Penker inintimsamka mash aintsti ankan, matekrin nuya nii penkerin takakui nii akiniamunmaya tu ausamti aratukmau atinuitji mai matekrak.
José Bessa Freire
O que isso significa? Que língua é essa? Grego antigo? Em alguns meses, os brasileiros poderão ler texto semelhante, misterioso e ininteligível para os cidadãos da Pátria Grande, mas perfeitamente compreensível para aqueles que habitam algumas das patriazinhas existentes dentro de nosso país. Isso graças à decisão de Raminah Kanamari, que decidiu mandar traduzir a Constituição Brasileira de 1988 ao Nheengatu – a Língua Geral Amazônica, filiada ao tronco tupi.
Raminah tem poder para isso. Esse é o nome com o qual o povo Kanamari batizou a ministra Rosa Weber, presidenta do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), durante sua visita, no final de março, às aldeias indígenas do Alto Solimões e do Vale do Javari.
Os Kanamari ficaram conhecidos na Pátria Grande, por causa do canto do indigenista Bruno Pereira assassinado no ano passado, que viralizou dentro e fora do país e fez chorar araras, tartarugas e até as árvores da floresta. Ele plantou sementes que começam a germinar. Morreu para nos salvar – dizem os Kanamari. Ali, onde estiver, Bruno estará celebrando:
Rosa Weber quer a Constituição traduzida ao Nheengatu até setembro, quando ela se aposenta. Sua viagem à Amazônia Indígena foi feita para aproximar o Judiciário dos povos originários, com ações que facilitam o acesso à Justiça e garantem os seus direitos constitucionais. Na ocasião, foi feito o lançamento das traduções de cartazes em quatro línguas: Tikuna, Marubo, Matis e Kanamari, com informações sobre o direito à terra, prevenção de maus-tratos, violência, direitos das pessoas presas.
Dessa forma, Rosa Weber tirou o STF da “toca do tatu” – denominação dada à Corte Suprema, em 1988, por um indígena, quando Márcio Santilli, diretor do Instituto Socioambiental, lhe explicou que era lá que trabalhavam “as pessoas que conhecem as leis e decidem o que é legal e o que é justo”, mas que só saem lá de dentro se forem cutucadas.
– “Então o STF é como o tatu, fica escondido ali no buraco e só mostra o casco e as unhas se a gente tirar ele lá de dentro?”.
Rosa Weber saiu da Toca do Tatu e foi ouvir as lideranças indígenas em suas comunidades de origem. Tomou ciência do avanço do garimpo, da pesca predatória, do sucateamento da Funai presidida por um delegado de polícia no governo do Coiso, da falta de políticas públicas, da agressão à floresta e aos rios.
A principal reivindicação das aldeias visitadas diz respeito à retomada do julgamento sobre o marco temporal, uma tese furada dos usurpadores de terra indígena, para quem os povos originários só podem reivindicar territórios em que estavam a partir de 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Brasileira. “Acontece que nossa história não começa em 1988. Marco temporal não” – protestou em nota a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), esclarecendo que a ocupação desses territórios é milenar. A ministra prometeu inserir na pauta, ainda no primeiro semestre deste ano, o julgamento sobre o caso interrompido por pedido de vista.
Variedades do Guarani
Além disso – quem sabe? – antes da sua aposentadoria, a presidenta da Corte Suprema deixa determinado que se traduza a Constituição também para aquela variedade do Guarani decretada, em novembro de 2006, na XXIII Reunião do Mercosul Cultural, como língua oficial do Mercosul, ao lado do espanhol e do português. As variedades do Guarani são faladas em mais de 100 municípios brasileiros, no Paraguai, Argentina, Bolívia e até por um pequeno número de usuários no Uruguai.
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) aprovou, em 2014, o Guarani como “uma das línguas de referência para a cultura brasileira”, que agora faz parte do Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL). Reconhecer essas línguas não é só aceitar formalmente a sua existência como um ato de justiça, mas considerá-las parte da nossa história e incorporar os saberes que nelas circulam ao patrimônio nacional. Afinal, as línguas indígenas constituem bens mais valiosos do que as joias sauditas.
Foi o que fez Marco Lucchesi, atual presidente da Fundação Biblioteca Nacional (BN), que acompanhou Rosa Weber na recente viagem à Amazônia. Quando presidia a Academia Brasileira de Letras, Lucchesi organizou duas visitas dos Guarani do Rio de Janeiro à ABL, em 2019.
Na primeira, em abril, ele discursou na abertura do evento “As línguas indígenas no Brasil do séc. XXI”, com um discurso em língua guarani Mbyá. Foi a primeira vez na história da instituição que uma língua indígena foi ali falada por seu presidente. A segunda foi em junho, com a apresentação de um coral de 14 crianças da Aldeia Mata Verde Bonita de Maricá (RJ), que foi aplaudido pelo público, do qual fazia parte o acadêmico e filólogo Evanildo Bechara. Com certeza, Lucchesi vai levar agora essas línguas e sua literatura de forte tradição oral para a BN, conferindo-lhe maior visibilidade.
Patriazinha
Resta a pergunta: afinal, qual a língua do texto acima citado e qual o significado dele? Trata-se do artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, traduzido à língua Shuar-Chicham: “Todos os seres humanos nascem livres e igual em dignidade e direitos. Eles são dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns ao outros em espírito de fraternidade”.
Os Shuar, da família dos Jíbaros, são cerca de 110.000 pessoas, que vivem na floresta da Amazônia, dos quais mais de 80.000 falam a língua original. No período colonial lutaram bravamente contra os conquistadores espanhóis e resistiram aos missionários que satanizavam sua religião. Com a independência política dos países hispano-americanos, no séc. XIX, e a formação dos estados nacionais, o povo Shuar teve seu território decepado ao meio. Uma parte ficou no Equador e a outra parte, no Peru.
Hoje os Shuar continuam gostando de se enfeitar com luxuosas coroas de plumas e de se tatuar com pinturas. Possuem uma emissora de rádio que transmite programas musicais e noticiário jornalístico em língua Shuar, alternando com o castelhano, apesar da censura e ataques por parte dos aparelhos repressivos.
Há muitos anos, em 1980, tive o privilégio de entrevistar Ampan Kracas, para o Porantim, um jornal mensal então editado em Manaus e dedicado exclusivamente às questões indígenas. O entrevistado é líder Shuar do lado equatoriano. Fala, lê e escreve nas duas línguas – espanhol e shuar – com igual fluência, numa situação classificada pelos socio-linguistas como bilinguismo coordenado.
Preocupado com a questão da identidade coletiva e a relação dos povos originários com os estados nacionais, a primeira pergunta que fiz foi:
– Cuál es tu Pátria?
Se ele dissesse que era o Equador, estaria negando sua identidade étnica. Se dissesse que era a pátria Shuar, estaria desconhecendo o estado nacional. Mas o líder indígena não duvidou e respondeu em cima da bucha:
– Mi Pátria grande es el Ecuador. Mi Pátria chica es el Shuar.
Não é incompatível pertencer a mais de uma pátria. O “grande” e o “chica” não se referem ao valor de ambas, que contribuem para o patrimônio cultura e linguístico da humanidade, mas ao tamanho do território e à demografia de cada uma das duas pátrias. A “patriazinha” aqui é um diminutivo carinhoso e não depreciativo.
A ministra Rosa Weber, a nossa Raminah Kanamari, sacou que diferentemente do que apregoam os ignorantes, os espertalhões e os “patriotas”, o reconhecimento da “pátria chica” em nada afeta a segurança e a integridade da Pátria Grande. É bom para o Brasil e enriquecedor do seu patrimônio cultural que os índios preservem suas línguas, suas culturas e seus saberes. O Brasil fica, assim, mas rico e plural com centenas de “pátrias chicas” dentro do território nacional.
A decisão da magistrada ocorre no contexto da criação do Ministério dos Povos Indígenas pelo atual governo e a nomeação de Sônia Guajajara para dirigi-lo, assim como de Joênia Wapixana para presidir a FUNAI.
O reconhecimento das “pátrias pequenas” constitui um notável avanço que deve ter suas consequências práticas, inibindo a ação dos ladrões das terras indígenas, de garimpeiros, mineradoras, petroleiras e agro negociantes. O ministro Ayres Brito disse, em agosto de 2008, que começou os estudos para relatar o processo da Terra Indígena Raposa Serra do Sol com a mentalidade do general Custer, o carrasco dos índios norte-americanos do séc. XIX, mas depois de conversar com os Makuxi e os Wapixana passou a pensar como Touro Sentado, o líder indígena na batalha de Little Big.
A atual presidente do Supremo viajou à Amazonia como Rosa Weber e voltou de lá como Raminah Kanamari. Registro aqui que tive a honra de ser batizado pelos Guarani com o nome de Ywyrai´ja M´barete, numa cerimônia do Nhemongarai. Sem intimidades com a ministra e com todo respeito, Ywirai´ja M´barete pode deixar aqui para Raminah Kanamari dois beijos, um em cada bochecha, pelo seu compromisso com os povos originários.
P.S. – Agradecemos à Imagem Migalhas / Redação as fotos da Jornada de Rosa Weber