Defesa da diversidade cultural e da pluralidade religiosa

Compromisso de Estado e o dever do MP na proteção de minorias étnicas e religiosas

Defesa da diversidade cultural e da pluralidade religiosa

Defesa da diversidade cultural e da pluralidade religiosa

JOTA

Defesa da diversidade cultural e da pluralidade religiosa

Compromisso de Estado e o dever do MP na proteção de minorias étnicas e religiosas

 

Maria da Guia, médium do terreiro Tenda Espírita Vovó Maria Conga de Aruanda, a primeira instituição cadastrada no mapa de terreiros de Ubanda da cidade do Rio de Janeiro. Crédito: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Deus acima de tudo. Não tem essa historinha de Estado laico não. O Estado é cristão e a minoria que for contra, que se mude. As minorias têm que se curvar para as maiorias. Foi o que disse o então deputado federal, no dia 8 de fevereiro de 2017, durante passagem por Campina Grande, PB. Eleito presidente da República, Messias Bolsonaro prometeu nomear alguém terrivelmente evangélico para o Supremo Tribunal Federal.

Em 2001, a III Conferência Mundial Contra o Racismo, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada na África do Sul, alertou a respeito da virulência de movimentos fundamentalistas e extremistas que praticam o que a Declaração de Durban chamou de flagelos da humanidade. Na mesma ocasião, as Nações Unidas reafirmaram que afrodescendentes e povos nativos das Américas continuam sendo violentados e privados de exercer seus direitos fundamentais, dentre os quais, viver e se expressar de acordo com suas tradições e orientações religiosas.

Fruto do preconceito, da discriminação e do racismo, marca do colonialismo e da inconclusa abolição da escravidão, a violência racista se alastra feito doença pandêmica. Os ataques desferidos contra povos e comunidades tradicionais de matrizes afro-brasileiras foram potencializados através dos meios de comunicação e redes sociais. Em 2000, a sacerdotisa Gilda de Ogum faleceu após ver seu nome e dignidade insultados em jornal que circulou por Salvador, BA – sete anos depois, o Brasil adotaria o 21 de janeiro como Dia Nacional do Combate à Intolerância Religiosa.

Desde 2013, pelo menos, jornais denunciam a rotineira inquisição promovida em favelas cariocas. Até o uso de roupas brancas havia sido proibido em alguns locais. Em 2017, enquanto a grande mídia repercutia a notícia de que traficantes cariocas estavam obrigando adeptos e sacerdotes a destruírem objetos litúrgicos e templos, uma nova representação bateu às portas do Ministério Público Federal. O fórum interreligioso de São Paulo noticiara a escalada de crimes genericamente classificados como intolerância religiosa, expressão cuja semântica não consegue abarcar ou densificar com precisão a gravidade e a complexidade da situação.

Constituída pela Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, órgão do MPF, a Relatoria Temática sobre Violência Religiosa colheu informações junto a órgãos do Ministério Público, secretarias estaduais de direitos humanos, de segurança pública e veículos de comunicação e constatou o crescimento exponencial de casos na última década.

Apedrejamentos, incêndios, banimentos, crimes contra a dignidade humana, assassinatos não elucidados. Alguns religiosos não tiveram outra saída senão o silêncio. Ou o exílio. Daí porque, em algumas hipóteses, é possível cogitar a caracterização de terrorismo religioso, dado o real terror infundido por facções na vida de algumas comunidades.

Durante toda essa janela de tempo, afrorreligiosos continuaram submetidos a um feroz processo de demonização. Na internet, na TV, discursos de ódio funcionam como catalisador para a violência espalhada pelos quatro cantos do Brasil. Em um dos vídeos que o Ministério Público Federal pediu para que a Google Brasil tirasse de circulação, em 2014, um líder religioso incitava fiéis a fecharem terreiros em seus bairros.

É relevante recordar que vivemos a Década do Afrodescendente, efeméride cujo eixo gira em torno da valorização, da justiça, do reconhecimento e da reparação. A ONU pretende promover o respeito, a proteção e a concretização de liberdades e direitos fundamentais assegurados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.

É de fato essencial reconhecer que durante séculos vivências, experiências e consciências foram sequestradas e transplantadas para o Brasil; saberes e fazeres foram aqui ressignificados; laços de afeto e de sociabilidades reconstruídos; ancestralidades forjaram tradições assim denominadas de matrizes africanas. Mas é sobretudo indispensável reparar o fato de que esses grupos, fundamentais para a construção do país, permaneceram durante longos séculos com seus direitos suprimidos. Mesmo depois da proclamação da República e do advento do Estado Laico.  Preconceito, marginalização e perseguição persistiram durante muito tempo, resultado do racismo epistêmico e estrutural que atravessa nossa história.

Se a Lei Antirracismo foi promulgada em 1989, o crime de racismo religioso só foi tipificado em 1997, dois anos depois do episódio em que um pastor foi visto, em rede nacional, dando um chute na imagem de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil.

Desde a Declaração de Durban, o Brasil começou a construir políticas públicas para reparar injustiças históricas. O Decreto 6.040/2007, que cuida das comunidades tradicionais, e a Lei 12.288/2010 são instrumentos legais para a proteção das territorialidades e também das expressões culturais de matrizes africanas.

O artigo 26 do chamado Estatuto da Igualdade Racial, por exemplo, estabelece que o poder público deve adotar medidas para combater a intolerância contra as religiões de matrizes africanas e à discriminação de seus seguidores, especialmente com o objetivo de coibir a utilização dos meios de comunicação social para difusão de proposição do racismo religioso. Além disso, determina que o Estado proteja o patrimônio cultural e sítios arqueológicos vinculados às religiões de matrizes africanas, cujos representantes têm o direito de participar de comissões, órgãos e outras instâncias de deliberação vinculadas ao poder público.

De acordo com a Constituição Federal, tratados e convenções internacionais, dentre as quais podemos citar a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho e a Convenção Para Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, o país tem o dever de garantir igual dignidade e o respeito por todas as culturas e pessoas pertencentes a minorias afrorreligiosas e povos indígenas.

Afinal, comunidades tradicionais têm o direito de professar e praticar sua própria religião, de viver e se expressar de acordo com sua identidade cultural. São direitos que precisam ser reafirmados e concretizados. Afinal são compromissos humanitários, obrigações firmadas pelo Estado brasileiro. Assim, nenhum governo pode quedar-se inerte, esvaziar, desidratar ou desconstruir as políticas públicas que têm o propósito de buscar a tão sonhada efetividade desses direitos. Como frisado pelo Supremo Tribunal Federal, cabe anotar, não existe espaço para retrocessos em matéria de garantias fundamentais.

Nos últimos meses, entretanto, temos visto o avanço sobre terras indígenas, o descaso com a proteção do meio ambiente, o desmonte da proteção ao patrimônio cultural. Povos nativos e afrodescendentes continuam perseguidos, violentados, mortos. Nesse contexto, no início de 2020, o ex secretário nacional de cultura declamou trechos de Josefh Goebels, o maior ideólogo e propagandista do nazismo. Ao fundo, ouvia-se Wagner, compositor preferido de Adolf Hitler, líder nazista que usava o compositor para exaltar a pretensa superioridade do povo alemão. Já a intenção do ex secretário Roberto Alvim era lançar o plano de uniformização da cultura nacional.

Seria a verdadeira e única arte nacional, na qual se enquadrariam os anseios de uma imensa maioria de brasileiros. Uma arte brasileira enraizada nos nossos mitos fundantes, heroica, imperativa, profundamente ligada com Deus e vinculada às aspirações urgentes de nosso povo. Enfim, segundo o plano de uniformização, uma arte nacional desenhada para salvar a juventude.

Depois veio o então ministro da Educação. Abraham Weintraub afirmou que os livros escolares em breve seriam “limpos”, pois não fariam mais menções à cultura africana. Foi o mesmo ministro que viria, em seguida, a demonstrar sua aversão à expressão “povos indígenas”. Teve também o presidente da Fundação Cultural Palmares.

Sérgio Camargo foi flagrado chamando o movimento negro de “escória maldita”. Além disso, xingou a sacerdotisa Adna dos Santos, mais conhecida como Mãe Baiana. No dia seguinte, Camargo explicou que estava “em sintonia com o governo Bolsonaro”, mandatário que, no mês de julho de 2020, vetou o artigo de lei que deveria exigir da União a garantia de fornecimento de água potável aos povos indígenas e quilombolas. Em meio à pandemia do COVID-19, o presidente disse que não teria como custear as despesas para preservar a vida dessas populações.

A sociedade brasileira é essencialmente pluriétnica. O respeito à diversidade de povos que a integram é mandamento constitucional. Populações que professam religiões de matrizes afro-brasileiras, assim como os povos originários, possuem direito à consciência, identidade e memória.

É dever do Estado brasileiro garantir condições adequadas que lhes possibilitem expressar, preservar e desenvolver suas consciências, crenças e liberdades religiosas em pé de igualdade com as que são reservadas à maioria cristã.  E é dever do Ministério Público exigir que o Estado brasileiro cumpra suas obrigações, enfrentando omissões, retrocessos e tudo mais que possa colocar em risco a pluralidade religiosa, a diversidade cultural e o estado laico.

O racismo estrutural continua operando. É como se afrorreligiosos e povos indígenas fossem cidadãos de segunda categoria, seres matáveis ou cuja morte social não importa para o estado brasileiro. Não deixa de ser mais uma terrível face do que Mbembe chama de necropolítica. Mas vamos combinar: em um regime democrático de direito substantivo, não há espaço para projetos de tiranias supremacistas e nem tentativas de invisibilização do nosso multiculturalismo. A promessa de construir uma sociedade justa, plural, solidária e livre do racismo e da discriminação odiosa ainda respira.