A Venezuela pode ser a nossa Guerra das Malvinas.
Depois da Guerra das Malvinas, os militares se recolheram à insignificância histórica, foram julgados, presos e humilhados. Ficaram para sempre como um desastre como líderes militares na hora da verdade.
Publicado originalmente no blog do autor
Esta foto do monumento aos 649 argentinos mortos na Guerra das Malvinas, em 1982, é também a eternização da lembrança de um vexame. O memorial na Praça San Martin lembra aos argentinos que os militares foram criminosos como ditadores e foram incompetentes como comandantes de um confronto que todos sabiam que seria perdido.
Depois da Guerra das Malvinas, os militares se recolheram à insignificância histórica, foram julgados, presos e humilhados. Ficaram para sempre como um desastre como líderes militares na hora da verdade.
É improvável que um general argentino insinue qualquer pretensão de interferir em questões políticas. Eles perderam uma guerra, vergonhosamente, e foram derrotados pela democracia.
Mas no Brasil, onde ditadores e torturadores ficaram livres e soltos, espalha-se que os nossos generais pensam agora na possibilidade de uma guerra contra a Venezuela.
Bolsonaro e seus militares estão alardeando entre os jornalistas amigos, enquanto são rejeitados pela população (como mostram as pesquisas), que podem deflagrar uma aventura militar.
Lula, Haddad, jornalistas e analistas de ideias bélicas já entraram nesse debate. Muitos levam a sério a possibilidade de o Brasil atacar Maduro a serviço dos Estados Unidos.
É um projeto tão esdrúxulo que talvez mereça abordagem apenas como advertência sobre um absurdo. Uma especulação como essa só tem utilidade como alerta do que os militares são capazes de pensar e disseminar como verdade, e não necessariamente sejam capazes de fazer.
Mais do que isso parece exagero. Os generais brasileiros, sem nada que indique apoio interno a uma aventura, se arriscariam a produzir aqui um trauma semelhante ao das Malvinas?
Bolsonaro conseguiria induzir mesmo os generais a declarar guerra à Venezuela, como os ditadores argentinos fizeram ao provocar os britânicos, empurrando centenas de jovens despreparados para a morte certa?
É difícil ver fundamento numa ameaça, feita em meio a uma pandemia, quando se sabe que os militares não conseguem gerir nem mesmo a guerra contra a Covid-19.
Os brasileiros têm muito a aprender com os argentinos. Lá, seria impossível hoje que uma moça sem experiência na área da saúde assumisse – com salário de R$ 13 mil – um alto cargo, decisivo em qualquer circunstância (e ainda mais agora, na gestão da estrutura de combate à pandemia), só porque é filha de um general.
Pois Isabela Oassé de Moraes Ancora Braga Netto, filha do general Walter Souza Braga Netto, ministro chefe da Casa Civil, vai assumir aqui a Gerência de Análise Setorial e Contratualização da ANS, a Agência Nacional de Saúde Suplementar.
Isabela, formada em Relações Públicas, coordenará a relação da agência e dos planos de saúde com hospitais, laboratórios e médicos. É uma atribuição importante. Ela está preparada para o cargo?
É quase certo que não. Mas é filha do general que todos apontam como tutor de Bolsonaro. O governo emprega militares (já são 6 mil em todas as áreas) e seus parentes. Isabela não é mais um deles, é a filha do poderoso Braga Netto.
Dizem que há desconforto nos quadros técnicos das ANS com a nomeação da moça. Como há desconforto nos quadros do Banco Mundial, em Washington, com a indicação de Abraham Weintraub para uma diretoria da organização. Mas Bolsonaro pode tudo.
Os militares estão nos quartéis na Argentina. Mas no Brasil ocupam no governo o lugar que deveria ser dos civis.
Muito dos oficiais em cargos de confiança são da ativa e competem, nesses tempos de desemprego, com técnicos habilitados para funções que os fardados nem sempre dominam.
A notícia da nomeação da filha do general circula no mesmo fim de semana em que o ministro interino e provisório-permanente da Saúde, Eduardo Pazuello, diz em entrevista à revista Veja que os militares estão em guerra “contra a corrupção, contra o aparelhamento de uma estrutura complicada de muitos anos que a gente herdou em todos os órgãos”.
Os militares aparelharam o Estado para, acreditem, lutar contra o aparelhamento. É nesse conforto aparelhado que eles querem ficar.
Os oficiais ganham muito bem como empregados de Bolsonaro. Não dá para acreditar que eles possam pensar seriamente nos incômodos de uma guerra.