Esta reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk, no marco do projeto PN: 2020 2611 0/DGB0014, sendo seu conteúdo de responsabilidade exclusiva da Repórter Brasil