JANGO: FIGURA INCONTORNAVEL
O universo do escritor Juremir Machado da Silva da muitas voltas e tem desembarcado com alguma frequência na última década na figura histórico-politica de João Goulart
O universo do escritor Juremir Machado da Silva dá muitas voltas e tem desembarcado com alguma frequência na última década na figura histórico-política de João Goulart. Seu mais recente trabalho, o livro A memória e o guardião (2020), começa a nascer quando Ricardo Guimarães busca a Juremir para falar dos documentos guardados por seu avô, Wamba Guimarães, já falecido, ao longo de cinquenta anos; Wamba foi guarda-livros do presidente Goulart. Estes documentos armazenam parte essencial da correspondência política do presidente. Os documentos foram comprados pela Unimed Federação/RS; foi nesta biblioteca de arquivos que a cabeça interpretativa de Juremir mergulhou para dar à luz uma face pouco conhecida ou visitada do início da década de 60, entre a posse de João Goulart e sua queda diante do militarismo desconfiado e autoritário. Na verdade, talvez o pré-parto de A memória e o guardião venha de dentro das páginas do romance-reportagem de Juremir Jango, a vida e a morte no exílio (2013); ou ao menos da existência deste romance, pouco sabemos dos caminhos programados ou de acaso da história, a história mesmo e a história literária ou ensaística. Ricardo, conhecendo o interesse do escritor pela figura de Jango, viu ali uma possibilidade de evitar que a documentação fosse para o lixo e para o esquecimento. Então: a história procura o historiador às vezes?
No começo do penúltimo capítulo de Jango a vida e a morte no exílio, o narrador põe em xeque: “A terceira pessoa sai de cena. O historiador e o romancista recolhem-se. Entra em campo o jornalista.” Jango é um romance à parte dentro de nossa historiografia literária. Tem vozes narrativas multifacetadas. Sempre me interessou pensar no universo de escritos de Juremir como o produto duma cabeça múltipla. Nesta perspectiva em que a literatura (sentido amplo, incluindo a parte não-ficcional) de Juremir se apresenta à minha percepção, penso que o conceito mais preciso sobre o autor de A memória e o guardião foi concebido, há muitos anos, por Luis Fernando Verissimo, com sua ligeireza habitual, numa anotação na orelha de A noite dos cabarés (1991), um dos primeiros ensaios de Juremir; dizia Verissimo: “Se este guia for alguém como o Juremir, que reúne na mesma cabeça, e no mesmo estilo, a diligência do repórter, a curiosidade do antropólogo e a acuidade do observador cultural, então o tour vira uma viagem em todos os sentidos.” O que aí está na divagação de Verissimo é a exposição do conceito da múltipla cabeça. A memória e o guardião navega nestas águas: ali está essencialmente o jornalista, mas quem disse que os outros tentáculos não ajudam na composição?
“O que esconde o arquivo guardado por Wamba Guimarães por cinco décadas como uma relíquia venerada?” se pergunta o jornalista antes de se abalançar a uma caminhada de historiador. E Juremir escava nos espinhos de dar forma a uma correspondência onde tudo são fragmentos. Jango, nos anos destas cartas ou bilhetes, é o poder; naqueles tempos, as relações das pessoas com o poder eram um pouco diferentes de hoje, mas na essência estas relações permanecem, buscando outras sombras. A essência das pessoas da nação com o poder, expõe Juremir ao abrir a correspondência, são os pedidos: todos julgam que o presidente pode atender suas reivindicações; claro, há uns que julgam essa necessidade de atender como mais imperiosa: “A roda do poder girava conforme a capacidade de cada ator social de impulsioná-la.”
Pela exposição do livro de Juremir, Jango, conciliador, parece nunca dizer não. Pode dar suas voltas. Mas se alguém pede, este que pede precisa que lhe deem alguma satisfação. Ter o poder, parece, é estar aberto aos pedidos: mesmo na impossibilidade de atendê-los, se existe mesmo essa impossibilidade. “Se todos pedem, usando da influência disponível, os militares não poderiam ser diferentes.”
Os militares. Desde 1961 (ou antes, nos meses que antecederam o suicídio de Getúlio Vargas em 1954), alguns entre os militares estavam à espera da hora certa. Nas correspondências de João Goulart o cheiro da tomada de poder pelos militares em 31 de março de 1964 nem sempre parece estar perceptível. Tem-se a impressão de que alguma coisa se pode conseguir pelas reformas de base, que algo pode ser escrito de maneira diferente do que se passou na história. No entanto: “João Belchior Marques Goulart cometeu um pecado capital: quis reformar o Brasil a partir do possível e aparentemente mais fácil, a conciliação de interesses divergentes de classes.” Este momento de derrota de Jango, figura incontornável —deposto do poder pelo golpe militar de 1964— foi o centro de outro livro de Juremir, 1964, golpe midiático-civil-militar (2014), onde o papel da imprensa nos acontecimentos que levaram ao desfecho de 64 é dissecado, mostrando a ingenuidade (aparente) e a arrogância (escancarada em páginas) de boa parte do mundo intelectual brasileiro de então —e hoje, apesar das nuanças, não parece a este comentarista que as coisas sejam muito diferentes, o comportamento dos donos da opinião publicada permitem (ou por indução ou por omissão ou por reiterar lugares-comuns que perderam o sentido original) aqueles golpes brancos certa vez identificados pelo italiano Umberto Eco.
As duas últimas palavras de A memória e o guardião são: “Até quando?” É a senda a que leva o olhar de perplexidade de Juremir Machado da Silva ao voltar-se para o Brasil, lendo as cartas de João Goulart, uma personagem que amiúde torna no universo do escritor nesta segunda década do século XXI.