Presidente tem empregado medidas duras contra protestos de rua
Presidente tem empregado medidas duras contra protestos de rua
Paulo Ortellado
Na última quarta-feira, o presidente da Argentina, Javier Milei, enviou ao Congresso um ambicioso pacote de medidas que, pela extensão, impacto, regime de tramitação e conteúdo, só pode ser qualificado como autoritário. O Projeto de Lei tem 351 páginas e 664 artigos, modifica mais de 50 leis em vigor, e o presidente espera que seja discutido e aprovado até 25 de janeiro.
O projeto é tão abrangente que é difícil selecionar destaques. Parte dele reúne medidas que, ainda que discutíveis, são perfeitamente democráticas, como as privatizações de estatais (incluindo Aerolíneas Argentinas, Correios, Banco de la Nación e a petrolífera YPF), a regulamentação do mercado de carbono e a criação de um exame nacional do ensino médio (como nosso Enem). Em circunstâncias normais, essas medidas tramitariam em separado, permitindo apreciação cuidadosa pelo Congresso, já que o impacto de cada uma é grande. O pacote, porém, as coloca todas num único Projeto de Lei agregador, apelidado de Lei Omnibus, com apreciação extremamente acelerada, que o governo espera que se conclua em apenas um mês.
Dada a abrangência colossal, será impossível discuti-lo com propriedade — além do que já foi mencionado, ele muda a fórmula de correção das aposentadorias, os trâmites para pedidos de divórcio, concede perdão a dívidas tributárias e toma dezenas de outras providências. A ideia é inundar o Congresso com tantas medidas para apreciar em prazo tão curto que nada consiga ser discutido com propriedade.
Ainda mais preocupante é o mecanismo que confere ao Executivo amplos poderes para legislar por decreto, sob o pretexto de emergência múltipla. O expediente de delegar faculdades legislativas ao Executivo tem previsão constitucional para casos de emergência pública e deveria ser usado restritivamente e em situações excepcionais. Milei, porém, pretende usá-lo na situação atual e amplamente “em matéria econômica, financeira, fiscal, previdenciária, de segurança, defesa, tarifária, energética, sanitária, administrativa e social” pelo período de dois anos, prorrogáveis por mais dois, o que cobriria todo o seu mandato. Dessa maneira, teria amplos poderes para governar sem precisar do Congresso.
O projeto também inclui uma ampla reforma do sistema político argentino, com a extinção das prévias eleitorais (em que os eleitores indicam os candidatos dos partidos) e uma drástica reforma no sistema de eleição dos deputados, que deixaria de ser proporcional e passaria a ser majoritário.
No sistema proporcional, a representação é distribuída proporcionalmente de acordo com os votos que os partidos e coalizões obtiveram numa região, como nas eleições para deputado no Brasil, em que parlamentares de um mesmo estado podem ser de vários partidos. No sistema majoritário, a representação vai apenas para o partido mais votado, como nas eleições para senador no Brasil. Com a implementação da eleição majoritária para a Câmara argentina, Milei pretende dominá-la rapidamente, já nas próximas eleições — supondo que consiga aprovar a reforma e, em dois anos, reproduza a maioria de votos nas regiões em que venceu as eleições presidenciais.
Finalmente, o governo Milei tem empregado medidas duras contra protestos de rua. A ministra de Segurança Pública, Patricia Bullrich, adotou um protocolo para a polícia que permite prender em flagrante quem bloquear ruas ou a entrada de empresas e transfere os custos das operações de segurança às organizações que convocaram os protestos. A ministra do Capital Humano, Sandra Pettovello, anunciou que retirará os auxílios sociais (semelhantes ao nosso Bolsa Família) de quem participar de bloqueios de rua.
No projeto da Lei Omnibus, Milei modifica o Código Penal, ampliando em mais dois anos as penas de prisão para quem bloquear ruas. Os organizadores de protestos também passam a ser solidariamente responsáveis se qualquer manifestante provocar algum dano.
O projeto introduz graves limitações ao direito de protesto, exigindo que manifestações sejam comunicadas com antecedência ao Ministério da Segurança, que pode propor outra data, horário e lugar ou opor-se à realização, “com base em questões relativas à segurança das pessoas ou à segurança nacional”.
O início do governo Milei não é nada bom. Ele começou com um decreto gigantesco, de constitucionalidade duvidosa, que atropela o Legislativo. Em seguida, apresentou o projeto da Lei Omnibus, ainda mais amplo, que lhe dá poderes para governar por decreto, muda as regras das eleições para deputados e limita o direito de manifestação. Inclui tantas medidas, em tantas matérias diferentes, que a cidadania fica atordoada e não consegue separar o que é grave do que é banal ou regular.
Durante a campanha, Milei reiteradamente assustou o eleitorado com o fantasma econômico da Venezuela. Suas primeiras medidas, porém, parecem empurrar o país em direção ao regime de Maduro, só que no sentido político.