Comitiva presidencial aceitou relógios Cartier e Hublot como presentes do Qatar

Considerados bens de luxo, relógios podem chegar a custar até R$ 53 mil a depender do tamanho

Comitiva presidencial aceitou relógios Cartier e Hublot como presentes do Qatar

Comitiva presidencial aceitou relógios Cartier e Hublot como presentes do Qatar

Considerados bens de luxo, relógios podem chegar a custar até R$ 53 mil a depender do tamanho

SÃO PAULO

comitiva presidencial relógios Comitiva presidencial em Doha, no Qatar / Crédito: Valdenio Vieira/PR

No dia 28 de outubro de 2019, o presidente da República Jair Bolsonaro (PL) e o emir do Qatar, Tamim bin Hamad al-Thani, se encontraram para, nas palavras do monarca qatariano, assinar “acordos e memorandos de entendimento para reforçar as relações entre os dois países”. A viagem foi prolífica também para os membros da comitiva presidencial. Os viajantes foram presenteados pelo governo do Qatar com relógios Hublot e Cartier, que podem chegar a custar até R$ 53 mil a depender do tamanho — e, o que é incomum, aceitaram os itens, que possuem valor expressivo. Alguns dos mimos foram repassados aos membros do governo pela Presidência da República, quando todos já haviam chegado ao Brasil.

Os agraciados com os relógios foram: o atual ministro do Turismo, Gilson Machado Guimarães Neto; o então chanceler Ernesto Araújo; o deputado federal Osmar Terra, que na ocasião era ministro da Cidadania; Sergio Ricardo Segovia Barbosa, então presidente da Apex; e Caio Megale, economista-chefe da XP Investimentos, que na época ocupava o cargo de chefe da Assessoria Especial de Relações Institucionais do Ministério da Economia.

Além deles, também foram presenteados o ministro da do Trabalho e Previdência, Onyx Lorenzoni, e o general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República. Os dois não revelaram quais mimos receberam da realeza.

 

O ministro de Ciência e Tecnologia, Marcos César Pontes, que também integrou a comitiva, por sua vez, recebeu uma placa de vidro, com os dizeres: “Qatar Business Incubation Center – Developing the Next QAR 100 Million Companies in Qatar”. A placa não possui valor comercial. Já Roberto Abdalla, que na ocasião era embaixador brasileiro em Doha, foi o único a devolver o relógio Hublot que recebeu, “em razão do seu custo elevado”.

Comissão de Ética analisou o caso Cartier

O caso acabou chegando à Comissão de Ética Pública da Presidência da República, diante da dúvida de Caio Megale se seria ético ficar com um relógio da Cartier que recebeu de um ajudante de ordens da Presidência da República, quando já estava no Brasil, pouco mais de um mês depois da viagem.

O relator do caso, Gustavo do Vale Rocha, entendeu que o caso se tratou de uma “situação protocolar de troca de presentes, em visita oficial do senhor presidente da República a Doha, Qatar, caracterizando-se como prática usual às relações diplomáticas entre países, na esteira do exercício regular das funções desempenhadas pelos representantes dos Estados envolvidos”.

E, conforme resposta do então chanceler Ernesto Araújo, com base na reciprocidade, autoridades governamentais do Estado do Qatar “foram presenteadas com peças alusivas à cultura brasileira e/ou confeccionadas em materiais originários do Brasil, em gesto de cortesia no exercício regular de funções diplomáticas”. Há registro fotográfico da entrega de camisas do Flamengo e da seleção brasileira ao emir Tamim bin Hamad al-Thani.

“Ainda que as referidas autoridades não estivessem no exercício de funções diplomáticas, há que se enfatizar que, constatada aqui a hipótese de reciprocidade na oferta de presentes entre a comitiva brasileira e os membros do governo do Qatar, não há se falar em descumprimento de norma ética, tampouco em configuração de conflito de interesses”, concluiu o relator.

Para Rocha, portanto, as autoridades presenteadas não teriam o dever de devolver os mimos porque, na visão dele, eles foram recebidos nas condições permitidas, sem quaisquer indícios de que tenha havido conflito de interesses.

Agentes públicos devem também parecer éticos

O conselheiro Ruy Martins Altenfelder Silva abriu a divergência. Para ele, o agente público deve portar-se sob os mais elevados padrões éticos, o que, não raro, exigirá profunda compreensão de que suas condutas, tanto quanto éticas, deverão parecer éticas, em sinal de respeito à sociedade.

Assim, a fim de evitar questionamentos a macular a imagem da missão diplomática, “que muitas vezes objetiva, de forma legítima, estreitar laços e intensificar relações do Brasil com outros países, deve-se rechaçar qualquer situação que possa sugerir favorecimento, ainda que aparente, a determinadas autoridades estrangeiras por parte de representantes do Estado brasileiro, especialmente no bojo de missão que, intrinsecamente, envolve interesses comercias. Há que se prevenir, portanto, ilações a respeito da oferta de presentes por autoridades que possam ter interesse em decisão do agente público”.

Silva votou para que os membros da comitiva presidencial devolvessem os relógios, diante do “risco de prejuízos ao interesse público em razão de potencial conflito de  interesses no recebimento de presentes, especialmente em razão da relevância dos cargos ocupados e do valor excessivo dos presentes recebidos”. O conselheiro também opinou para que Onyx Lorenzoni e o general Augusto Heleno fossem oficiados para que esclarecessem o valor e os detalhes dos presentes que receberam.

Como dois conselheiros acompanharam o relator e outros dois (Roberta Muniz Codignoto e Francisco Bruno Neto) votaram junto com Silva para que os presentes fossem devolvidos, o caso teve de ser decidido pelo voto de qualidade, do então presidente, André Ramos Tavares.

A decisão do Comitê de Ética da Presidência

Ao desempatar o caso, com o voto de qualidade, André Ramos Tavares decidiu que os membros da comitiva não precisavam devolver os relógios e que isso não seria uma “flexibilização da regra”, mas uma “hipótese normativa de exceção”, já que “há declaração expressa do Ministério das Relações Exteriores” “revelando sua característica diplomática”.

Embora no caso concreto o voto tenha sido para que os presentes não sejam devolvidos, Tavares afirmou ser necessário, em caráter emergencial, aprimorar a norma em vigor, “para indicar de maneira objetiva o valor máximo para presentes que se podem aceitar em relações diplomáticas, ou mesmo algum outro critério que venha a ser ponderado como mais adequado ao mero corte em função de valores envolvidos”.

“Entendo que é imprescindível rever também os procedimentos e o destino a ser concedido em caso de impossibilidade de se recusar presente cuja aceitação é vedada. Trata-se dos casos em que é necessário o recebimento de presentes em valor superior, em virtude do constrangimento que a situação de recusa poderia causar ao representante diplomático, no país doador”, ponderou.

A comitiva presidencial agradece.

O que dizem os membros da comitiva

Procurado para se manifestar sobre a não devolução do relógio ofertado pelo governo do Qatar por ocasião da viagem da comitiva presidencial, o ministro do Turismo, Gilson Machado Neto, afirmou que “o repórter está equivocado e na viagem ao Qatar não recebeu o relógio”. De fato, Machado não recebeu o mimo na viagem. Ao Comitê de Ética, o atual ministro do Turismo havia informado que, sim, foi “presenteado pelo Governo do Catar com o relógio descrito”, que “dois meses após o meu regresso ao Brasil, me foi entregue o referido presente na sede da Embratur, por um ajudante de ordem da Presidência da República, em caixa fechada” “que não houve reciprocidade de presente de minha parte” e que “o presente que me foi entregue continua em minha posse, sem uso”.

 

Caio Megale, procurado, informa que reportou imediatamente o recebimento ao Comitê de Ética da Presidência da República para saber como proceder nessa situação e que nunca fez uso do objeto.

Ernesto Araújo, Osmar Terra, Sergio Ricardo Segovia Barbosa, Onyx Lorenzoni e o general Augusto Heleno não responderam aos contatos da reportagem.