"Antes do sionismo, a Palestina era um dos lugares mais seguros do mundo para o judeu", diz Breno Altman

"Antes do sionismo, a Palestina era um dos lugares mais seguros do mundo para o judeu", diz Breno Altman

O antissemitismo não tem a ver com o Islã mas sempre com o cristianismo, explica o diretor do portal Opera Mundi

Katia Marko e Ayrton Centeno

Brasil de Fato RS | Porto Alegre |

 

O jornalista Breno Altman foi entrevistado no podcast De Fato quando esteve em Porto Alegre para lançar o livro “Contra o Sionismo: retrato de uma doutrina colonial e racista” - Foto: Alexandre Garcia

Dentro da comunidade judaica brasileira, o jornalista Breno Altman é a voz mais incisiva contra o massacre praticado em Gaza, onde os bombardeios do exército israelense já mataram 22,3 mil pessoas, entre as quais 9,6 mil crianças e 6,7 mil mulheres.

:: Polícia Federal investiga Breno Altman por suas críticas a Israel e ao sionismo ::

O que lhe valeu ataques violentos nas redes e uma denúncia da Confederação Israelita do Brasil (Conib) que resultou em abertura de inquérito policial para investigar o jornalista, sob a acusação de racismo.

Em contrapartida, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) solidarizou-se com Altman contra “covardes ataques e ameaças de grupos radicais pró-Israel por conta de seu trabalho jornalístico”. A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) apontou a ação da Conib como “evidente assédio a um jornalista crítico”, algo “inconcebível no estado democrático de direito”. Um abaixo-assinado reunindo integrantes da comunidade acadêmica, jornalistas, artistas e intelectuais também apóia Altman e critica a “falsificação histórica grosseira” que interpreta uma posição antissionista como “antissemitismo”.

 

Altman esteve em Porto Alegre para lançar “Contra o Sionismo: retrato de uma doutrina colonial e racista”, livro em que esmiuça as raízes das ideias que conduzem ao drama das populações submetidas à limpeza étnica, às humilhações e à violência cotidiana. Falou para um Clube de Cultura lotado e concedeu entrevista ao podcast De Fato, uma conversa que aqui reproduzimos devido a sua importância e poder esclarecedor. Acompanhe.

Brasil de Fato RS - Breno, o título do teu livro é ‘Contra o Sionismo: retrato de uma doutrina colonial e racista’. Por que é colonial e racista?

Breno Altman - Porque esses são os dois fundamentos dessa doutrina desde a sua origem, quando Theodor Herzl, fundador do sionismo, escreveu o seu livro “O Estado Judeu”. O primeiro de que deveria ser construído um Estado com base na supremacia de uma etnia, porque os judeus não são uma nacionalidade, os judeus foram uma nacionalidade há muitos e muitos séculos atrás e, a partir do ano 70 da nossa era, quando ocorre a destruição de Jerusalém pelo Império Romano, aceleram sua diáspora, chamada segunda diáspora, e vão se inserir em vários países do mundo, especialmente na Europa. Então, estamos falando entre a fundação do sionismo oficialmente em 1897 - o livro do Herzl nos Estados Unidos foi lançado um pouco antes - e o ano 70 da nossa era. Estamos falando de 1830 anos.

Israel é o único Estado em tempos modernos que legalmente se define a partir da raça, da etnia

Então, em 1830 anos, os judeus deixaram de ser uma nacionalidade. Passaram a viver inseridos nas sociedades para as quais os seus ancestrais imigraram. Os judeus são um grupo étnico-cultural - o cultural abrange também uma certa referência religiosa. Nem todos os judeus são religiosos, mas eles possuem essa origem étnico-cultural. O que Herzl propunha era a criação com base numa etnia e não numa nacionalidade. Não há nada de comparável do ponto de vista nacional entre os judeus europeus, chamados asquenazes, e os judeus da Península Ibérica, que foram expulsos e acabaram imigrando para o norte da África e os territórios do então Império Otomano, os sefarditas, muito menos ainda com os judeus negros da Etiópia. Herzl propõe isso: um Estado sob supremacia étnica. Na verdade, Israel é o único Estado em tempos modernos que legalmente se define a partir da raça, da etnia. A África do Sul não era assim.

BdFRS - É justamente o que eu ia te perguntar: a África do Sul do apartheid não era assim?

Altman - Não, ela tinha as leis da segregação, mas não se definia como um Estado branco. Nem mesmo a Alemanha nazista se definia como um Estado ariano. É um caso único em tempos modernos. Israel não tem constituição mas, como uma das leis básicas, em 2018 foi aprovado que Israel é um Estado judeu, embora 21% da população seja formada por árabes israelenses, além de outras minorias. Declara-se judaico, estabelece a supremacia de um grupo étnico, e isso está presente desde a origem do sionismo. O que (o primeiro-ministro Benjamin) Netanyahu fez ao aprovar essa lei foi dar formalidade aquilo que já era doutrinário. Já era de fato, ainda que não “de jure”.

Apenas 4% da população da Palestina no final do século 19 era de judeus

O segundo pilar dessa doutrina sionista é o colonialismo. Havia um setor sionista que propunha levar ao pé da letra uma velha consigna sionista, que era “Uma terra sem povo para um povo sem terra”. No primeiro congresso sionista que se realiza em Basileia, na Suíça, houve quem propusesse que o Estado judeu fosse criado na Patagônia ou em Uganda ou no Congo para não perturbar nenhum povo. Mas prevaleceu a tese de construir esse Estado judaico onde, no passado, existira o Reino Unido de Israel e Judá, que é exatamente Canaã, nome antigo da atual Palestina. Só que praticamente não existiam mais judeus na Palestina. Apenas 4% da população da Palestina no final do século 19 era de judeus. Como um outro povo há séculos ocupava aquela região, era uma terra com povo. Os árabes palestinos representavam 85% da população local.

Portanto, para você criar um Estado de supremacia étnica numa região que é ocupada por outro povo, na literatura e na história só tem um jeito, que é o colonialismo. É você expulsar aquele outro povo, submetê-lo, humilhá-lo, aprisioná-lo. Não há outra maneira.

O antissemitismo se apoia fundamentalmente sobre o cristianismo e não sobre o islamismo

BdFRS - Então essa dita guerra não acaba enquanto não expulsar todo o povo da Faixa de Gaza?

Altman - É a tensão que o sionismo introduziu. Antes do sionismo, a Palestina era um dos lugares do mundo mais seguros para o judeu. Não há histórias de grandes conflitos entre árabes, muçulmanos e judeus na Palestina. Ao contrário, o antissemitismo é um fenômeno que se apoia fundamentalmente sobre o cristianismo e não sobre o islamismo. Atualmente, se deforma isso. É como se existisse uma longa história de perseguição aos judeus por parte dos muçulmanos. É falso.

O conflito entre muçulmanos e judeus tem como elemento central o sionismo, ou seja, o momento em que uma parcela importante da comunidade judaica abraça uma doutrina que propunha colonizar uma terra de maioria árabe. Antes disso, os muçulmanos historicamente abrigaram e protegeram os judeus, que eram perseguidos pelo cristianismo.

Qual foi a encarnação religiosa dessa perseguição? O cristianismo! Os três grandes eventos de perseguição aos judeus foram a inquisição, os pogroms no Império Russo e o holocausto. Cada um desses três teve do ponto de vista religioso na sua liderança alguma corrente cristã, a Igreja Católica no caso da inquisição, depois a Igreja Ortodoxa, e depois os protestantes.

BdFRS - Vale lembrar que a Ku Klux Klan perseguiu os negros, mas também os judeus...

Altman - É uma corrente cristã de ultradireita do século 19...Então o sionismo vai introduzir esse conflito, que nada tem de religioso, entre os judeus e os árabes palestinos e, depois, com todo o mundo muçulmano. Na lógica do sionismo sempre esteve muito claro que sua intenção era reconstruir o Reino Unido de Israel e Judá.

Qual era o território que esse reino ocupava? O Reino Unido foi criado há três mil anos, mil anos antes da nossa era. Existiu como reino unificado por pouco tempo. Depois, se dividiu entre dois reinos, o de Israel e o de Judá. Judeu vem do Reino de Judá, porque antes os judeus eram chamados de hebreus. O Reino de Israel, que ficava ao norte, foi destruído pelos assírios, e o de Judá, que ficava ao sul, foi detonado pelo Império Babilônico de Nabucodonosor II.

O território que o Reino Unido de Israel e Judá ocupava corresponde às chamadas terras de Israel do Velho Testamento - é aquela passagem em que Deus teria dito a Abraão que aquela terra seria destinada para que ele pudesse proteger e fazer crescer o seu povo, que o povo hebreu era o povo eleito, e que aquela era a tal da terra prometida onde teria existido o Reino Unido de Israel e Judá. Há uma polêmica arqueológica sobre isso porque abrigaria não só a atual Palestina histórica, como regiões da Síria, do Líbano e do Iraque. Segundo alguns historiadores, iria do (rio) Tigre ao (rio) Eufrates.

Israel funcionou durante uma certa etapa como a lavanderia da África do Sul

O objetivo do sionismo sempre foi esse marco territorial. Nunca foi aceitar que os palestinos constituissem seu próprio Estado – embora, em algumas etapas, os sionistas tenham aceitado essa ideia por razões táticas. Fizeram assim em 1947 quando houve a partilha das Nações Unidas, depois nos Acordos de Oslo, início dos anos 1990, mas a realidade nua e crua é que a lógica expansionista de um Estado colonial o leva ao que estamos assistindo hoje.

Quando é que ele se sente seguro sendo um Estado racista e colonial? Quando já não tem mais adversários no seu território. Essa não é só a história do sionismo, é a história de qualquer colonialismo.

BdFRS - Chama a atenção que, no período do apartheid, a África do Sul tinha problemas no relacionamento com alguns países do ocidente, mas não tinha problemas com Israel. Havia uma afinidade entre Israel e a África do Sul do apartheid...

Altman - Vou contar uma das afinidades. Em que ano foram criadas as leis do apartheid? Em 1948, no mesmo ano que se criou o Estado de Israel. Não há comprovações históricas de que tenha havido uma interrrelação entre os dois episódios, mas é uma coincidência interessante.

E você tem toda a razão: as relações entre Israel e África do Sul, pelo menos até os estertores da África do Sul, foram muito próximas. Israel funcionou durante uma certa etapa - quando começam as medidas de boicote, desinvestimento e sanção contra a África do Sul, as quais se somam até mesmo países como Estados Unidos, Grã-Bretanha, França - como a lavanderia da África do Sul. A África do Sul produzia muitos diamantes e como escoava os diamantes? Através do Estado de Israel, de maneira clandestina...

As relações de Israel com a África do Sul (do apartheid) eram relações siamesas

BdFRS - E Israel não tem diamantes...

Altman - Não tem diamantes mas tem importantes redes comerciais, conexões com o mundo do comércio e muita tradição judaica no comércio de diamantes. Então, se escoava via Israel. Uma tese que ainda padece de comprovação científica mais clara, diz que Israel teria tido acesso a determinados processos de tecnologia nuclear neste intercâmbio, que ajudou a África do Sul em troca da África do Sul apoiar o programa nuclear de Israel.

Os países capitalistas centrais, num momento inicial, não apoiavam o programa nuclear de Israel por razões óbvias. Se Israel tivesse autonomia num programa nuclear o risco de que utilizasse esse armamento e criasse uma situação que complicada para os países capitalistas centrais era muito grande. Então, as relações de Israel com a África do Sul eram relações siamesas.

BdFRS - E essa rejeição que houve nesse período à África do Sul - e que não acontece em relação a Israel - tem relação com a questão da posição geopolítica de Israel, vinculada ao interesse estadunidense ali na região?

Altman - Tem duas razões. Uma é essa, uma razão geopolítica. Israel é a grande cabeça de ponte dos Estados Unidos no Oriente Médio do ponto de vista militar desde que perderam a aliança com o Irã, quando houve a revolução dos aiatolás em 1979, derrubando o Xá Reza Pahlevi. O Irã era o grande aliado dos EUA no Oriente Médio. Cai o Irã, Israel se fortalece de uma maneira muito clara como essa cabeça de ponte. Já era um aliado dos EUA desde os anos 1950 do século passado mas se consolida com esse papel geopolítico ao qual você se referiu.

Mas há uma outra razão. O papel excepcional especial que Israel ocupa no sistema imperialista que os EUA criam a partir da Segunda Guerra Mundial. Podemos olhar para esse sistema imperialista e vemos com muita clareza, verticalidade e mão única. As instituições desse sistema, sejam as financeiras como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, ou as militares como a OTAN, são comandadas pelos Estados Unidos.

Israel é o melhor porta-aviões dos Estados Unidos no Oriente Médio

BdFRS - Foi resgatado um vídeo do (presidente Joe) Biden dizendo que não era judeu mas seria sionista. E que os Estados Unidos gastariam uma fortuna imensa se não tivesse Israel ao seu lado no Oriente Médio, sendo Israel é uma espécie de porta-aviões dos Estados Unidos na região.

Altman - É o melhor porta-aviões dos Estados Unidos no Oriente Médio sem ter um só soldado americano a bordo. É a frase clássica que foi utilizada pelos americanos. Mas há esse outro aspecto, ou seja, os Estados Unidos tem um poder de mando sobre os demais países do sistema imperialista, seja sobre os países capitalistas periféricos como o Brasil, seja sobre os países capitalistas centrais secundários como Reino Unido, França, Alemanha, Japão.

Como a gente está vendo, por exemplo, nesse episódio da guerra da Ucrânia, em que a Europa aceita apoiar os EUA mesmo contra seus próprios interesses econômicos. É um sistema de mão única. Os Estados Unidos mandam e as elites nacionais obedecem ou não. Normalmente obedecem, vez ou outra podem não obedecer, mas nenhuma dessas elites tem influência dentro dos Estados Unidos. Israel tem, esse é o outro fator.

BdFRS - Verdade, no sistema financeiro, comunicação, político…

Altman - Claro, a burguesia judaico-sionista dos Estados Unidos, mas também da França, do Reino Unido, do Brasil, da Argentina, se conecta diretamente com Israel. Não se conecta através dos seus estados nacionais. Conecta-se diretamente com o Estado de Israel, que faz política dentro dos Estados Unidos, do Reino Unido, na França, no Brasil, na Argentina. Então essas frações judaico-sionistas da burguesia mundial operam em favor do Estado de Israel e tem uma posição proeminente nos Estados Unidos, na área financeira, na indústria cultural, especialmente no cinema, nos meios de comunicação.

O sionismo faz uma inversão da leitura religiosa: o messias só chegará depois que a terra prometida voltar a estar ocupada pelo povo eleito

Isso é verdadeiro também em outros países. É muito verdadeiro aqui no Rio Grande do Sul, o grande grupo comunicacional do Rio Grande do Sul é de propriedade dos Sirotsky. Os Sirotsky são patrícios, são de origem judaica, e muito vinculados ao Estado de Israel.

BdFRS - Chama a atenção, especialmente no caso dos Estados Unidos, a aproximação de Israel por parte de grupos pentecostais...

Altman - É um movimento que começa a partir da reforma religiosa que o sionismo realiza no início do século 20. Qual reforma? A rigor os textos religiosos judaicos deixam muito claro que o Reino de Israel somente poderia ser reconstituído depois da chegada do messias. Somente então Israel teria autorização para se reconstruir como uma nação, retornar à terra prometida e acabar com a diáspora que começa, ou que se acelera, com a destruição de Jerusalém pelo Império Romano no ano 70. Somente a chegada do messias poderia autorizar essa reconstrução. Era essa a leitura ultra-ortodoxa dos textos religiosos. Essa leitura atrapalhava o sionismo. Como que se iria construir o Estado de Israel na terra prometida sem a chegada do messias?

Então, o sionismo faz uma inversão da leitura religiosa: o messias só chegará depois que a terra prometida voltar a estar ocupada pelo povo eleito e os ímpios, os impuros, os outros grupos étnicos, tiverem sido expulsos. A reforma religiosa impulsionada pelo sionismo cria essa leitura que apoia o sionismo e consolida a aliança entre o sionismo político e o sionismo religioso. Originalmente, o sionismo é laico.  Herzl declarou, em vários momentos, que era ateu. O sionismo, na verdade, segundo os ultraortodoxos, cria a sua própria religião a partir de uma reinterpretação do judaísmo.

Em paralelo, especialmente no pós-guerra, de uma maneira lenta e de uma forma mais acelerada a partir dos anos 1980, começa um movimento no cristianismo que tem a ver com o que se conhece como neopentecostalismo. Uma releitura do Velho Testamento. Qual é essa releitura? A de que o retorno do messias - porque para os cristãos o messias já esteve entre nós, que era Cristo - somente poderá acontecer na Terra Santa, e essa somente virá a receber o messias se ela for compreendida como a terra prometida por Deus a Abraão. Começa a haver uma interpretação do Velho Testamento de que somente quando os judeus retornassem à terra prometida e restabelecessem seu reino, é que o messias retornaria.

Nos últimos 40 anos, surgiu um curioso grupo chamado sionismo evangélico

Há uma aproximação religiosa entre os neopentecostais e o sionismo religioso. É tão forte que, nos últimos 40 anos, surgiu um curioso grupo chamado sionismo evangélico. Não há um só judeu nesse grupo. São só evangélicos. Foi criado nos Estados Unidos. Ganham muito dinheiro. Vivem de fazer turismo religioso, de levar os evangélicos neopentecostais a Israel, aos grandes símbolos religiosos do Velho Testamento. Esse grupo é apenas parte deste processo de aproximação entre neopentecostais e o sionismo religioso.

No Brasil mesmo, temos uma evidência muito clara. Aquele que é o segundo maior grupo neopentecostal, a Igreja Universal do Reino de Deus, construiu sua principal sede em São Paulo, imitando aquilo que teria sido, conforme certos desenhos, o segundo templo de Salomão em Jerusalém. O tal segundo templo que os romanos teriam destruído. Há controversas até que tenha existido. As vestimentas, não dos pastores, mas dos bispos da Igreja Universal, adquiriram características, uma estética judaica. Vira e mexe a gente vê o principal líder da Igreja Universal, o bispo Edir Macedo, pregando com aquele chapeuzinho judaico para proteger a cachola e com aquelas vestimentas próprias do judaísmo.

No Brasil, a gente vê uma espécie de tripé  na ultradireita: ultraliberalismo, fundamentalismo cristão e sionismo

Houve essa aproximação religiosa, que também tem incidência política nos Estados Unidos, mas aqui no Brasil em especial, porque a gente vê uma espécie de tripé na ultradireita brasileira: o ultraliberalismo do ponto de vista econômico, o fundamentalismo cristão do ponto de vista da sua base de massas, e o sionismo como seu principal aliado internacional. E a aproximação em relação ao sionismo e à Israel, feita por Bolsonaro já há vários anos, teve como um de seus objetivos reforçar suas relações com o mundo pentecostal.

O que eu vou dizer é chute mas é provável que Bolsonaro, há 20 ou 30 anos atrás, fosse um antissemita brutal. É provável que odiasse os judeus porque é próprio da ultradireita, que tem essa extração neofascista, ser antissemita. Precisava fazer sua própria conversão, porque vem do catolicismo, e se relacionar com esse mundo neopentecostal. Alguém deve ter contado para ele: se você quiser o apoio desse mundo neopentecostal, além de você ser ultraconservador, faça uma outra coisa, tem que se abraçar com Israel. E lá foi ele se abraçar com Israel.

BdFRS - Tem um outro fator que me chama atenção, e que talvez se explique por aí, que são os grupos do crime organizado. Tem favelas que tem bandeiras de Israel de grupos de tráfico, chamados Complexos de Israel.

Altman - A minha explicação para isso é um pouco oposta. Pela força política e social que o crime organizado passa a ter, e deseja ter, ele se ancora no neopentecostalismo. É a forma dele dialogar com as comunidades nas quais está inserido. E aí absorve a simbologia, a nomenclatura, desta aliança entre o neopentecostalismo e o sionismo religioso.

Não acho que, neste caso específico, vamos encontrar relações diretas do sionismo com o crime organizado. O crime organizado praticado pelo sionismo está em outra esfera, muito maior do que é cometido nas comunidades do Rio de Janeiro. O crime organizado do sionismo é contrabando de armas.

BdFRS - Mas o crime organizado é comprador das armas...

Altman - Sim, mas não vejo uma ligação direta. Acho que aí há uma absorção de símbolos, estética e nomenclatura, por parte de grupos do crime organizado, que se associam ao neopentecostalismo para garantir apoio social, e ao assumir esse discurso neopentecostal, absorvem os símbolos do sionismo que o neopentecostalismo já tem.  

A fundação do Estado de Israel foi liderada pelo que era chamado de sionismo trabalhista

BdFRS - Para muitas pessoas parece que tudo que está acontecendo agora é, em grande parte, obra de um determinado governo de Israel, que é um governo de extrema-direita, que é o governo Benjamin Netanyahu. Mas essa complicação começou muito lá atrás onde os artífices dessa construção, da fundação do Estado de Israel, não eram de ultradireita, eram de esquerda. Eram do partido trabalhista de Israel.

Altman - Você tem toda a razão: a fundação do Estado de Israel foi liderada pelo que era chamado de sionismo trabalhista ou sionismo socialista, um setor do sionismo vinculado ao socialismo reformista da Europa, à Segunda Internacional especialmente. O sionismo esteve politicamente dividido entre duas grandes alas, particularmente após a morte de Theodor Herzl. Uma ala que é esta, o sionismo trabalhista ou socialista, e a outra era conhecida como o sionismo revisionista. Revisionista porque queria retornar às teses originais de Herzl, que não era um homem de esquerda, mas de direita, vinculado às elites burguesas da Europa.  

Mesmo que tivessem divergências importantes entre si - e ainda tem - esses dois grupos e todos os demais grupos sionistas estão vinculados e comprometidos com aquilo que (o primeiro chefe de governo de Israel) David Ben-Gurion chamou do consenso ideológico sionista. Tem dois pontos esse consenso ideológico, cabe em meia folha de papel. A primeira é a defesa da existência de um Estado judaico como propunha Herzl. O segundo pilar desse consenso ideológico é o direito de ocupação da Palestina para criar esse Estado judaico. Esses dois pontos são comuns a todas as alas do sionismo, e são determinantes à sua política. Toda vez que esses dois fatores estiverem sob ameaça, os sionistas se unem, e essas fronteiras entre esquerda sionista e direita sionista desaparecem.

Se a gente quiser fazer uma brincadeira, o sionismo é o caso de identitarismo mais bem-sucedido da história

Qual é a diferença entre esses dois grandes grupos? São duas principais. Os sionistas trabalhistas ou socialistas tinham uma estratégia mais gradual, uma estratégia mais paulatina de construção do Estado judaico, de subordinação dos árabes palestinos, de expulsão dos palestinos. Era uma estratégia menos confrontacionista. A direita sionista tem uma estratégia mais radical, tanto contra o mandato britânico que controlou a Palestina entre 1918 e 1948, quanto principalmente contra os árabes, para a construção do Estado judaico e a colonização da Palestina.

Havia uma segunda divergência importante. O sionismo socialista ou trabalhista tinha como objetivo criar um sistema de bem-estar social, como aquele proposto pela social democracia. Uma coisa curiosa, porque é um estado de bem-estar social para os judeus mas não para os palestinos. Um sistema de bem-estar social racista e colonial. A direita sionista sempre foi liberal. Sempre foi vinculada às grandes corporações capitalistas e à ideia de que Israel tinha que ser uma pérola do desenvolvimento capitalista livre, desregulado e subordinado ao mercado. Eles têm essas duas diferenças mas como a determinação do sionismo é identitária...

Veja que curioso: até brinco com as pessoas - não gosto muito de usar esse termo identitarismo no debate brasileiro, porque ele foi deformado - mas se a gente quiser fazer uma brincadeira, o sionismo é o caso de identitarismo mais bem-sucedido da história.

A pura identidade essencial, aquela estabelecida por etnia, traz essas consequências, quando é o fator predominante, quando o fator predominante não é classe. Quando o fator predominante é o essencial, aquele que você nasce com e não aquele que é construído pelas relações econômicas e sociais, esse é o risco que se corre. Então, a lógica do sionismo é identitária, radicalmente identitária, e esse fator identitário subordina todos os demais. Essas diferenças entre esses dois grupos do sionismo, perdem relevância nos momentos de crise, mesmo que sejam diferenças altamente intensas, que levem a confrontos. Na hora H, quando estão em jogo esses dois pilares do sionismo, eles se unificam.

O sionismo trabalhista ou socialista conduziu estratégias de limpeza étnica, de expansão colonial

Na prática, o sionismo trabalhista que dirigiu a criação do Estado e que governou Israel de 1948 a 1977 de forma contínua, foi absorvendo, em termos da sua estratégia em relação aos palestinos, o paradigma da direita sionista. O sionismo trabalhista ou socialista, liderado por Ben-Gurion, por Golda Meir, por Moshe Sharett, por Yitzhak Rabin, por Shimon Peres, conduziu estratégias de limpeza étnica, de expansão colonial.

Foi durante o governo trabalhista que Israel pulou dos 53% a partir de 1947, para 79% na Primeira Guerra Árabe Israelense que se encerra em março de 1959. De maio de 1948 a março de 1959, Israel amplia em 50% o território que ocupava. Foi em seu governo trabalhista que se faz a Guerra dos Seis Dias e Israel passa a controlar 100% da Palestina. Foi sob o governo trabalhista que ocorre o que os palestinos chamam de Nakba, a tragédia, a fuga de 750 mil palestinos em 1948. É tudo sob o governo trabalhista. Não sob os governos de direita.

O Netanyahu é a encarnação dessa estratégia mais radical. Mas não é uma ruptura nem do regime político interno de Israel, que continua sendo o mesmo regime de apartheid sempre, nem dos valores fundantes do Estado. É uma estratégia mais radicalizada para defender os mesmos fundamentos.

Os partidos religiosos (de Israel) são mais ou menos como o Centrão aqui no Brasil. Cobram pedágio

BdF RS - Essa conotação religiosa do Estado de Israel é mais de direita ou mais da esquerda do sionismo?

Altman - Quem faz o abraço do sionismo religioso é o trabalhismo. A chamada reforma religiosa sionista, o reformismo judaico religioso, ocorre não somente sob a tutela do sionismo trabalhista, mas com um papel relevante do sionismo trabalhista. As medidas religiosas mais intensas e recentes devem ser atribuídas à direita sionista, mas sempre a religião teve um papel. Vai se consolidando ao longo do tempo como uma espécie de teocracia disfarçada.

Por exemplo, não existe casamento civil em Israel. Só existe o religioso e só o rabinato pode casar as pessoas. Uma pessoa de origem árabe, eventualmente de crença muçulmana e que quer se casar, tem que pedir ao rabino autorização para casar em outra religião. Você não é livre para casar na sua própria religião, precisa de uma autorização. O rabinato detém, até por razões financeiras, o monopólio do casamento.  Isto é próprio de uma teocracia. A religião judaica é a religião oficial do Estado de Israel e, ao longo dos últimos 30 anos, esse aspecto teocrático veio se fortalecendo por razões políticas.

A direita sionista, para manter a hegemonia conquistada a partir de 1977, tem que se alinhar com os partidos religiosos. Sozinha, não tem mais maioria. E esses partidos religiosos são mais ou menos que nem o Centrão aqui no Brasil. Cobram pedágio. Qual é o pedágio? Vai me dando coisas, quero controlar não só o casamento, quero controlar também isso e aquilo. Tem que ter bolsas para os religiosos virarem colonos nos territórios ocupados, que foi a grande estratégia sionista depois dos Acordos de Oslo (pelos acordos, de 1993, os palestinos reconheceram Israel e os assentamentos israelenses na Cisjordânia seriam removidos) mas, nos entremeios dessas áreas (da Cisjordânia) estimula os assentamentos judaicos. Hoje são mais de 700 mil colonos, muitos deles religiosos, que são bancados por uma “Bolsa Rabino”.

Ou seja, o Estado paga para que esses religiosos continuem estudando e empregando religião para virarem colonos nos territórios ocupados. É o “toma lá, dá cá” com os partidos religiosos. Pela via da política, Israel foi se tornando cada vez mais um Estado religioso.