Sonho empresarial. Pesadelo para o país

Análise de centros de estudos da USP e UFRJ aponta: projeto de nova lei para planos de saúde reduz coberturas, exclui pobres e idosos de direitos básicos e revela método legislativo opaco.

Sonho empresarial. Pesadelo para o país

Sonho empresarial. Pesadelo para o país

Análise de centros de estudos da USP e UFRJ aponta: projeto de nova lei para planos de saúde reduz coberturas, exclui pobres e idosos de direitos básicos e revela método legislativo opaco. É preciso arquivá-lo já

OUTRASAÚDE

SAÚDE E NEGÓCIO

por 

 

Mesmo no universo lunático da atual política brasileira causou espanto, no último dia 3/12, o aparecimento da primeira versão do projeto de revisão da lei 9.656/98, que alicerça o funcionamento dos planos de saúde no Brasil. O parecer do relator, deputado Hiran Gonçalves (PP-RR), se for levado a sério, abolirá tudo o que se conseguiu de progresso, em termos de Saúde, nos últimos trinta anos. Entidades como Abrasco, Cebes e Idec estão perplexas e indignadas.

O texto atropela, por exemplo, a Classificação Internacional de Doenças da OMS (Organização Mundial de Saúde), convertida em simples “referência”. Pela lei de 1998, todas as doenças dessa lista devem ser obrigatoriamente cobertas. Também se ignora o Estatuto do Idoso, pelo qual não se poderia aumento o preço dos planos desta população. Mas pela revisão proposta, ela acabaria “expulsa” dos planos de saúde, por impossibilidade de pagamento.

As alterações defendidas na revisão foram, de fato, sugeridas pelas empresas do setor, e transformam o serviço social num balcão de comércio, criando dois tipos de planos, algo impedido pela lei atual. Os baratos chegam ao ponto de desprezar as necessidades essenciais dos pacientes, prescritas pelos médicos. Só dão direito às mais triviais consultas e exames: excluem desde o atendimento de urgências até o tratamento ambulatorial de câncer. O segundo tipo são os planos que oferecem serviços adequados mas a preços exorbitantes, acessíveis a uma pequena minoria da população.

“À gravidade dos retrocessos nas mudanças pretendidas pelo relator, soma-se a inadequada tramitação na Comissão Especial da Câmara”, afirma uma avaliação à qual Outra Saúde teve acesso, sobre esse projeto, e publica na íntegra, abaixo. Interromper a tramitação, sugere a análise, é o mínimo que pode esperar do congresso, nessas circunstâncias. “Uma nova lei que retrocederia aos abusos praticados na década de 1990, antes da Lei nº 9.656/98, e que atende aos interesses particulares e demandas exclusivas das empresas de planos de saúde, não pode tramitar dessa forma”.

A avaliação é um trabalho do Grupo de Estudos sobre Planos de Saúde da Faculdade de Medicina da USP, coordenado pelo professor Mário Scheffer, e pelo Grupo de Pesquisa e Documentação sobre Empresariamento na Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenado pela professora Ligia Bahia. Veja aqui. Os autores salientam o absurdo de reunir em uma só tramitação um vasto número de sugestões – advindas de 241 projetos que se acumularam desde que a revisão original da lei de 1998 foi proposta, em 2006 [2].

E apontam para a involução flagrante do parecer apresentado ao público. “Enquanto no resto do mundo a experiência com a pandemia de covid-19 se desdobra na expansão de sistemas públicos de saúde, o Congresso Nacional no Brasil segue às voltas com projetos privatizantes e ameaças de retrocessos legais”. A legislação existente, que já é insuficiente e tendenciosa, dizem, pode ser piorada. “Com isso, perde-se o que ainda resta de intervenção pública em um mercado com lucros crescentes”.

Todo o processo legislativo foi articulado em proveito dos empresários do setor, desde que o presidente da Câmara, Arthur Lira, instalou a comissão especial para discutir a revisão da lei dos planos, em 26/5/21. Atendeu exclusivamente, afirmam os especialistas, “aos interesses das empresas e donos de planos de saúde, assíduos financiadores de campanhas eleitorais”. Criou-se um palco, escrevem, “para a exposição de empresários interessados em ampliar o mercado, com menor presença de representantes de usuários, consumidores, entidades da saúde, universidade e pesquisadores do tema”.

Nessa linha, sugerem que acompanhem o debate “o Ministério Público e instituições que defendem a democracia, visando assegurar a pluralidade de opiniões e o contraditório”. Alertam, entre outros setores da sociedade, as entidades da saúde, de defesa e proteção do consumidor, associações e movimentos de aposentados, organizações de defesa de pacientes, sindicatos que pleiteiam planos de saúde coletivos. “Estão em jogo o futuro do sistema de saúde no Brasil, nossa saúde e nossas vidas!”

Sobre proposta do relator da Comissão Especial da Câmara dos Deputados destinada a mudar a Lei dos Planos de Saúde

INTRODUÇÃO

No dia 26 de maio de 2021, o Presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, determinou a criação da Comissão Especial destinada a propor nova lei dos Planos de Saúde (Lei 9.656/98). O objetivo é elaborar parecer sobre o Projeto de Lei no 7.419, de 2006, do Senado Federal, e mais 247 projetos apensados, que dispõem sobre mudanças na legislação da saúde suplementar. A Comissão, com 34 parlamentares membros titulares e respectivos suplentes, é conduzida pela deputada Soraya Manato (PSL/ES), presidente; pelo deputado Celso Russomanno (Republicanos/SP), 1o vice-presidente; e pelo deputado Hiran Gonçalves (PP/RR), relator.

Desde 6 de julho de 2021, quando foi instalada, até 17 de novembro, a Comissão realizou seis audiências públicas e outras sete sessões deliberativas.

No dia 3 de dezembro, a primeira versão do parecer do relator, que contém as mudanças pretendidas na lei dos planos de saúde, tornou-se pública.

A proposta do relator, a ser discutida na Comissão antes de eventual votação no Plenário da Câmara Federal, absorve alterações legais defendidas pelas empresas de planos e seguros de saúde. São pleitos do mercado contidos em documentos e exposições de representantes do setor.

O objetivo desta Nota é apresentar, de forma ainda preliminar, uma vez que o conteúdo divulgado poderá sofrer alterações, as principais controvérsias e riscos apresentados no parecer do relator. Embora seja, alegadamente, um texto provisório, advertências e esclarecimentos são imprescindíveis.

Optou-se por selecionar aquelas propostas que, se aprovadas, terão maior impacto sobre a redução de direitos ou que afetarão diretamente usuários e profissionais vinculados à saúde suplementar. A extensão e a complexidade do conjunto das mudanças sugeridas requerem complementações, que serão realizadas posteriormente.

1 – Redução de coberturas, extinção do plano referência e liberação do plano ambulatorial simples

A nova lei proposta prevê a liberação da venda de planos de menor cobertura, que só dão direito a consultas e exames simples; e que excluem desde o atendimento de urgências até o tratamento ambulatorial de câncer. A intenção é autorizar a comercialização de produtos sem cobertura para problemas de saúde muito prevalentes como doenças respiratórias graves, distúrbios renais, neoplasias, acidentes, entre outros agravos.

Além disso, o texto acaba com o “plano referência” (Lei 9.656/98, Art. 10) que obriga a cobertura de todas as doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde. O artigo 10 da lei de 1998 passaria a ter a seguinte redação:

Art. 10. É instituído o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, que estabelece a cobertura assistencial obrigatória a ser garantida nos planos privados de assistência à saúde contratados a partir de 1o de janeiro de 1999 e naqueles previstos no art. 35 desta Lei, tendo como referência a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde”.

A Classificação Internacional de Doenças da OMS passaria a ser mera “referência”. Tudo aquilo que não estiver listado no Rol, mesmo prescrito pelo médico e necessário para o tratamento do paciente, pode não ser mais coberto pelos planos de saúde. Ou seja, o Rol de Procedimentos da ANS, sabidamente limitado e excludente, pode passar a ser interpretado pelas operadoras como taxativo.

Para radicalizar a acepção da venda de planos com coberturas reduzidas, propõe-se a liberação do plano “ambulatorial simples”, que garante apenas consultas, exames e procedimentos de caráter preventivo. Também chamado pelas operadoras de plano “acessível” ou “popular”, o ambulatorial simples, hoje proibido por lei, não dará cobertura a urgências e emergências, tratamentos antineoplásicos domiciliares de uso oral, quimioterapia oncológica e radioterapia ambulatorial, hemodiálise e diálise peritoneal, e demais tratamentos ambulatoriais solicitados pelo médico e considerados de maior complexidade.

Para alcançar essas coberturas o substitutivo da lei prevê outro plano mais caro, o “ambulatorial complexo”. Problemas de saúde são imprevisíveis. Planos de saúde que obedecem a um rol limitado de procedimentos ou apenas prevêem cobertura ambulatorial simples, representam risco óbvio à saúde e à vida de pacientes. Tais mudanças impõem problemas éticos e de responsabilidade dos médicos e demais profissionais, que não terão à disposição os procedimentos necessários para adequado diagnóstico e tratamento. Se aprovada, a comercialização de contratos explicitamente e intencional- mente restritivos, representará drástico aumento da judicialização.

2 – Mudança no Estatuto do Idoso e reajuste de mensalidades após 60 anos de idade

O relator defende mudança no Estatuto do Idoso, que hoje proíbe aumento dos planos de saúde após 60 anos de idade. O artigo 15 do Estatuto (Lei no 10.741/ 2003) passaria a vigorar com a seguinte redação:

“§ 3o É vedada a discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados em razão da idade, sendo permitida a aplicação parcelada do reajuste da última faixa etária após os sessenta anos” .

Na prática, as operadoras poderão aplicar reajuste após 60 anos. O idoso será, com isso, “expulso” dos planos de saúde, por impossibilidade de pagamento, como ocorria antes do Estatuto do Idoso. O objetivo da alteração é permitir o aumento do preço para as faixas etárias acima de 59 anos, o que significa valores adicionais aos reajustes anuais e aos atualmente permitidos em decorrência de mudança de idade.

Sob o pretexto de “parcelamento” do aumento que foi aplicado antes dos 60 anos, prevê-se a possibilidade de dividí-lo “em cinco parcelas, de 20% cada uma a cada cinco anos”. As parcelas, segundo a proposta, seriam ajustadas pelo IPCA. Trata-se, na verdade, de reajuste cumulativo e progressivo, de um aumento sobre o aumento, durante a fase de vida em que há redução da renda e quando podem surgir mais necessidades de atenção à saúde.

Não há menção, pelo relator, sobre como corrigir a distorção atual, a regra do valor fixado para a última faixa etária, que hoje pode ser até seis vezes superior ao valor da primeira faixa – uma variação que é exorbitante. O aumento camuflado de parcelamento soa como a venda de um peixe podre bem embrulhado. Ao prever mudança no Estatuto do idoso, a proposta não esconde sua verdadeira intenção.

3 – Alívio de multas e perdão para coberturas negadas

O relator propõe reduzir valores de multas e penalidades contra os planos de saúde, com mudanças na Lei 9.656/98 (Artigo 25) e nas Resoluções Normativas da ANS (RN no 124/2006 e RN no 396/2016). Entre as alterações, a multa por negativa de coberturas passaria a ser graduada, conforme a “complexidade” do procedimento ou atendimento negado pela operadora:

A ANS classificará os procedimentos cobertos em até 5 (cinco) classes, de acordo com a sua complexidade, hipótese em que os valores das multas aplicáveis por negativa de oferta de procedimentos variarão com base em tal critério.”

Além da multa graduada, haveria a criação de um teto do valor das multas no caso de reincidência, sempre que o plano de saúde comete nova infração do mesmo tipo anteriormente praticada.

Nas hipóteses de reincidência, poderá ser aplicada multa, nos termos do inciso II do “caput”, de até 3 (três) vezes o valor da multa aplicável à conduta infracional examinada pela ANS”.

A dosimetria por tipo de procedimento negado pretende reduzir os valores de multas para abusos que são muito frequentes como dificuldade de acessar coberturas, negativa de consultas e exames laboratoriais, remoção de pacientes etc.

O teto de multa para reincidência da infração (até no máximo três vezes o valor) é um convite para descumprimento sistemático das obrigações assistenciais. Cria-se, assim, um paradoxo legislativo, pois multas visam coibir o abuso e prevenir o desrespeito às regras. No caso de multas por atendimentos negados, a função é também pedagógica, para que outros pacientes não venham a ser prejudicados. As mudanças sugeridas são um presente para planos de saúde que têm práticas abusivas. A mensagem transmitida é que o crime compensa. –

4 – Outros temas de repercussão nas garantias de usuários e prestadores

O texto substitutivo da lei dos planos de saúde propõe ainda alterações em aspectos econômico-financeiros, critérios de reajustes de remuneração de médicos e prestadores, alienação ou leilão das carteiras, uso e aplicação de fundos e recursos das operadoras, entre outros temas de grande repercussão nas garantias aos usuários e prestadores. Não podem, portanto, ser aprovadas a toque de caixa.

Além disso, a proposta de novo marco legal, ao apensar 247 projetos de lei em tramitação, elimina proposituras que visavam modificar de forma adequada regras aplicadas aos planos de saúde. Muitos desses projetos de lei, que seriam anulados pelo parecer do relator, estão voltados à ampliação das garantias de coberturas assistenciais e ao fim de abusos nos preços e nos reajustes de mensalidades dos planos de saúde.

5 – Um projeto inadequado à saúde

Enquanto no resto do mundo a experiência com a pandemia de covid-19 se desdobra na expansão de sistemas públicos de saúde, o Congresso Nacional no Brasil segue às voltas com projetos privatizantes e ameaças de retrocessos legais. A legislação existente, que já é insuficiente e tendenciosa, pode ser piorada. Com isso, perde-se o que ainda resta de intervenção pública em um mercado com lucros crescentes, obtidos mesmo durante a crise sanitária, por meio do controle rígido do acesso a instalações hospitalares e procedimentos caros, inclusive com consequências fatais. O relatório da CPI da Covid, do Senado Federal, descreve parte dos abusos praticados por planos de saúde durante a pandemia.

Para a viabilização comercial de planos de cobertura reduzida, as operadoras, que já contam com estímulos públicos para organizar a segmentação de seus mercados, passaram a exigir alterações na lei. O documento da Câmara dos Deputados traz as intenções explícitas de favorecer o ingresso de jovens com renda baixa em “planos simples” e de expulsar idosos. Para isso, rompe com princípios da medicina moderna que se orienta por uma classificação universal de doenças e causas, retira a ciência da assistência médica e dá as costas para o envelhecimento da população.

À gravidade dos retrocessos nas mudanças pretendidas pelo relator, soma-se a inadequada tramitação na Comissão Especial da Câmara. Uma nova lei que retrocederia aos abusos praticados na década de 1990, antes da Lei no 9.656/98, e que atende aos interesses particulares e demandas exclusivas das empresas de planos de saúde, não pode tramitar dessa forma. Com poucas exceções, as seis audiências públicas realizadas até agora foram palco para a exposição de empresários interessados em ampliar o mercado, com menor presença de representantes de usuários, consumidores, entidades da saúde, universidade e pesquisadores do tema.

O teor das mudanças que se tornaram públicas atende exclusivamente aos interesses das empresas e donos de planos de saúde, assíduos financiadores de campanhas eleitorais e historicamente organizadores de grupos de pressão e lobbies que vetam o debate apropriado sobre o tema. A tentativa de mudança da lei dos planos de saúde segue padrão semelhante ao das indicações recentes para cargos de presidente e diretores da ANS.

São processos conduzidos pelo Centrão, sobretudo pelo Progressistas, agremiação do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, do líder do governo na Câmara, Ricardo Barros, e do relator da Comissão Especial, Hiran Gonçalves. Com participação direta do Ministério da Saúde e do governo federal na formulação, o substitutivo proposto pelo relator lança conjecturas sobre o acionamento de relações público-privadas que escapam dos limites ético-legais.

A pandemia de covid-19, a proximidade das eleições de 2022, as crises política, moral e de credibilidade que assolam o governo federal e parte do Congresso Nacional, advertem que o momento atual é inadequado para a votação de uma nova lei com potencial impacto negativo no SUS e na saúde de mais de 48 milhões de brasileiros que têm planos de saúde.

POR FIM, SOLICITAMOS ao relator, deputado Hiran Gonçalves, e demais parlamen- tares membros da Comissao Especial, que paralisem a tramitação da proposta apresentada, visando um novo ciclo de debates, mais amplo e mais democráti- co, sobre os impactos das eventuais mudanças sugeridas na Lei de Planos de Saúde.

SUGERIMOS o acompanhamento do Ministério Público e de instituições que defendem a democracia, visando assegurar a pluralidade de opiniões e o contraditório na condução do tema pela Comissão Especial de Planos de Saúde.

ALERTAMOS toda a sociedade, em especial as entidades da saúde, de defesa e proteção do consumidor, gestores do SUS, entidades médicas, associações e movimentos de aposentados, organizações de defesa de pacientes, sindicatos que pleiteiam planos de saúde coletivos e todos os interessados, para a necessidade de mobilização neste momento, visando impedir retrocessos. Estão em jogo o futuro do sistema de saúde no Brasil, nossa saúde e nossas vidas!