O incansável guardião da memória

Ativista em Direitos Humanos Jair Krischke denuncia na Justiça argentina o sequestro do brasileiro Edmur Péricles Camargo, uma das primeiras vítimas da Operação Condor

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HISTÓRIA,  JORNALISMO,  REPORTAGEM

O incansável guardião da memória

19 de novembro de 2021

Ativista em Direitos Humanos Jair Krischke denuncia na Justiça argentina o sequestro do brasileiro Edmur Péricles Camargo, uma das primeiras vítimas da Operação Condor

Por Mauro César Silveira

Nada é capaz de fazê-lo esmorecer. Nem a pandemia. Nem o sombrio cenário político que assola o país. Aos 83 anos, o ardoroso defensor dos Direitos Humanos Jair Krischke segue mais ativo do que nunca. O destemor de quem liderou ações de solidariedade humana que salvaram a vida de mais de duas mil pessoas perseguidas pelas ditaduras latino-americanas continua de pé. Firme, vigoroso, inabalável. Com seu espírito altivo, acompanhado do Prêmio Nobel da Paz argentino Adolfo Pérez Esquivel, ele protocolou ontem, no Juizado Federal de Lomas de Zamora, na Grande Buenos Aires, uma denúncia da prática de crime de lesa-humanidade pelo sequestro por forças militares do Brasil e da Argentina, há 50 anos, do jornalista Edmur Péricles Camargo. Uma das primeiras vítimas da Operação Condor – que envolveu, nas décadas de 1970 e 80, oito países apoiados pelos Estados Unidos para planejar em conjunto o sequestro, a tortura e o assassinato de líderes políticos e sindicais -, esse brasileiro também conhecido como Gauchão foi retirado à força de um avião da LAN Chile (hoje LATAM Airlines Chile), procedente de Santiago, que acabara de aterrissar no aeroporto internacional de Ezeiza.

Com farta documentação comprobatória, Krischke tenta obter na Argentina o que a Justiça brasileira tem se negado a fazer: responsabilizar os autores de crimes praticados durante os anos de chumbo. “Tenho uma grande expectativa de que a Justiça argentina esclareça esses delitos imprescritíveis e faça o que não fez a Justiça do Brasil, que não há processado penalmente a nenhum repressor da ditadura”, afirma o presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), com sede em Porto Alegre. “Nosso país padeceu de uma ditadura terrível, longuíssima, de 21 anos, que além de seguir impune até hoje é tomada como modelo por Bolsonaro e os militares que o rodeiam”, acusa.

“Este processo na Argentina é uma má notícia para Bolsonaro e para sua política de falsear a história, fazendo crer que a ditadura foi uma época próspera, de tranquilidade, em que o Brasil crescia economicamente e vivia no melhor dos mundos”.

Sua abnegada missão não é apenas contra a impunidade. Também tem como objetivo lutar pela construção da memória latino-americana, sempre perseguindo a verdade histórica. Não há dúvida que seus inimigos estão no poder: “Este processo na Argentina é uma má notícia para Bolsonaro e para sua política de falsear a história, fazendo crer que a ditadura foi uma época próspera, de tranquilidade, em que o Brasil crescia economicamente e vivia no melhor dos mundos”, declara Krischke. Em realidade, a situação era diametralmente oposta a essa imagem mentirosa. E isso precisa ser urgentemente corrigido.

A visibilidade de ações no exterior pode contribuir, e muito, para “um trabalho de esclarecimento que começa fora e avança para dentro do nosso país”, aposta esse calejado militante dos Direitos Humanos. Foi o que aconteceu com o processo sobre a Operação Condor que tramitou na Justiça italiana, com sua intensa colaboração, e levou à condenação de 14 torturadores, todos ex-militares chilenos e uruguaios, em julho deste ano. O coronel brasileiro Átila Rohrsetzer, de 91 anos, morreu antes do julgamento, há pouco menos de um mês. Ele descarta que o caso de Edmur Péricles Camargo seja investigado no Brasil, mesmo com as provas cabais que têm em mãos, mas deposita esperança em consequências fora do país: “Isso pode, sim, ir parar na Corte Interamericana de Direitos Humanos ou em outros fóruns internacionais, onde a imagem do Brasil e de Bolsonaro são bastante ruins. É bom lembrar que o atual presidente já tem várias representações contra ele na Comissão Interamericana de Direitos Humanos e que foi denunciado ante o Tribunal Penal Internacional”.

Edmur Péricles Camargo: vítima de brutais torturas, perdeu a visão de um olho antes de ser sequestrado na Operação Condor Foto: Arquivo Documental do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH) 

O sequestro de Edmur Péricles Camargo, filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), ocorreu dentro do voo número 317 da LAN Chile que chegou ao aeroporto de Ezeiza por volta das 16 horas do dia 16 de junho de 1971. Um grupo de militares argentinos entrou no avião e agiu rápido contra o brasileiro, cego de um olho devido a brutais torturas sofridas em prisão anterior. Retirado rapidamente do avião, tinha seu destino selado em mais uma planejada ação da Operação Condor, como relata Krischke: “O meteram em um veículo e o levaram até o Aeroparque (o outro aeroporto da região metropolitana, situado no bairro Palermo, em Buenos Aires). Nesse mesmo 16 de junho, chegou um avião da Força Aérea Brasileira que, no dia seguinte, muito cedo, antes das seis da manhã, o levou clandestinamente até a Base Aérea do Galeão, no Rio de Janeiro”. Edmur Péricles Camargo, o Gauchão, nunca mais foi visto.

“O Condor foi uma ideia que surgiu no Brasil, mas como nada foi investigado em nosso país o Condor brasileiro é um Condor menos conhecido”.

A denúncia apresentada à Justiça argentina no dia de ontem é fundamentada por documentos secretos obtidos no Brasil pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos e, na Argentina, pela Comisión Provincial por la Memoria, presidida por Adolfo Pérez Esquivel. O desenrolar do processo pode oferecer novas perspectivas para um desvelamento maior da ainda obscurecida Operação Condor. Uma delas é a desconstrução da rede de colaboração entre militares, serviços de inteligência e diplomatas participantes do aparato repressivo sul-americano surgido naqueles anos.

Farta documentação secreta comprova a denúncia formalizada na Justiça argentina Reprodução: Arquivo Documental do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH)

Muitas lacunas desse passado de terror precisam ser preenchidas, como Krischke aponta: “É possível que surjam elementos que permitam revelar o quanto ainda falta saber sobre a Operação Condor, porque depois de pesquisar o assunto por muitos anos estou convencido de que o Condor foi uma ideia que surgiu no Brasil, mas, como nada foi investigado em nosso país, o Condor brasileiro é um Condor menos conhecido. A Operação Condor surgiu formalmente em 1975 no Chile, mas temos esse caso de Edmur em 1971 e outros mais ou menos contemporâneos que nos mostram que a rede já funcionava antes”.

É notória a forte movimentação, no âmbito do poder brasileiro, para impedir que a verdade sobre esses eventos históricos venha à tona. “Existem cúmplices com aquelas atrocidades que querem manter tudo no escuro até hoje”, sublinha o líder do MJDH. Mas isso não o assombra, não o intimida, muito menos o desanima. O infatigável Krischke, como bem o define Darío Pignotti, correspondente do jornal Página/12 no Brasil, não para. Ainda bem. O guardião da memória latino-americana é mais imprescindível do que nunca.