Luta anti-imperialista reaproxima a Rússia do socialismo

Luta anti-imperialista reaproxima a Rússia do socialismo

Luta anti-imperialista reaproxima a Rússia do socialismo

 Por   Publicado em 1 de novembro de 2022

Putin e Zyuganov em encontro no Kremlin (Presidência da Rússia)

“A radicalização da luta de classes está empurrando Putin para uma posição cada vez mais anti-imperialista. Este e outros fatos podem estar representando o início de uma virada na defensiva estratégica que se iniciou dentro da Rússia com a chegada ao poder, em meados da década de 1950, de forças contrarrevolucionárias que se renderam ao imperialismo e à reação”

 

SÉRGIO CRUZ (*)

 

Recentemente, ou para ser mais preciso, em 16 de agosto de 2022, o político russo Yury Voronin, que já foi vice-presidente do Conselho de Ministros e deputado do Soviete Supremo, publicou um artigo intitulado “O futuro da Rússia é o socialismo”. A tese apresentada pelo autor – que não é marxista – reflete o estágio dos debates que ocorrem atualmente dentro do país eurasiático na busca dos rumos a seguir a partir do aprofundamento da crise mundial do capitalismo e dos conflitos bélicos provocados pela escalada de agressões da OTAN/EUA.

Voronin cita, logo no início de seu texto, uma declaração de Vladimir Putin, feita na reunião do Valdai Club (Centro de discussões estratégicas com sede em Moscou), em 21 de outubro de 2021, em que ele diz que “o modelo existente de capitalismo – e isso agora é a base da estrutura social na grande maioria dos países – esgotou-se e não há saída para o emaranhado de contradições cada vez mais complicadas dentro de sua estrutura”. Na opinião do autor, a declaração de Putin “teve uma importância muito ampla”. O chefe do governo russo repetiu essa mesma avaliação em uma outra reunião, realizada no Kremlin em julho de 2022, na presença de líderes partidários, entre eles, Guennadi Ziuganov, secretário-geral do PC da Federação Russa.

Mais recentemente ainda, durante a 10ª Conferência de Moscou sobre Segurança Internacional, iniciada em 16 de agosto de 2022, Putin abriu o evento falando sobre a situação internacional. Em seu discurso ele firmou uma posição crítica à unipolaridade com forte conotação anti-imperialista. Os avanços no posicionamento político de Putin refletem certamente o processo de transição que vem ocorrendo dentro da Rússia, um país que vem deixando de ser uma reserva do imperialismo – principalmente nos tempos de Gorbachov e Yeltsin – para se tornar uma nação independente e anti-imperialista.

É o que podemos conferir nos trechos que seguem de seu discurso nesta conferência.

“A situação no mundo está mudando dinamicamente e os contornos de uma ordem mundial multipolar estão tomando forma. Um número cada vez maior de países e povos está escolhendo um caminho de desenvolvimento livre e soberano com base em sua própria identidade, tradições e valores distintos”, observou.

E prosseguiu: “Esses processos objetivos estão sendo combatidos pelas elites globalistas ocidentais, que provocam o caos, atiçando antigos e novos conflitos e perseguindo a chamada política de contenção, que na verdade equivale à subversão de quaisquer opções alternativas e soberanas de desenvolvimento”.

ORDEM NEOCOLONIAL

“Assim, eles estão fazendo todo o possível para manter a hegemonia e o poder que estão escapando de suas mãos; eles estão tentando manter países e povos nas garras do que é essencialmente uma ordem neocolonial. A sua hegemonia significa estagnação para o resto do mundo e para toda a civilização; significa obscurantismo, anulação da cultura e totalitarismo neoliberal”, acrescentou o chefe do Kremlin.

“Os Estados Unidos e seus vassalos interferem grosseiramente nos assuntos internos de Estados soberanos, encenando provocações, organizando golpes ou incitando guerras civis. Por ameaças, chantagens e pressões, eles estão tentando forçar Estados independentes a se submeterem à sua vontade e seguirem regras que lhes são estranhas. Isso está sendo feito com apenas um objetivo em vista, que é preservar sua dominação, o modelo centenário que lhes permite espoliar tudo no mundo. Mas um modelo desse tipo só pode ser mantido pela força”, completou Putin.

Vladimir Putin na reunião do Valdai Club (Centro de discussões estratégicas com sede em Moscou)

Simultaneamente, nesta mesma direção, surge o artigo do economista Valentin Katasonov, Professor, Doutor em Economia e Presidente da Sociedade Econômica Russa S.F. Sharapova, que, como Voronin, não é marxista. O autor também saiu em campo para defender que a Rússia deveria voltar a adotar o modelo socialista, ou, como ele faz questão de afirmar, “voltar a ser uma corporação econômica única estatal”, como existia, segundo ele, no período que vai dos anos 1920 até o final dos anos 1950, período que ficou conhecido como “milagre econômico soviético.”

Ainda na década de 1990, a engenheira soviética, Tatiana Khabarova, integrante do PCUS, já fazia sérias críticas ao abandono do socialismo na URSS. Em uma intervenção no seminário de juventude sobre segurança nacional na Duma de Estado da Assembleia Federal da Federação Russa, em 21 de maio de 1997, ela dá muitos detalhes da crise que se abateu sobre a União Soviética. Incluímos neste texto, os principais trechos desta palestra de Tatiana por ser uma grande contribuição teórica para o debate que estamos travando neste momento.

Ela mesma, Tatiana, se apresenta na palestra: “No período soviético, fui durante muito tempo (desde o início dos anos 70), ‘dissidente vermelha’, isto é, não uma dissidente comum naqueles tempos, da corrente de Sákharov/Soljenítsin, mas pelo contrário, da corrente anti-Sákharov/Soljenítsin. Poderão pensar que, nos anos 70, ser-se contra Sákharov e Soljenítsin era simplesmente o mesmo que defender a visão oficial da época. Não, nada disso. Com base numa experiência pessoal mais do que suficiente, posso afirmar que, enquanto Iúri Andrópov dirigiu o Comitê de Segurança do Estado da URSS, não se conduziu no país qualquer combate efetivo contra a praga do antissovietismo e do anticomunismo. O que teve lugar foi uma propagação habilmente orquestrada desta praga, que na realidade era estimulada, pelo menos, por uma parte da direção superior do partido e do Estado”.

A relevância desses artigos mais recentes – de Voronin e Katasonov – está no fato deles revelarem que na atual quadra histórica não são apenas os marxistas e revolucionários russos, como Tatiana Kabharova e Ziuganov, que chegaram à conclusão da superioridade do socialismo sobre o capitalismo. Esta convicção, como veremos, está se espalhando por diversos segmentos da sociedade russa. Inclusive, até mesmo Vladimir Putin, que se autointitula liberal e que foi nomeado como primeiro-ministro da Rússia, em agosto de 1999, por Boris Ieltsin, o preferido do imperialismo, começa a apontar, como vimos acima, o declínio do “atual modelo” capitalista.

MAIOR CATÁSTROFE DO SÉCULO XX

Há que se destacar que Vladimir Putin já havia admitido, há 17 anos, ao proferir o discurso anual do estado da nação, em abril de 2005, perante o Parlamento russo, que o colapso da URSS, ocorrido em 1991, tinha sido uma grande catástrofe. “Em primeiro lugar, vale a pena reconhecer que a queda da União Soviética foi a maior catástrofe geopolítica do século. Para o povo russo, tornou-se uma tragédia genuína. Dezenas de milhões dos nossos cidadãos e compatriotas viram-se para lá das franjas do território russo”, sustentou Vladimir Putin na ocasião.

Agora, impelido pela radicalização da luta de classes e pela agressividade crescente do imperialismo norte-americano, fruto do declínio relativo de sua hegemonia, o chefe do governo russo dá mais um passo, ao concluir pelo esgotamento histórico do atual modelo de capitalismo. O posicionamento do líder do Kremlin exerce, por certo, grande influência sobre os demais setores políticos da sociedade russa. Os artigos tratados aqui apontam que o socialismo voltou a ocupar a pauta, inclusive dentro do governo, como uma alternativa possível para o futuro da Rússia.

Estes fatos podem estar representando o início de uma virada na defensiva estratégica que se iniciou dentro da Rússia com a chegada ao poder, em meados da década de 1950, de forças contrarrevolucionárias que se renderam ao imperialismo e à reação. No início da década de 90 do século XX, quando desmoronava a União Soviética e o imperialismo decretava, através de seus principais porta-vozes, o “Fim da História”, muitos partidos de esquerda pelo mundo capitularam e perderam o rumo ideológico, entre eles, o próprio PCUS.

Dirigentes comunistas em várias partes do mundo se vergaram ideologicamente e confundiram a queda de um regime que havia se apartado e traído o socialismo, com a falência do próprio sistema socialista. Outros concluíram apressadamente que a URSS já havia se transformado num “capitalismo burocrático” ou mesmo em um capitalismo de Estado. Mas esta conclusão não se confirmou na prática.

As medidas tomadas pelos próceres do “anti-stalinismo” que tomaram o poder, certamente, impediram o avanço do socialismo e criaram um regime burocrático e apartado da classe operária, mas não tiveram fôlego nem coragem para implantar o capitalismo. O que havia sido construído no período anterior tinha muita força e respaldo na população. O capitalismo só veio a triunfar, efetivamente, depois de muito tempo de estagnação, mais precisamente 35 anos depois, no início da década de 90.

As medidas tomadas pelos próceres do “anti-stalinismo” que tomaram o poder, certamente, impediram o avanço do socialismo e criaram um regime burocrático e apartado da classe operária, mas não tiveram fôlego nem coragem para implantar o capitalismo

Mas, houve também, em todo esse turbulento processo, aqueles que resistiram e que, por isso, merecem um registro especial. Em várias partes do mundo surgiram vozes que não se deixaram enganar pelas aparências. Para eles o que desmoronou na URSS não foi o socialismo, mas exatamente a sua negação. Esses dirigentes enfrentaram a contraofensiva do imperialismo e a confusão que tomou conta do movimento revolucionário mundial e defenderam o socialismo contra os mais diversos tipos de ataques. Foram dirigentes que souberam manter firme o leme do movimento revolucionário, mesmo diante de uma forte onda contrarrevolucionária.

No Brasil, destacaram-se neste papel o dirigente político Cláudio Campos, então secretário-geral do MR8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro) e fundador do jornal Hora do Povo e João Amazonas, na época secretário-geral do PCdoB (Partido Comunista do Brasil). Na Itália, o destaque ficou por conta do historiador Domenico Losurdo e na Bélgica, Ludo Martens, presidente do Partido do Trabalho daquele país. Mao Tsé-Tung e Deng Xiaoping, na China, Fidel Castro e Che, em Cuba, e o líder Kim Il-sung, da Coreia, também defenderam o socialismo. Dentro da Rússia, se destacaram na resistência Tatiana Kabharova, Guennadi Ziuganov, Victor Amplilov e Nina Andreeva.

Blindado M-113 usado pelos EUA na invasão do Iraque agora entre os armamentos usados contra a Rússia (Arquivo)

O surgimento, no momento atual, desta nova discussão sobre a necessidade do socialismo na Rússia, e, principalmente, o fato dela ocorrer também dentro dos círculos governistas daquele país, representa, portanto, um avanço significativo no acerto de contas da população russa com o seu passado e a sua história. O caminho exitoso da construção do socialismo foi obstruído pela contrarrevolução e em seu lugar implantou-se um regime burocrático que levou a Rússia na direção da estagnação e do retrocesso.

DIFERENÇAS NA AVALIAÇÃO

Há, porém, uma diferença fundamental entre os dois artigos mais recentes sobre esse tema que deve ser destacada. Essa diferença está exatamente no diagnóstico das causas que levaram ao colapso da União Soviética. E esta é, sem dúvida, a questão fundamental a ser esclarecida por todos os estudiosos e revolucionários do mundo. Para a retomada da construção do socialismo é decisivo localizar exatamente onde se errou, e quais foram os erros cometidos. Sem isso, não há como corrigi-los para seguir em frente.

Na opinião de Yury Voronin, a causa da crise esteve nas falhas no chamado “caminho soviético” do socialismo. Segundo ele, o erro na condução do processo econômico do país foi causado pela “passagem forçada de etapas e fases da construção do socialismo.” “Se considerarmos a teoria e a prática do socialismo, por mais amargo que seja generalizar, foi o socialismo soviético, ossificado nos dogmas da teoria dos anos 30 e 40, que foi a base econômica que levou ao colapso do modo de produção socialista, o colapso da URSS”, afirma o autor.

Valentin Katasonov e Tatiana Khabarova, por outro lado, advogam exatamente o contrário do que aponta Voronin. Katasonov afirma que a origem da crise da União Soviética não estava no socialismo soviético, mas exatamente no abandono da construção do socialismo pelos dirigentes que tomaram o poder após a morte de Stalin. A saída para a crise da Rússia, portanto, conclui Katasonov, é a volta à economia socialista. E ele faz questão de detalhar em seu artigo que a economia socialista, a que se refere, é a economia que foi implantada no país no período que vai de 1930 a meados de 1950.

Na opinião do autor, esse sistema, que foi responsável por transformar a União Soviética numa grande potência social, econômica e militar, começou a ser abandonado a partir da chegada ao poder de Nikita Khrushchov em 1953.

Diz ele:

“O período de trinta anos de nossa história (do final dos anos 1920 ao final dos anos 1950) pode ser chamado de milagre econômico soviético. Isso também deve incluir a década de 1940 – o período da guerra e a recuperação econômica da URSS. Nosso país conseguiu derrotar Hitler e toda a coalizão nazista. Não foi apenas uma vitória militar, mas também econômica”.

“Durante o período de reconstrução do país, após a guerra, conseguimos voltar ao nível pré-guerra mais rápido do que os países europeus e criar um escudo nuclear, que era vital para o país nas condições da Guerra Fria declarada pelo Ocidente. E tudo graças ao fato de que a economia soviética foi organizada como uma única ‘corporação da URSS’, destacou o autor.

“Nas três décadas seguintes, os laços que mantinham a ‘corporação URSS’ unida começaram a se afrouxar como resultado de uma série de reformas não tão bem pensadas”, argumenta.

Eis, portanto, a questão central a ser esclarecida pelos revolucionários russos e também pelos defensores do socialismo em todo o mundo. Sim, porque este episódio, ocorrido na URSS, teve um caráter mais amplo e abalou a confiança no socialismo em todo o planeta.

Saber se foi o socialismo soviético que falhou ou se quem falhou foi o modelo “frankenstein”, implantado na URSS após a tomada do poder pela contrarrevolução em 1956, bem como o seu aprofundamento nas chamadas reformas de 1965, é, portanto, uma questão chave.

O que está na ordem do dia para ser desvendado é saber se a URSS caiu porque o modelo foi “ossificado nos dogmas da teoria dos anos 30 e 40”, como afirma Voronin, ou se houve, na verdade, um desvio do caminho da construção socialista, como advogam Valentin Katasonov e Tatiana Khabarova. Saber se a crise foi provocada pelas insuficiências dos que quiseram “apressar” a implantação do socialismo ou se ela foi provocada pela quebra ideológica e as mudanças pró-capitalistas impostas pelas forças que tomaram o poder e atacaram o socialismo.

Debater esta questão é decisivo e é o objetivo central deste nosso esforço.

Voltamos, então, aos argumentos de Yury Voronin, que defende a primeira tese, a de que os problemas surgiram com a política de Stalin.

Diz ele:

“Não há dúvida de que o socialismo soviético, no quadro do sistema mundial, formou uma nova civilização. Elevou significativamente a indústria, a cultura e a qualidade de vida na União Soviética, realizou a modernização, a industrialização em massa e a revolução cultural, garantindo assim a criação de forças produtivas suficientemente poderosas que permitiram ao povo soviético vencer durante a Grande Guerra Patriótica, alcançar um sucesso significativo em energia nuclear e pesquisa espacial.

“O socialismo soviético venceu não apenas na Rússia, mas também teve um impacto positivo na modernização do capitalismo. Assim, a Grande Depressão nos Estados Unidos levou Roosevelt a emprestar a experiência soviética na gestão da economia, os métodos soviéticos de concentração da gestão – a formação de uma economia de mobilização. Foi o socialismo soviético que forçou o capitalismo a se curvar à justiça social, forçou-o a compartilhar o capital com seus povos.

ÓDIO DO IMPERIALISMO

O deputado reconhece todos esses avanços do socialismo, mas pondera que essa necessidade vital do campo capitalista de compartilhar algumas ideias do socialismo levou ao “ódio dos apologistas do capitalismo pelo socialismo e eles não pouparam dinheiro para o colapso da URSS e do campo socialista”.

Neste ponto, o autor tem toda razão. O ódio ao regime socialista por parte do imperialismo só fez se intensificar diante do sucesso extraordinário da economia soviética, principalmente após a crise de 1929. Foi nesta época que os monopólios e o capital financeiro gestaram, financiaram e armaram a besta-fera nazista como ponta de lança para destruir o socialismo.

O fracasso desta empreitada e o prestígio adquirido pelo país do socialismo, por ter derrotado a máquina de guerra mais poderosa do mundo até então, fez surgir a guerra fria. Esta, já hegemonizada pelos monopólios norte-americanos, surge com ogivas nucleares e disposta a chantagear o mundo. Esta condição, sem dúvida, contribuiu para aprofundar a defensiva e o esmagamento dos sucessores de Stalin.

Mas, voltemos aos argumentos de Yury Voronin:

“Ao mesmo tempo, a ossificação da ideologia não resistiu à concorrência direta com o sistema do capitalismo de mercado. Não há dúvida de que o soviético estava orgulhoso das grandes conquistas do socialismo. No entanto, se um cidadão comum da URSS de repente fosse para o exterior, como as pessoas dizem, seus olhos brilhavam pela abundância de produtos e bens para a população, quando visitavam complexos comerciais”, disse ele.

Ato terrorista estimulado pelo imperialismo na ponte que liga a Crimeia à Rússia

O imperialismo, de fato, não poupou esforços em seu intuito de destruir o socialismo. Mas somente essa decisão não poderia explicar a crise que atingiu a URSS, até porque, ela havia vencido o nazismo e já atingira o equilíbrio nuclear com os novos agressores. A mudança que “minou” a economia soviética também não foi uma simples insuficiência na “concorrência direta com o sistema do capitalismo de mercado”, como diz o autor, mas sim uma capitulação ideológica dos dirigentes que tomaram o poder no país após a morte de Stalin. Até porque, toda essa “abundância” de produtos, apontada pelo autor, foi se restringindo a um número cada vez menor de pessoas, fazendo crescer a miséria e a fome no mundo.

Uma coisa foi o retorno temporário à NEP (Nova Política Econômica), sob a direção dos bolcheviques. Ou as reformas que ocorreram na economia da China na década de 1970, conduzidas firmemente pelo Partido Comunista, e vistas por eles como uma etapa necessária de convívio com o capital no processo de construção do socialismo.

Outra coisa bem diferente é a quebra ideológica da direção do partido, como ocorreu na URSS com Khrushchov e seus seguidores. O que houve ali foi uma rendição à ideologia do inimigo e o início de ataques virulentos contra o socialismo e a história da URSS.

“Na teoria científica”, prossegue o parlamentar, “o que é comumente chamado de socialismo é o que Marx, em sua Crítica do Programa de Gotha, chamou de “a primeira ou mais baixa fase da sociedade comunista”. “Marx enfatizou que o socialismo como primeira fase da formação socioeconômica comunista não pode ser considerado como uma etapa de curto prazo desprovida de seu próprio conteúdo socioeconômico. Funciona e desenvolve-se ao longo de uma longa era histórica”, argumentou.

“Baseando-se na metodologia marxista, não é difícil provar que o modo de produção socialista na URSS, baseado na ideologia do socialismo soviético, infelizmente, em muitos aspectos, teve grandes falhas em relação à compreensão marxista do socialismo. O erro teórico fundamental do socialismo soviético foi que a Constituição da URSS, adotada pelo 8º Congresso Extraordinário dos Sovietes em 5 de dezembro de 1936, proclamava que o socialismo na URSS havia vencido e estava basicamente construído”, observou Voronin.

“O 18º Congresso do PCUS (março de 1939) também registrou que o modo de produção socialista se tornou dominante, que o socialismo na URSS foi basicamente construído e o país entrou em uma nova etapa de desenvolvimento – a conclusão da construção de uma sociedade socialista”, acrescentou.

“A tese da vitória do socialismo na URSS contida na Constituição da URSS de 1936 e no 18º Congresso do PCUS foi superestimada pelas etapas do socialismo e decorreu dos critérios simplificados para completar a construção do socialismo na URSS. Apenas um dos critérios foi levado em conta – o grau de abrangência da propriedade estatal (e mesmo não pública – segundo Marx) dos meios de produção, e este tinha como objetivo fixar o processo de nacionalização do ponto de vista legal”, defendeu o parlamentar.

“Enquanto isso”, observou, “a nacionalização revolucionária da propriedade levou à supressão da atividade econômica de um número significativo de cidadãos. Sabia-se que já naquela década de 1930, como mostram as estatísticas, nos países desenvolvidos do mundo de 40% a 60% do produto nacional bruto (PIB) era produzido por pequenas e médias empresas de forma privada, o que na URSS foi simplesmente esmagado e eliminado”.

CAPITALISMO DECLINANTE

“De acordo com Marx”, prossegue Voronin, “o socialismo não é um sistema especial, mas uma simbiose de dois sistemas sociais: o capitalismo declinante e o comunismo emergente, onde o primeiro se torna gradualmente menos e o segundo – cada vez mais. O socialismo significa a existência de relações mercadoria-dinheiro e uma economia multiestruturada em que o Estado regula as relações de mercado a partir de uma perspectiva social. Em outras palavras, o socialismo permite a existência de propriedade privada média, pequena e até grande, mas o papel principal na economia é desempenhado pelos monopólios estatais, especialmente os estratégicos”.

Nazistas ucranianos apoiados pelos EUA cultuam o colaboracionista dos hitleristas durante a 2ª Guerra, Stepan Bandera (Sputnik)

“A ‘passagem forçada’ e facilitada pelas etapas e fases da construção do socialismo, como foi o caso da União Soviética, tornou-se uma característica defendida por muitos líderes políticos da URSS, líderes do campo socialista”, lembrou o autor.

Esta é, sem dúvida, uma discussão das mais importantes, levantada pelo autor. Se a URSS tinha condições de seguir o curso natural de seu desenvolvimento ante a ameaça de uma invasão pela Alemanha nazista ou não. Ou seja, se ela poderia conviver mais tempo com empresas privadas e iniciar a sua industrialização pelo setor da indústria ligeira – mais lucrativa -, como os países capitalistas puderam fazer, mesmo que isso demandasse um tempo maior para a consolidação da indústria soviética, ou teria, diante desse quadro ameaçador, que acelerar o seu processo e inverter as prioridades.

É certo que a iminente ameaça externa obrigou o povo soviético a um esforço hercúleo para construir a sua defesa e vencer o inimigo. O povo soviético tinha consciência da ameaça, mas é importante destacar que o que o mobilizava era também a defesa das conquistas de seu sistema econômico, social e político, ou seja, a perspectiva da construção do socialismo. Este foi o ideal que, depois da morte de Stalin, foi abandonado, não por falta de promessas dos dirigentes, mas porque as palavras deixaram de ter correspondência nos atos e na realidade da vida.

Stalin já havia previsto em 1931 que o país seria invadido. E, numa entrevista em 29 de janeiro de 1941, ele assinalou que foi precisamente o caráter planificado da economia soviética e a prioridade para a indústria pesada que permitiram assegurar a independência econômica do país, e foi o que viabilizou a vitória sobre os nazistas:

Se não tivéssemos no nosso país (…) um centro de planificação que assegura a autonomia da economia nacional, a indústria ter-se-ia desenvolvido por uma via completamente diferente. Tudo teria começado pela indústria ligeira, e não pela indústria pesada. Nós demos uma volta às leis da economia capitalista, viramo-las de cabeça para baixo. Começamos pela indústria pesada, e não ligeira, e vencemos. Sem uma economia planificada isso seria impossível. Afinal, como é que a economia capitalista se desenvolveu? Em todos os países as coisas começaram com a indústria ligeira. Por quê? Porque a indústria ligeira proporcionava mais lucros. Que interesse tem para capitalistas isolados desenvolver a metalurgia, a siderurgia, a indústria petrolífera, etc.? O que lhes importa é o lucro, e era, sobretudo, a indústria ligeira que proporcionava lucros. Nós, pelo contrário, começamos pela indústria pesada, e aqui reside a razão pela qual não somos um apêndice das economias capitalistas. (…) A rentabilidade é uma questão que no nosso país está subordinada à construção, em primeiro lugar, da indústria pesada, a qual exige grandes investimentos por parte do Estado e, naturalmente, não é rentável no período inicial. Se, por exemplo, se entregasse a construção da indústria ao capital – a indústria das farinhas é a que dá maiores lucros, e a seguir ao que parece é a produção de brinquedos – então, o capital começaria por aqui a construir a indústria”.

Mesmo diante de todas as críticas de Voronin à economia soviética, em meados dos anos 30, segundo Katasonov, a URSS tornou-se o primeiro país da Europa e o segundo no mundo em termos de produção industrial, apenas atrás dos EUA, mas muito à frente da Alemanha, da Grã-Bretanha e da França. Em três quinquênios incompletos foram construídas 364 novas cidades, erguidas e colocadas em funcionamento nove mil grandes empresas, o que é um número colossal: cerca de duas grandes empresas por dia!

O mesmo Katasonov apresenta mais argumentos:

“Naturalmente que a “economia de mobilização” exigiu sacrifícios e a utilização máxima de todos os recursos. No entanto, na véspera da guerra, o nível de vida do povo era substancialmente mais elevado que no arranque do primeiro quinquênio. Todos nos recordamos da conhecida frase de Stalin de que a URSS estava atrasada 50 a 100 anos em relação aos países industrializados e que a história nos concedia uma década para recuperarmos este atraso, em caso contrário seríamos esmagados. Estas palavras, pronunciadas em fevereiro de 1931, são surpreendentes pela sua precisão histórica: a defasagem foi de apenas quatro meses”.

“O segundo período”, prossegue Katasonov, “é o do desenvolvimento econômico na base do modelo que se formou após a II Guerra, em cuja definição Stalin participou ativamente. Por inércia, este modelo econômico continuou a funcionar ao longo de uma série de anos depois da sua morte (até ao momento em que se iniciaram as ‘experiências’ de diversos tipos de Khrushchov). No período de 1951-1960 o Produto Interno Bruto da URSS cresceu duas vezes e meia, a produção industrial mais de três vezes e a produção agrícola cerca de 60 por cento. Se em 1950 o nível de produção industrial da URSS representava 25 por cento em relação aos EUA, em 1960 constituía já 50 por cento. Os EUA davam sinais de nervosismo, dado que estavam a perder definitivamente a competição econômica com a União Soviética”.

CRESCIMENTO DO NÍVEL DE VIDA

Segundo Katasonov, “o nível de vida dos soviéticos crescia ininterruptamente, apesar de o país destinar para o investimento uma parte do PIB muito mais importante do que os EUA e outros países ocidentais”.

Ele explica que “tentar avaliar a economia de Stalin na base dos critérios da ‘economia de mercado’ e nos princípios do liberalismo econômico é um exercício inútil. Estava em curso uma guerra contra a URSS, que por vezes se tornou visível e tangível (a Guerra da Finlândia, Khalkhin Gol, a II Grande Guerra), outras vezes tomou formas implícitas e camufladas. Vencer uma tal guerra observando as regras da ‘economia de mercado’ seria o mesmo que um boxista vencer um combate no ringue com os olhos tapados”.

Voltemos novamente ao texto de Yury Voronin, agora na parte em que ele critica o “voluntarismo” de Khrushchov e o desconhecimento teórico de Andropov:

“Deixe-me lembrá-lo da tese de Nikita Khrushchov de que ‘a atual geração do povo soviético viverá sob o comunismo’, que seria construído em 1980. Ou ‘fornecer à população do país um apartamento isolado separado até 2000’. Foram muitos os absurdos, decisões infundadas, erros subjetivistas e voluntaristas que caracterizam o avanço acelerado na construção do ‘socialismo desenvolvido’. Não é de surpreender que no início dos anos 80 com a ideologia do socialismo na URSS houvesse grandes problemas – a teoria do marxismo-leninismo caiu em profundo declínio”, apontou Voronin.

Nazistas insuflados pelos EUA incendeiam a Casa dos Sindicatos em Odessa em 2 de maio de 2014 (Yevgeny Volodkin/Reuters)

“O artigo do Secretário Geral do Comitê Central do PCUS Yuri Andropov na revista “Kommunist” (março de 1983) ‘A doutrina de Karl Marx e algumas questões da construção socialista’ listou muitos problemas do socialismo soviético que não se encaixam entre teoria e prática”, prosseguiu o parlamentar.

“Em seis meses”, acrescentou Voronin, “Yuri Andropov no Plenário do Comitê Central do PCUS (15 de junho de 1983), dedicado a questões ideológicas, resume a situação política, econômica e ideológica do país: ‘Ainda não estudamos adequadamente a sociedade em que vivemos e trabalhamos, não revelamos totalmente suas leis inerentes, especialmente as econômicas. Portanto, às vezes somos forçados a agir, por assim dizer, empiricamente, de uma forma muito irracional de tentativa e erro’”.

Voronin prossegue em sua argumentação: “Foi somente no 28º Congresso do PCUS (2 a 13 de julho de 1990), ‘Rumo ao socialismo humano e democrático’, que ficou registrado que ‘O Partido considera necessário criar condições para a formação e desenvolvimento de formas diversas e iguais de propriedade, sua integração e livre concorrência’. Ressaltou-se também que a propriedade privada também deveria ser incluída no sistema de formas de propriedade. Foi justamente essa tese teórica e prática que, na opinião do Congresso, consolidou a renovação política, econômica e ideológica do socialismo, e foi teoricamente legítima, embora muito, muito tardia”.

CONHECENDO A CHINA

O autor conta ainda que em janeiro de 1993, o Soviete Supremo da Federação Russa o indicou como chefe da delegação dos Deputados Populares da Federação Russa à China. “A delegação tomou conhecimento da reforma socioeconômica na China, o desenvolvimento de zonas econômicas livres, em particular, Shanghai e Pudong, o desenvolvimento da agricultura e piscicultura de tanque”.

Para o político russo, “a essência da reforma na China foi que a partir do radicalismo comunista que prevalecia na época de Mao, a China começou a se mover para uma política mais moderada de ‘socialismo com características chinesas’. As relações de mercado foram ativamente introduzidas na economia planejada e a reforma econômica começou a ser realizada de forma suave e evolutiva”.

“Ao mesmo tempo”, prossegue ele, “encontrei-me com o primeiro-ministro do Conselho de Estado, Li Peng. Ele havia se formado no Instituto de Engenharia Elétrica de Moscou, falava bem russo e conhecia os prós e os contras do socialismo na URSS. Li Peng falou sobre a transformação na China na última década, os resultados alcançados e a estratégia de desenvolvimento”.

“Mesmo naquela época”, continua Voronin, “a China tinha uma estratégia de desenvolvimento socioeconômico até 2050, com base na qual foram formados planos quinquenais. Li Peng resumiu que a construção do socialismo na China é realizada com base na teoria científica marxista, levando em consideração a correção dos erros da URSS e o uso da experiência positiva dos países desenvolvidos”.

Antes de entrarmos nos argumentos apresentados por Valentin Katasonov para contestar a visão de Voronin sobre as causas da crise da União Soviética, achamos importante introduzir algumas observações a respeito das afirmações do político russo.

A primeira refere-se a não percepção por parte do autor, de que a administração de Nikita Khrushchov e as posições expressas por Yuri Andropov, apesar das aparências, já não apresentavam identidade com o socialismo, ou mesmo que ela significasse qualquer espécie de continuação do regime anterior.

Tanto as posições tresloucadas de Khrushchov sobre a premência do comunismo, citadas por Voronin no artigo, quanto a “ignorância”, admitida pelo próprio Andropov sobre a situação da economia e dos problemas vividos pela União Soviética, também citada pelo parlamentar, já eram reflexos da profunda ruptura desses atores políticos com a ciência marxista.

O fato é que não houve uma “sucessão” normal na direção do partido e do governo. Houve uma ruptura. E esta é uma questão fulcral a ser esclarecida neste debate. Uma reunião do pleno do Comitê Central do partido, ocorrida após a morte de Stalin, foi invadida por tropas do exército, sob o comando de Zhukov, então aliado de Khrushchov – e depois descartado por ele -, dirigentes foram presos e a posição majoritária, contra a política de Khrushchov e seu grupo, não conseguiu se expressar. Estabeleceu-se a partir deste episódio um novo regime, dominado por forças antissocialistas, encabeçado por Nikita Khrushchov.

Há quem defenda que o que aconteceu na URSS é que os dirigentes soviéticos – dito desta forma, sem diferenciá-los – tropeçaram nas próprias pernas no momento em que o país entrou no que eles chamam de “fase intensiva” de seu desenvolvimento econômico. Que a URSS teria perdido a corrida tecnológica com as potências imperialistas por não ter conseguido enfrentar adequadamente este desafio. Os defensores desta tese só não entram no problema fundamental. Ou seja, não entram no que teria causado esse “retardo” tecnológico na URSS. A causa, a nosso ver, está exatamente na ruptura com o marxismo por parte de Khrushchov e seus seguidores.

As mudanças econômicas iniciadas já em 1954, como, por exemplo, o início das vendas aos kolkhozes dos tratores e máquinas agrícolas, a desestruturação e fragmentação da gestão econômica, antes centralizada e planejada, e a interrupção deliberada das reduções sistemáticas de preços – principal forma de distribuição do excedente econômico, ou seja, da renda social, para os novos donos dos meios de produção – foram as primeiras travas colocadas pela nova direção no caminho do socialismo. Essas medidas só não causaram problemas maiores à economia soviética num primeiro momento porque a dinâmica da economia socialista implantada pelo PCUS no país era ainda muito forte.

XX CONGRESSO DO PCUS

Apesar de já terem sido iniciadas as mudanças nefastas na economia, havia ainda, do ponto de vista político, muita confusão dentro do partido e na sociedade. Isso ocorreu pelo fato de Khrushchov ter sido integrante da direção do PCUS junto com Stalin e de ainda não ter colocado, até então, todas as suas “mangas ideológicas” de fora. Entretanto, a leitura por ele do “relatório secreto”, no XX Congresso do partido, realizado em 1956, à revelia dos principais dirigentes do partido, foi a gota que faltava.

Ela significou uma ruptura ideológica mais profunda com a construção do socialismo na URSS e um ataque completamente hostil, traiçoeiro e mentiroso contra o principal dirigente do partido e do país. Não foi à toa que o mundo capitalista recebeu com um grande júbilo e euforia o relatório “secreto” de Khrushchov. A agressão virulenta a Stalin, continuador de Marx, Engels e Lenin, e o líder que consolidou o primeiro país socialista no mundo e derrotou Hitler, representou uma grave traição à revolução.

Logo em seguida ao “relatório”, os principais dirigentes do partido foram afastados sob acusação de pertencerem a um suposto “grupo anti-partido”. Eram eles Georgi Malenkov, Vyacheslav Molotov e Lazar Kaganovich. Estas foram mudanças qualitativas no governo e que alteraram o seu caráter. Portanto, o que houve naquele período não foi uma sucessão normal de um governo para outro dentro de um mesmo regime.

Não houve, como se afirma, uma suposta insuficiência dos dirigentes, no geral, na condução do socialismo. A verdade é que houve uma ruptura política no país. Esta ruptura permitiu a chegada ao poder na URSS de forças que, apesar de ostentarem um discurso de esquerda e de manterem algumas medidas oriundas da direção anterior, tinham como meta final a destruição do socialismo.

Não houve, como se afirma, uma suposta insuficiência dos dirigentes, no geral, na condução do socialismo. A verdade é que houve uma ruptura política no país. Esta ruptura permitiu a chegada ao poder na URSS de forças que, apesar de ostentarem um discurso de esquerda e de manterem algumas medidas oriundas da direção anterior, tinham como meta final a destruição do socialismo

A segunda observação sobre as teses de Yury Voronin é a de que o deputado russo percebe, assim como nós, a importância e os acertos dos dirigentes chineses na construção do socialismo no gigante asiático. É verdade que a China soube aproveitar bem a situação internacional favorável e conseguiu grandes avanços na construção do socialismo, chegando, atualmente, a colocar em xeque a hegemonia econômica norte-americana no mundo e inicia o seu período de construção de um país socialista moderno em todos os aspectos.

Esta é sem dúvida uma compreensão muito importante, para a qual contribuiu, de forma significativa, é importante destacar, o estudioso e dirigente brasileiro, Elias Jabbour, do PCdoB (Partido Comunista do Brasil). Afinal, diversos partidos de esquerda pelo mundo ainda hoje não compreenderam o significado dos sucessos obtidos pelo PC da China na construção do socialismo e o quanto isso representa na luta estratégica da Humanidade contra o imperialismo.

No entanto, o autor do artigo abstrai de analisar as condições concretas que permitiram esses grandes avanços da China. Ele erra ao fazer uma comparação mecânica e simplista com a situação vivida pela União Soviética nas décadas de 1940 e 1950. Só para se ter uma ideia, este foi um período permeado por uma guerra mundial e uma invasão do país pela maior potência militar da época.

A ascensão econômica dos EUA, que já vinha sendo gestada desde antes da 1ª Guerra Mundial, e que se consolidou na década de 1940, diante de uma União Soviética que, apesar de suas conquistas, teve que vencer, quase sozinha, a parte mais significativa das tropas de Hitler, permitiu que o imperialismo e seus aliados pudessem, nestas circunstâncias, impor um cerco, principalmente econômico, mas também político, cultural, científico e social à União Soviética e ao campo socialista, formado após o conflito.

Foi a guerra fria, que começou com os “clarões mais fortes do que um milhão de sóis” – os bombardeios atômicos de Hiroshima e Nagasaki – que, nas palavras do historiador russo, Nikolai Iákovlev, advertiu com dureza toda a Humanidade “daquilo que o imperialismo, armado com a última palavra da ciência, era capaz de fazer”. “Já no final da guerra foi preciso, por parte do governo soviético, encontrar e destinar enormes recursos para a criação de novos e dispendiosos sistemas de armamento, em primeiro lugar, atômico. E cada rublo estava contado! Isto tinha de afetar a vida de todos os soviéticos e inevitavelmente refletiu-se em tudo e em todos”, diz Iákovlev.

A satisfação de muitas necessidades prementes do povo soviético foi adiada. Não havia outra solução. Sobre o povo soviético, que tinha salvado a humanidade e a si próprio, pairava de novo uma ameaça mortal.

No início da década de 1970, ou seja, 21 anos após a sua revolução de libertação nacional, quando a China já dava passos importantes na construção do socialismo com características próprias, o imperialismo entrava numa crise estrutural de grandes proporções, da qual até hoje ainda não se desvencilhou completamente. Não houve, por conta disso, a possibilidade da imposição do mesmo cerco que havia sido imposto ao campo socialista nas décadas de 40 e 50.

A crise estrutural em que foram mergulhados obrigou os EUA a optarem por uma “trégua” com a China para “priorizar” sua luta contra a União Soviética. Isso permitiu que a China, mesmo enfrentando as contradições impostas pela hegemonia norte-americana nas finanças mundiais, desse passos gigantescos, ocupasse um lugar de destaque na economia mundial e desenvolvesse aceleradamente a sua economia.

A China soube se aproveitar desta situação favorável e se desenvolveu por dentro do sistema econômico mundial – de forma inédita – a ponto de hoje ameaçar a hegemonia americana. Tudo isso é verdade e deve ser valorizado em todas as análises contemporâneas sobre as mudanças do cenário internacional.

Serviços secretos ocidentais participaram do ato terrorista que destruiu o gasoduto Rússia/Alemanha

O fato da China ter se aproveitado dessas condições e se transformado na oficina do mundo, de ter conquistado o mercado mundial, ter atraído o capital estrangeiro da forma que lhe interessava, e também, pelo fato de não estar no olho do furacão da guerra fria, propiciou a ela as condições para uma convivência mais prolongada – conflituosa é verdade – mas mais prolongada, do planejamento econômico estatal com a anarquia do mercado e a gestão privada das empresas.

O Estado chinês, nestas condições, comandado pelo PCCh, sem ter se quebrado ideologicamente, conseguiu avançar na planificação e no desenvolvimento das forças produtivas do país. Conseguiu dar passos significativos na direção do socialismo e garantir uma grande melhoria das condições de vida dos chineses. Cerca de 800 milhões de pessoas foram retiradas da pobreza extrema em apenas duas décadas, um feito de proporções históricas.

O sucesso do “modelo chinês” de socialismo logo deixou claro para o mundo a sua superioridade em relação ao decadente, parasitário e violento capitalismo. O fato do imperialismo não ter tido força para impor um cerco à China, como logrou fazer contra a União Soviética e o campo socialista, permitiu que os dirigentes chineses conseguissem construir exitosamente uma nova formação econômica e social altamente desenvolvida e de orientação socialista.

O sucesso do “modelo chinês” de socialismo logo deixou claro para o mundo a sua superioridade em relação ao decadente, parasitário e violento capitalismo. O fato do imperialismo não ter tido força para impor um cerco à China, como logrou fazer contra a União Soviética e o campo socialista, permitiu que os dirigentes chineses conseguissem construir exitosamente uma nova formação econômica e social altamente desenvolvida e de orientação socialista.

O tempo histórico conquistado pelos chineses para construir o socialismo no gigante asiático foi até agora muito bem aproveitado pelo PCCh. É fato que os centros do imperialismo já perceberam os avanços que foram feitos e estão se preparando para uma contraofensiva, na tentativa de deter o avanço da China e a perda de sua hegemonia econômica.

Isto certamente mudará, como já está mudando, a relação, relativamente pacífica, entre os dois países. Porém, resta saber se os avanços tão grandes obtidos pela China tornaram irreversíveis as atuais tendências de alteração de hegemonia mundial. Isto só o tempo poderá dizer. Mas, o fato é que a China hoje está na vanguarda econômica, tecnológica e política do mundo e cada vez mais aliada estrategicamente com uma Rússia independente, soberana e anti-imperialista.

Agora que já introduzimos o tema e pontuamos as principais polêmicas, vamos aos argumentos de Valentin Katasonov na defesa da volta do socialismo na Rússia com ênfase no modelo econômico de Stalin.

Segue o texto de Katasonov:

“Lembro-me que durante os anos da perestroika, seus ‘chefes’ clamavam incansavelmente pela liquidação do ‘sistema de comando administrativo’ e sua substituição por um sistema de ‘mercado’. Sob o sistema de comando administrativo entendia-se o sistema de gestão da economia da URSS. E sob o mercado – o modelo de economia que existia no Ocidente. Parece que o esquecido economista Gavriil Popov, um dos mais zelosos ‘marqueteiros’ da segunda metade da década de 1980, foi o primeiro a colocar essas ideias em circulação. Lembro-me que naquela época os ‘chefes’ da perestroika gostavam muito de citar as maiores corporações ocidentais, na maioria das vezes as transnacionais, como exemplos de uma economia verdadeiramente eficaz, opondo-as às empresas soviéticas.

“Olhando mais de perto, descobriu-se que as corporações de escala mundial eram monopolistas em suas indústrias e em seus mercados. E onde há monopólio, a palavra mercado deve ser colocada entre aspas. Essas corporações atingiram e continuam a atingir seus recordes (em termos de vendas, lucros, capitalização, etc.) devido ao fato de que destroem toda a concorrência e eliminam as condições de livre preço. Isso sem falar no fato de se fundirem com os Estados no território onde operam e se aterem aos orçamentos estatais.

“Grandes corporações (especialmente TNCs – transnacionais) representam uma arquitetura complexa – uma espécie de pirâmide, no topo da qual está uma organização holding e, abaixo dela, muitas subsidiárias de filiais e departamentos. Uma grande corporação pode incluir dezenas e centenas de divisões envolvidas na produção, desenvolvimento científico e técnico, comércio, operações financeiras, etc. Se for uma transnacional, então elas estão espalhadas por muitos países. Entre os elos da corporação existem fios invisíveis de conexões – informação, produção e cooperação, financeiro, comercial.

“O objetivo da transnacional (assim como de qualquer empresa capitalista) é o lucro. Para maximizar os lucros, a gestão da corporação otimiza as atividades de todos os elos da empresa. Digamos que uma corporação opere em uma dúzia de países ao redor do mundo. O resultado financeiro final (lucro) será acumulado na subdivisão da transnacional, onde as alíquotas são mínimas (ou nenhum imposto é cobrado). Uma das formas de movimentar os lucros de todos os elos das transnacionais até o ponto final de acumulação de lucros é realizada de diferentes maneiras. Por exemplo, manipulando os preços de transferência (preços pelos quais produtos semiacabados, informações, matérias-primas, serviços de consultoria são transferidos de uma divisão de uma transnacional para outra). E esses preços de transferência têm pouco em comum com os preços do mercado mundial.

“Menciono isso apenas para mostrar que não existe ‘mercado livre’ dentro de corporações gigantes, algumas das quais podem ser comparadas a Estados. E imagine que alguma divisão de uma transnacional decida que a partir de agora vai agir com base não nos objetivos corporativos, mas nos objetivos de maximizar os lucros em casa. A alta administração da corporação tentará prontamente extinguir a ‘rebelião’ na unidade subordinada. E se isso falhar, sérias consequências são possíveis, até o colapso de toda a corporação.

COMANDO ADMINISTRATIVO

“Assim, nas transnacionais, em sua forma mais pura, existe o mesmo ‘sistema de comando administrativo’ contra o qual se opunham os ‘chefes’ da perestroika.

“E agora vamos dar outra olhada na chamada economia de comando administrativo soviética.

“Assemelha-se ao modelo de uma corporação gigante? Corporação URSS. A diferença fundamental entre a ‘corporação da URSS’ e a corporação capitalista usual é que a segunda ‘afiou’ para maximizar os lucros do proprietário ou grupo de acionistas. E o primeiro – para a implementação de objetivos nacionais (econômicos, sociais, militares, científicos, técnicos, culturais). Assim, no final da década de 1920, quando a industrialização começou, os objetivos mais altos da ‘corporação URSS’ eram alcançar a independência econômica completa (em termos modernos, substituição completa de importações) e a criação de uma poderosa indústria de defesa. Todos os elos da ‘corporação da URSS’ funcionaram para os objetivos indicados e, no início da Grande Guerra Patriótica, os objetivos foram alcançados.

“O alcance dessas metas foi facilitado pelo grau máximo de mobilização econômica possível, quando a taxa de acumulação (a parte do produto social destinada ao investimento de capital) atingiu 40-50%. Com esses objetivos em mente, também foi realizado o planejamento econômico nacional, que previa o desenvolvimento acelerado dos setores industriais do grupo A (produção de meios de produção) em relação ao grupo B (produção de bens de consumo).

“Após a Grande Guerra Patriótica, a lacuna no ritmo de desenvolvimento das indústrias do grupo ‘A’ e do grupo ‘B’ começou a diminuir. A tarefa era elevar os padrões de vida do povo soviético. Houve um aumento paralelo na produção de bens de consumo e renda dos cidadãos da URSS. Ressalta-se que a elevação do padrão de vida se deu não apenas pelo aumento dos salários, mas também pela criação de fundos públicos de consumo (assistência médica gratuita, vales gratuitos e preferenciais etc.) e pela diminuição dos preços no varejo. Entre 1947-1953 houve seis reduções consecutivas desses preços.

 

“Uma corporação vertical de comando administrativo pode causar grandes danos a toda a corporação, e na ‘corporação URSS’ o surgimento de quaisquer centros de ‘relação mercadoria-dinheiro’ pode levar a consequências difíceis de se prever. Essa era a lógica estrita, e em algum lugar dura, da economia stalinista. A propósito, não houve absolutamente nenhuma falência na economia soviética. As empresas podem ter enfrentado vários tipos de dificuldades, houve paralisações temporárias da produção, mas a perda de longo prazo de qualquer ligação do sistema geral ameaçava a estabilidade da ‘corporação da URSS’.

Há que se destacar neste ponto que o autor diferencia bem os objetivos de uma corporação monopolista privada dos conglomerados estatais existentes nos países onde predomina o planejamento econômico e a democracia socialista. O primeiro, ao se livrar das amarras da concorrência, não se basta com o lucro. Ele persegue o lucro extraordinário, através da imposição de sobrepreços.

Há que se destacar neste ponto que o autor diferencia bem os objetivos de uma corporação monopolista privada dos conglomerados estatais existentes nos países onde predomina o planejamento econômico e a democracia socialista. O primeiro, ao se livrar das amarras da concorrência, não se basta com o lucro. Ele persegue o lucro extraordinário, através da imposição de sobrepreços.

Além disso, o caráter antissocial e parasitário dos monopólios privados transforma esses mesmos monopólios em entidades que além de se apartarem da concorrência, aproximam-se cada vez mais do gangsterismo, da rapina e das guerras. Já o segundo, busca objetivos coletivos, sociais, nacionais e estratégicos que permitem, como permitiu na URSS, a redução sistemática de preços, a elevação da produtividade e a melhora do bem-estar da população, além da construção de uma vigorosa indústria de meios de produção e de defesa.

Prosseguindo com Katasonov:

“Stalin cuidou para que os meios de produção (criados nos setores industriais do grupo “A”) não se tornassem objeto das relações mercadoria-dinheiro. Para que os meios de produção permanecessem nas mãos do Estado, eles não poderiam passar para mãos privadas e se tornarem capital (o que era contrário à ideologia da URSS).

“Em ‘Os problemas econômicos do socialismo na URSS‘ (1952), Stalin definiu claramente a natureza não mercantil dos meios de produção sob o socialismo: ‘Podemos considerar os meios de produção sob nosso sistema socialista como uma mercadoria?’ Não acho que seja possível. Durante a discussão desse trabalho stalinista em 15 de fevereiro de 1952, os economistas tocaram nessa questão-chave fazendo a pergunta: ‘Nossos meios de produção são commodities? Se não, como explicar o uso da contabilidade de custos nas indústrias que produzem os meios de produção?’ Eis o que Stálin disse: ‘Nossos meios de produção não podem ser considerados essencialmente como mercadorias. Não são bens de consumo, alimentos (como pão, carne, etc.) que entram no mercado, que são comprados por quem quiser. Na verdade, distribuímos os meios de produção. Não é uma mercadoria no sentido convencional, não é a mercadoria que existe sob condições capitalistas. Lá, os meios de produção são mercadorias”.

“Os meios de produção foram distribuídos pelo Estado apenas entre suas empresas (a distribuição foi formalizada na forma de contratos de fornecimento com pagamento em rublos não monetários)”, explicou Katasonov. “Eles não são vendidos nem mesmo para fazendas coletivas que tinham uma forma diferente de propriedade. Tratores e máquinas agrícolas foram transferidos não diretamente para as fazendas coletivas, mas para as estações estatais de máquinas e tratores – MTS, e com base em acordos especiais foram transferidas para o uso de fazendas coletivas. O Estado, como único proprietário dos meios de produção, após transferi-los para uma ou outra empresa, de modo algum perde o direito de propriedade dos meios de produção. E os diretores das empresas que recebiam os meios de produção do estado atuavam apenas como representantes do estado”, prosseguiu.

“A única exceção às regras estritas da economia stalinista era o comércio exterior, aqui os meios de produção caíam na esfera das relações mercadoria-dinheiro, tinham o preço do mercado mundial. Mas esse centro de ‘relações dinheiro-mercadoria’ foi isolado de forma confiável de toda a economia graças ao monopólio estatal do comércio exterior e ao monopólio estatal da moeda.

“Voltando ao tema da ‘Corporação da URSS’, noto que a condição para seu funcionamento eficiente era o planejamento. O planejamento era predominantemente setorial (o aspecto regional do planejamento era complementar, auxiliar). Claro, o planejamento foi diretivo. Também hierárquico: Gosplan – ministério – associação de produção – empresa de base. Em termos de tempo, o planejamento foi quinquenal, anual, trimestral e mensal. De acordo com o conjunto de indicadores, os planos incluíam centenas e milhares de posições (principalmente as naturais-físicas; as de custo tiveram um papel secundário). O desenvolvimento dos planos foi feito com base em saldos intersetoriais. Os planos de produção foram complementados por planos financeiros, de caixa, científicos e técnicos, etc.

“Em 1913, o peso da Rússia na produção industrial mundial era de cerca de quatro por cento. Em 1937 já representava dez por cento. Em meados dos anos 70 este indicador elevou-se para 20 por cento e manteve-se neste nível até ao início da perestroika.

“O período de trinta anos de nossa história (do final dos anos 1920 ao final dos anos 1950) pode ser chamado de milagre econômico soviético.

“Hoje a história se repete. O país está enfrentando os mesmos desafios do Ocidente coletivo de um século atrás. Para sobrevivermos, a economia doméstica deve ser transformada em uma ‘corporação russa’ o mais rápido possível”.

REDUÇÃO SISTEMÁTICA DE PREÇOS

Neste ponto, trazemos alguns trechos de outros artigos de Katasonov, um de 2014 e outro de 10 de julho de 2022, o segundo intitulado “Houve um tempo em que os preços foram reduzidos”. Isto é sobre 1947-1953, onde ele detalha a forma como era distribuída a renda social entre a população no socialismo soviético.

“Conforme observado no 19º Congresso do PCUS, o aumento do padrão de vida dos cidadãos da URSS foi assegurado por meio de dois processos paralelos: a diminuição dos preços no varejo e o aumento do nível nominal dos salários. O primeiro método foi a prioridade. Se em 1948 os salários reais (levando em conta o poder de compra do rublo soviético) eram em média 20% inferiores ao nível anterior à guerra, em 1952 eles excederam o nível anterior em 25%.

“Um dos indicadores do efeito socioeconômico das reformas anuais de preços é a magnitude da redução total dos preços em rublos no comércio varejista da URSS. A redução dos preços no primeiro estágio levou a uma redução no custo dos bens de consumo através do comércio varejista estatal durante 1948 em pelo menos 57 bilhões de rublos. Este montante representou uma perda líquida para o orçamento do Estado (a principal fonte de formação orçamental foi o imposto sobre o volume de negócios, cujo volume total dependia diretamente do nível dos preços do varejo). A perda tinha que ser coberta e, de fato, foi posteriormente coberta pelo governo graças ao crescimento da produtividade do trabalho, ao aumento da produção de bens de consumo e à redução do custo de produção. Essa redução de preços foi um ganho líquido para a população.

“A queda nos preços dos bens no comércio varejista do Estado causou uma queda nos preços nos mercados de fazendas coletivas e cooperativas. A participação dos Kolkhoses e bens cooperativos na massa total de bens vendidos à população durante o ano foi de cerca de um terço. Pode-se supor que a redução dos preços dos bens da fazenda coletiva e do comércio cooperativo tornou esses bens mais baratos em pelo menos 29 bilhões de rublos. Consequentemente, a população se beneficiou da redução dos preços em todos os setores do comércio varejista durante o ano em cerca de 86 bilhões de rublos.

“Em 1º de março de 1949, a segunda redução planejada dos preços de varejo no comércio estatal começou com um efeito anual de 48 bilhões de rublos e um efeito adicional no setor de fazenda coletiva e comércio cooperativo no valor de 23 bilhões de rublos. O efeito anual total foi de 71 bilhões de rublos. De acordo com a sexta queda, o indicador para o setor de comércio estadual foi de 53 bilhões de rublos. Para orientação, observo que em 1953 o orçamento da URSS (parte das despesas) era igual a 515 bilhões de rublos.

“Khrushchov conseguiu debilitar a economia de Stalin, mas não conseguiu destrui-la. Um golpe muito mais sério foi assestado pela reforma econômica de 1965-1969, personificada então pelo presidente do Conselho de Ministros da URSS, A. Kossíguine. Por vezes também é designada como reforma de E. Liberman, um dos consultores de Kossíguine. O resultado foi um modelo que alguns críticos mais severos designam de capitalismo de Estado.

“A reforma de 1965-1969 transformou as empresas socialistas em produtores mercantis isolados, orientados para o lucro (o principal indicador do plano), e não em dar o seu contributo para a construção do resultado do complexo econômico nacional unificado. Em substituição ao modo socialista de produção surgiu o modo mercantil de produção. Depois da reforma de Kossíguine não houve praticamente mais tentativas sérias de aperfeiçoamentos econômicos durante quase duas décadas. Tampouco houve tentativas para suspender a ‘experiência’ mortífera de Kossíguine-Liberman. A economia afundou-se na ‘estagnação’, apesar de a vida indicar com insistência a necessidade de verdadeiras mudanças para reforçar o país”.

O professor e economista Nilson Araújo de Souza, titular da Cátedra Cláudio Campos, da Fundação Maurício Grabois, destacou em suas obras sobre o tema que, mesmo tendo sofrido consequências nefastas, oriundas das “reformas” impostas à URSS no final da década de 50 e meados da década seguinte, a economia soviética ainda assim continuou crescendo acima das principais economias capitalistas, particularmente da economia dos EUA.

Em complemento às teses de Katasonov sobre o socialismo soviético, apresentamos algumas ideias de Tatiana Khabarova, frutos de sua luta durante e depois da queda da União Soviética. Em seus artigos, a engenheira e ex-dirigente do PCUS entra em detalhes sobre o sistema socialista construído por Stalin e aponta com precisão o momento em que houve a ruptura e quais instrumentos foram usados pela contrarrevolução para destruir a economia socialista.

Diz Tatiana:

“Para avaliar a importância do sistema econômico criado sob a direção de I.V. Stalin é preciso, antes de mais, responder com clareza à questão: Em que consiste concretamente a tarefa econômica integral da revolução proletária e do socialismo como primeira fase da formação socioeconômica comunista? Dirão: consiste na eliminação da propriedade privada, na socialização dos meios de produção. É correto, mas na realidade essa é a via para alcançar um fim, um instrumento para atingir um objetivo, mas não é um fim em si. O objetivo das transformações socialistas na economia não é tanto a socialização dos meios de produção em si, mas a socialização do sobreproduto [mais-valia], produzido com a sua ajuda”, diz ela.

Tatiana demonstra que o sistema econômico, construído nas décadas de 30, 40 e 50 do século XX na URSS, e sintetizado na dupla escala de preços – preços intermediários, ou de transferência, e preços finais, ou preços de consumo – foi o que garantiu que, além da socialização dos meios de produção, houvesse a distribuição social do sobreproduto na URSS.

Esta distribuição do rendimento social se deu através da redução sistemática de preços e da constituição de um fundo de consumo social gratuito cada vez mais abrangente. A redução sistemática de preços era o fator impulsionador da redução dos custos de produção.

Ela considera que, mais importante do que a industrialização acelerada e a coletivização do campo, essa foi a grande obra de Stalin e também o ponto central de ataque dos inimigos do socialismo.

Pela importância de suas teses e pelo tratamento sério que ela dá ao tema central deste nosso debate, tomamos a liberdade de trazer aqui a íntegra de uma de suas palestras. Confira.

SOCIALISMO COMO SISTEMA

“Nas vésperas da revolução socialista e nas fases iniciais da instauração do novo regime, havia a convicção no nosso país de que as relações monetário-mercantis seriam abolidas, se não imediatamente após a revolução, pelo menos bastante rapidamente. A política do chamado comunismo de guerra constituiu em grande medida o reflexo deste estado de espírito, enquanto a transição para a NEP foi o reconhecimento político do fato inquestionável que depressa se constatou, de que as coisas não eram assim tão simples e que as relações monetário-mercantis são por enquanto indispensáveis, sendo que este ‘por enquanto’ pode estender-se por um período histórico bastante longo.

“No seu trabalho ‘Para o quarto aniversário da Revolução de Outubro’ Lenine escreveu:

‘Contávamos, levados por uma onda de entusiasmo, depois de despertar no povo um entusiasmo a princípio político e depois militar, contávamos realizar diretamente, na base desse entusiasmo, tarefas econômicas tão grandes (como as políticas, como as militares). Contávamos – ou talvez seja mais justo dizer: supúnhamos, sem ter calculado o suficiente – que com imposições diretas do Estado proletário poderíamos organizar de maneira comunista, num país de pequenos camponeses, a produção estatal e a distribuição estatal dos produtos. A vida mostrou o nosso erro’.

“Noutro trabalho, escrito dias depois, lemos:

‘(…) A Nova Política Econômica, pela sua essência, consiste no fato de que neste ponto nós sofremos uma forte derrota e começamos a efetuar uma retirada estratégica (…) A Nova Política Econômica significa (…) a transição para a restauração do capitalismo (…)’.

Toda a história da NEP, vista à distância de hoje, com a compreensão que temos do problema, consistiu no fato de os bolcheviques na Rússia se terem confrontado – além da instauração da forma socialista de propriedade social (de modo aproximado social significa estatal) – com a necessidade de encontrar, pressentir, na realidade econômica concreta uma lei objetiva que servisse à propriedade social socialista tal como a lei da taxa média de lucro serve à propriedade privada capitalista.

“Isto significa que o sucessor de V. I. Lenin no posto de dirigente do Estado soviético tinha pela frente não só a resolução da tarefa da industrialização do país, coletivização do campo, etc., mas ainda a tarefa fundamental, a tarefa das tarefas, de encontrar o ‘parceiro’ das relações de valor modificadas da propriedade socialista. Por outras palavras, construir toda a economia socialista como um sistema, um sistema histórico integral competitivo.

“No período da NEP recuou-se para o capitalismo, mas não se podia utilizar por muito tempo a modificação capitalista da lei do valor: o efeito possível de obter era muito efêmero, seguir-se-ia uma crise e a restauração completa do capitalismo no país.

“Deve-se dizer abertamente que naquele tempo a grandiosidade desta tarefa e até o próprio fato do seu surgimento – de que era precisamente esta tarefa que estava na ordem do dia – não foram compreendidos adequadamente. Ao nível conceitual, o desenvolvimento da economia soviética foi determinado pela lógica da resolução do seguinte problema: transformar a economia socialista num todo historicamente autônomo, historicamente soberano. Intuitivamente, o trabalho foi conduzido na direção justa, de forma incessante e muito enérgica. No entanto, nos documentos oficiais daquele período, nas intervenções dos dirigentes do partido e do Estado, e até, infelizmente, na literatura científica, não encontramos em parte alguma uma formulação clara do problema e uma expressão clara da compreensão de que era precisamente este problema que estava a ser resolvido.

“Só quando a tarefa da construção da economia socialista como sistema integral já estava praticamente resolvida, no final de uma vida de esforços titânicos para a construção da potência soviética, I.V. Stalin, no seu testamento político – ‘Problemas Econômicos do Socialismo’ – procurou traçar um quadro sintético econômico e filosófico deste feito que marcou verdadeiramente uma época, desta criação coletiva, pode-se dizer, do povo soviético. E só vários anos depois da morte de Stalin, numa das discussões econômicas que começavam então a efervescer, foram finalmente pronunciadas as palavras de que o chamado sistema de duas escalas de preços de Stalin não era outra coisa senão a modificação socialista do valor. Mas já era tarde, outros ventos sopravam, a Terceira Guerra Mundial intensificava-se, e a primeira grande dor de cabeça para o adversário geopolítico era precisamente o mecanismo econômico de Stalin.

SISTEMA SOCIALISTA SOVIÉTICO

“Em consequência, quando deste mecanismo já só restavam ruínas, todas as tentativas de falar séria e fundamentadamente da modificação socialista do valor se tornaram vãs. Quem o fizesse era visto como se estivesse a falar da face oculta da Lua, e não do sistema econômico que ainda há pouco existia e funcionava em plenitude no nosso país, na nossa terra.

“E não eram apenas os Aganbeguian, Abálkine, Bélkine, Raizberg, Otsason e outros como eles que não queriam ouvir, aceitar ou publicar. O mais surpreendente é que também nas páginas das nossas publicações chamadas oposicionistas, nem uma abordou o assunto. Nem uma publicou, por exemplo, o meu artigo de 1989 sobre este tema. A conhecida coletânea Alternativa, de 1990, reuniu textos de todas as figuras do movimento de esquerda que escreviam e intervinham sobre questões econômicas. Parece-me que só eu não fui convidada. E sobre as relações monetário mercantis e a lei do valor no socialismo publicaram uma mediocridade.

“Mas terá sido realmente resolvida a tarefa de encontrar uma forma adequada ao regime socialista de consolidação e distribuição do rendimento líquido? Sim, foi realmente e inquestionavelmente resolvida. Porém foi sendo resolvida segundo o método da tentativa e erro, de um modo essencialmente empírico e não partindo de pressupostos teóricos rigorosos. Por isso não faz sentido tentarmos aqui reconstituir esse processo, a forma como decorreu na prática. Passemos de imediato ao ponto de vista a partir do qual, em 1952, Stalin lançou um olhar sobre o passado.

A economia socialista transformada em sistema como ‘consórcio nacional’ gigante

Os meios de produção como produção social intermediária e os bens de consumo como produção social final do ‘consórcio nacional’

“Em primeiro lugar, em Problemas Econômicos do Socialismo estão colocados os pingos nos ‘is’ sobre a questão da esfera de ação da lei do valor no socialismo, a esfera de ação no socialismo das relações monetário-mercantis, da produção mercantil, ou, se quisermos, a questão sobre o mercado socialista.

“O mercado socialista é apenas o mercado dos bens de consumo geral. O mercado da força de trabalho não existe no socialismo, os meios de produção também deixaram de ser mercadorias, não falando sequer da terra.

Os russos comemoram a vitória contra o nazismo

“Segundo Stalin, alguém que pensava que se deveria restaurar na URSS todas as categorias econômicas do regime burguês, uma vez que se reconhecia a existência da produção mercantil no socialismo –, essa pessoa estava profundamente equivocada.

“A nossa produção mercantil distinguia-se radicalmente da produção mercantil capitalista. O valor – categoria histórica – revelava-se nas nossas condições de uma forma totalmente diferente da que tem nas condições da propriedade privada dos meios de produção. A lei do valor, escreve Stalin, no nosso país ‘está limitada e enquadrada’. É verdade que a expressão ‘modificação socialista do valor’ não é utilizada por Stalin, mas na sua essência esta abordagem é por ele desenvolvida de forma inequívoca e indiscutível.

O que são em geral bens de consumo da população?

“Os bens de consumo são meios de reprodução da força de trabalho; são os substitutos ou representantes mais diretos e próximos do trabalho vivo no sistema de relações de valor, pois, como se sabe, o trabalho em si não tem valor, nem preço.

“A divisão da produção nacional em mercadorias e não mercadorias comporta uma série de importantes consequências.

“A primeira é o fato de o valor do sobreproduto, ou rendimento líquido, passar a poder consolidar-se apenas, em rigor, nos preços dos bens de consumo. Isto acontece simplesmente porque, do ponto de vista econômico, só eles constituem mercadorias e só eles têm um preço no sentido próprio da palavra. Ou seja, um preço que não é um valor convencional-contabilístico, mas que tem relevância econômica determinante. O rendimento líquido não é mais do que a diferença entre o preço de venda e o preço de custo. Se os preços não tiverem expressão econômica, então não haverá um rendimento economicamente fundamentado.

“A este respeito gostaria de alertar para o preconceito comum de que, alegadamente, no mercado socialista de bens de consumo nunca se teve em conta a lei da procura e da oferta, que os preços eram definidos a eito e que isso, supostamente, estaria bem.

LEI DA OFERTA E DA PROCURA

“A lei do equilíbrio entre a procura e a oferta atua no mercado socialista de forma rigorosa. Neste mercado os preços têm um caráter objetivo, e enquanto isso foi tido em conta, as prateleiras estavam cheias de produtos, ao mesmo tempo que os preços baixavam; mas quando se negligenciou esse aspecto, surgiu um desequilíbrio na circulação monetário-mercantil, a procura não satisfeita refletiu-se no aumento dos depósitos poupança, acumularam-se reservas excessivas de mercadorias armazenadas e outras contrariedades. Mas o culpado disto não foi o socialismo, mas as pessoas que marcharam obstinadamente contra as suas leis objetivas.

“A segunda consequência é a circunstância de surgir uma nova distinção entre as mercadorias e as não mercadorias: as primeiras constituem a produção social final e as segundas, produção social intermediária. Não pode ser de outro modo, dado que, seja sob que forma for, ainda existe mercado no organismo econômico da sociedade, e se a sociedade ainda não pode prescindir do mercado, então economicamente não há quaisquer outras variantes a não ser considerar como produto social final apenas e unicamente a parte que é realizada no mercado, e aquilo que não chega ao mercado realiza-se de acordo com outras regras, sendo incluído no produto social intermediário.

“Assim, em princípio, toda a produção destinada ao processo técnico-produtivo, à exceção de uma pequena parte que é vendida à população nas mesmas condições que os bens de consumo, do ponto de vista econômico, é incluída na categoria de produção social intermediária, e o seu valor de referência é o preço de custo e não o preço de venda.

“Por último a terceira consequência. Apesar de o valor do sobreproduto ser criado por todos os trabalhadores da produção material, ele só ‘amadurece’ para a sociedade, caindo do processo econômico para o depósito, só se acumula no mercado de consumo; ou como frequentemente se dizia antigamente, ‘não na esfera da produção, mas na esfera da circulação’.

“Nas células de produção, digamos, ao seguirmos o amadurecimento do novo valor, todos os elos da cadeia social e tecnológica nos conduzem ao mercado, pois nas células produtivas, em si, não se forma o valor do sobreproduto.

“Naturalmente que este é um modelo ideal. Na realidade tudo se passa de uma forma menos linear. Mas agora é a altura própria para recordar que Lenin, explicando a essência do socialismo, várias vezes recorreu nos seus trabalhos à analogia entre o caráter integral da economia socialista e as diversas formas de corporações industriais capitalistas. Assim, no Estado e a Revolução, fala da economia socialista socializada como de ‘um único consórcio estatal, nacional’ É também amplamente conhecida a comparação que Lenin faz entre a sociedade socializada e ‘o monopólio capitalista de Estado usado em proveito de todo o povo’.

“E se olharmos até onde chegamos na busca do sistema econômico socialista, vemos que na realidade, no nosso país, toda a economia nacional estava ‘ligada’ de modo algo semelhante a um consórcio gigante multi-setorial, ou um ‘consórcio nacional’.

“O consórcio chega ao mercado com uma determinada produção final, e o lucro, que foi extraído do conjunto da atividade, só está contido no preço desta produção. Depois o lucro total é dividido por todos os participantes na cadeia tecnológica. Não passa pela cabeça de ninguém formar o lucro no preço do produto intermediário, apesar de os produtos semi acabados transitarem dezenas de vezes no interior do consórcio, de uma empresa para outra, e apesar de cada empresa estar separada das restantes, como se costuma dizer, por mares e oceanos. O fato é que o produto intermediário passa de elo em elo a preços de transferência, ‘sem lucro’, que são aproximadamente iguais ao preço de custo.

“Um tal ‘consórcio nacional’ foi formado de fato, nos anos 30 e 40, na economia do nosso país. Neste ‘consórcio’, ou complexo econômico unificado, considerava-se produção intermediária a produção destinada ao processo técnico-produtivo, e produção final as mercadorias de consumo geral.

“A produção destinada ao processo técnico-produtivo não era vendida, mas integrada num fundo, ou seja, era distribuída pelos canais de abastecimento técnico-material. Os preços eram estabelecidos uniformemente um pouco acima do preço de custo (preço de custo mais o chamado lucro mínimo, uma pequena percentagem do preço de custo).

“A redução do preço de custo era um dos principais indicadores de avaliação do plano. Na base da redução do preço de custo, baixavam os preços do varejo e, deste modo, o rendimento líquido criado na produção material percorria a cadeia social-tecnológica até chegar ao mercado, onde tomava a forma de imposto sobre transações, incorporado no preço das mercadorias, que era arrecadado pelo Estado.

“Deve-se salientar que o Estado conduzia uma política ativa de redução dos preços de varejo, e era exatamente a perspectiva da baixa iminente dos preços de varejo da produção que impelia os dirigentes econômicos a procurarem energicamente margem para reduzir o preço de custo.

“Deve-se sublinhar que o termo ‘imposto sobre transações’, utilizado para designar este pagamento, não reflete em absoluto a sua verdadeira natureza nas condições da economia socialista. Não era um imposto, mas em rigor a consolidação do rendimento líquido da sociedade nos preços da produção social final.

A distribuição do rendimento líquido ‘segundo o trabalho’ (através da redução regular dos preços e aumento dos fundos de consumo social gratuito)

A economia nacional soviética do período de Stalin não foi uma ‘economia de mobilização’, mas uma verdadeira economia socialista.

“Entre os nossos economistas da época que precedeu a perestroika era muito popular a ideia de que precisávamos assimilar as realizações e aproveitar tudo o que havia de melhor no Ocidente.

“Porém, nunca a nossa economia atingiu um nível tão esplêndido, orgânico, produtivo e historicamente justificado, de assimilação das realizações da civilização ocidental como na época de Stalin. Contudo, não era uma simples assimilação, mas uma genuína ‘reprodução’ dialética, ou seja, uma reelaboração criativa, com o aproveitamento daquilo que era mais importante e a passagem para um novo degrau histórico.

“Esta reelaboração dialética tem um valor particular pelo fato de ter sido realizada objetivamente, sem uma intenção consciente claramente expressa. Naturalmente que os bolcheviques-stalinistas se lembravam do preceito leninista sobre a necessidade de assimilar todas as riquezas intelectuais e prático-organizativas da humanidade. Mas certamente que ninguém, começando pelo próprio Stalin, se colocou conscientemente o objetivo de sintetizar dialeticamente os progressos alcançados pela burguesia. Tanto mais que, historicamente, uma parte essencial destes progressos ainda não se tinham concretizado, e o pano de fundo em que decorreu o nosso primeiro quinquênio foi a crise mundial de 1929-33.

“Não obstante, o princípio profícuo de não obter lucro do preço do produto intermediário, o qual na economia capitalista só podia ser aplicado no quadro das corporações industriais, foi objetivamente generalizado no nosso país à escala de todo o organismo econômico.

“Atrás já dissemos que o valor do sobreproduto, ou rendimento líquido, tem a propriedade de ‘se colar’ ao fator de produção que é dominante numa dada etapa histórica, isto é, ao qual está ligado e no qual radica o poder da classe dominante.

“Vejamos agora no modelo de Stalin a que aparece ‘colado’ o rendimento líquido social – tendo em conta que a linha de transferência da função de formação do rendimento para os preços no mercado de consumo era conduzida com vista a ter a maior abrangência possível, malgrado não se ter realizado na totalidade.

“Ora, porquanto os bens de consumo geral são na sua essência os substitutos diretos e representantes no mercado do trabalho vivo, o que vemos é que aqui o rendimento social líquido não ‘se cola’ a outra coisa senão ao trabalho vivo. Por outras palavras, objetivamente o rendimento social líquido forma-se proporcionalmente ao trabalho vivo, aos seus gastos. Ou seja, o fator de produção [trabalho vivo] ao qual no regime socialista deve pertencer a hegemonia econômica e política está colocado na própria estrutura, no corpo do organismo econômico, numa posição que lhe garante essa hegemonia: para ele ‘flui’ o resultado final do processo social de produção, o valor do sobreproduto.

“E aqui termina a analogia com a corporação capitalista; aqui se realiza um avanço basilar, social-estrutural, de dimensão formacional, resolve-se a contradição entre o caráter social do trabalho e a apropriação privada dos seus resultados, a qual o socialismo é de fato chamado a resolver. Da apropriação privada transitamos para a apropriação social, da formação e distribuição do novo valor através do capital, segundo o capital, passamos para a formação e distribuição segundo o trabalho, da distribuição sob a forma monetária ao nível das unidades de produção, passamos para a distribuição sob a forma natural ao nível estatal.

“Houve sempre muita conversa, e ainda hoje há, sobre a ‘distribuição segundo o trabalho’, mas as pessoas obstinam-se em não querer compreender duas coisas simples: primeiro, só é possível distribuir segundo o trabalho aquilo que se forma proporcionalmente ao trabalho, aos seus gastos; segundo, a distribuição segundo o trabalho só pode ser social (em oposição à privada) e só se pode realizar através de canais nacionais, estatais. E ainda: esta distribuição por princípio não é realizável sob a forma monetária.

“Sob que forma se realizava esta distribuição no modelo de Stalin de ‘duas escalas’? (A propósito, esta designação – sistema de preços de ‘duas escalas’ – tem origem na divisão em preços de transferência dos meios de produção e preços do mercado de consumo com a componente da formação do rendimento).

“No modelo de Stalin de ‘duas escalas’, a distribuição segundo o trabalho realiza-se a) sob a forma da baixa regular dos preços do varejo de um amplo conjunto de bens, à custa do imposto sobre transações, e b) sob a forma de um contínuo incremento, alargamento e aperfeiçoamento qualitativo dos fundos de consumo social gratuito. Outras variantes de ‘distribuição segundo o trabalho’ simplesmente não existem.

Soldados russos desfilam em tanques T-34 na Paraça Vermelha, em Moscou em 2021 — Foto: Reuters/Maxim Shemetov

“Os cidadãos soviéticos na sua grande maioria não compreendiam, e também ninguém se preocupou em explicar-lhes, que a baixa dos preços de varejo (ou pelo menos a sua estabilização durável) mais o desenvolvimento dos fundos de consumo gratuito representam a realização do seu direito ao rendimento, constituem a única forma possível sob a qual os trabalhadores no socialismo recebem, adicionalmente ao salário e aos diferentes prêmios que auferem no local de trabalho, a sua parte do rendimento enquanto coproprietários dos meios de produção socializados (ou, o que é o mesmo, estatizados).

“As pessoas não ofereceram a devida resistência à maldita ‘desestatização’ e privatização devido a esta incompreensão. Pensaram que, para além de preços estáveis, saúde gratuita, educação e habitação, iriam receber ainda alguns ‘dividendos’. Mas os dividendos foram apenas para os bolsos de outros, enquanto os trabalhadores comuns perderam o seu direito vital ao rendimento – sob a única forma em que poderiam recebê-lo. E perderam também o ‘conduto’, isto é, uma grande parte do salário; quanto às pensões, estas foram cortadas em várias vezes.

“No projeto de nova redação da Constituição da URSS foi incluído um artigo específico sobre o direito dos cidadãos a uma parte do rendimento líquido da sociedade, com base em todo o sistema de relações de propriedade estatal socialista e da administração socialista, enquanto garantia material deste direito.

“No modelo de Stalin, a baixa anual de preços do varejo era o ‘velocímetro’ da eficiência da administração econômica. A propósito, também aqui se observa uma evidente analogia sistêmica entre o movimento de redução dos preços de varejo no socialismo e a tendência para a redução da taxa de lucro nas condições da economia capitalista.

“No modelo de Stalin, a baixa anual de preços do varejo era o ‘velocímetro’ da eficiência da administração econômica. A propósito, também aqui se observa uma evidente analogia sistêmica entre o movimento de redução dos preços de varejo no socialismo e a tendência para a redução da taxa de lucro nas condições da economia capitalista”

“A contínua redução dos preços, o aumento do volume de bens oferecidos gratuitamente aos trabalhadores, à medida do desenvolvimento da sua cultura de necessidades, tudo isso conflui para uma espécie de ‘autossuperação’ progressiva das relações monetário-mercantis, de valor. Abre-se a perspectiva da transição natural, evolutiva, para a fase superior do comunismo, para a produção integralmente não mercantil, na qual o trabalhador se realiza, não como possuidor de ‘força de trabalho’, mas como personalidade criativa, e para a distribuição comunista segundo as leis de uma abundância racional e sensata.

“A conclusão de tudo o que foi dito é que a construção de Stalin do processo socialista de direção da economia, na base do mecanismo da incessante redução dos custos e dos preços, não representou nenhuma ‘economia de mobilização’ – como está escrito nos documentos programáticos de praticamente todos os nossos partidos comunistas atuais – mas sim uma economia socialista como tal, na sua forma autêntica, que pela primeira vez na história se consolidou com os seus contornos de princípio e um caráter sistêmico que objetivamente lhe é próprio.

“Neste modelo, a forma de consolidação e distribuição do rendimento líquido (isto é, a modificação da relação de valor) correspondia inteiramente à forma de propriedade e à essência objetiva da nova formação social.

“Os discursos sobre o retorno ao socialismo que não colocam a questão do retorno a este esquema econômico são totalmente vazios.

“Porém, é preciso sublinhar de todas as maneiras que não se trata de um regresso ao passado, mas ao futuro. Isto porque se nos situarmos na zona de ação do modelo econômico de Stalin, estaremos, para sermos totalmente exatos, já não no socialismo, mas na fase de construção em larga escala do comunismo – como, aliás, no seu tempo se afirmava com toda a justeza. Ou seja, estaremos num socialismo que intensa e incessantemente, a cada minuto e a cada hora, se transforma em comunismo.

Como foi destruída a economia soviética durante a ‘reforma’ de 1965-67? (através da destruição da correspondência sistêmica entre as relações de propriedade e a modificação do valor)

“Gostaria de dizer ainda mais alguma coisa sobre o modelo de ‘duas escalas’, mas não posso deixar de abordar, ainda que muito brevemente, a questão da sua destruição.

“Este modelo foi destruído de uma forma deliberada e consciente, e o golpe foi desferido no próprio coração: na articulação entre a forma de propriedade e o princípio da formação do rendimento.

“Quem já se interessou pela história e os precedentes da reforma de Kossíguine, de 1965-67, lembrar-se-á certamente de como os seus adeptos mais zelosos apresentaram a essência desta reforma. A essência resumia-se à substituição do imposto sobre transações pela tributação do lucro das empresas e pelo pagamento dos meios de produção.

“E porque é que os nossos reformadores odiavam tanto o imposto sobre transações? Por uma razão muito simples: porque representava o rendimento líquido da sociedade, consolidado de maneira socialista, proporcionalmente ao trabalho vivo. Por seu lado, o lucro das empresas – na medida em que ainda se forma no socialismo – e ainda mais o pagamento dos meios de produção, ou seja, uma variedade do rendimento líquido, são consolidados proporcionalmente ao trabalho social; ou seja, de maneira análoga ao que acontece na sociedade capitalista.

“Em conformidade, o principal objetivo da reforma foi acabar com o chamado sistema de dois canais de contribuições para o Estado – através da tributação do lucro e do imposto sobre transações – e passar futuramente para a acumulação exclusiva do rendimento líquido na economia nacional através do ‘lucro sobre o capital’, isto é, proporcionalmente ao valor dos meios de produção e recursos materiais circulantes [capital circulante].

“Por outras palavras, o objetivo da reforma foi a substituição do princípio da consolidação e distribuição do rendimento líquido social ‘segundo o trabalho’ por um sucedâneo do princípio burguês da formação de lucro e apropriação do lucro ‘segundo o capital’. Ou seja, desde o primeiro momento, não se tratou de uma ‘reforma’, mas de uma diversão econômica de grande escala, precursora direta do pogrom de Gaidar e Tchubais. Isto porque não é possível imaginar um tal nível de estupidez humana que impedisse Kossíguine, por exemplo, de compreender o que de fato – realmente – estava a engendrar na economia soviética.

“Em todo o caso, a explosão de júbilo com que a ‘reforma’ foi recebida no Ocidente, os brados de alegria que vinham de lá a este propósito, e as apreciações que eram feitas pelos economistas ocidentais – tudo isto devia alertar mesmo o mais completo estúpido e levá-lo a interrogar-se se estaria a fazer o que era preciso. De modo que o mais certo é não ter havido aqui ninguém estúpido, não houve tal como não há agora.

“Em resultado da ‘reforma’ a economia socialista foi privada do princípio que lhe era próprio da formação do rendimento. E foi implantado à força um mecanismo pseudo capitalista, estranho e perverso, de acumulação e apropriação do sobreproduto social.

RENDIMENTO SOCIAL DISTRIBUÍDO PRIVADAMENTE

“O processo de formação do rendimento – e ao mesmo tempo de distribuição do rendimento – foi ‘transplantado’ do nível da economia nacional para o nível de cada empresa, ou seja, a apropriação social dos resultados do trabalho social foi na prática substituída pela apropriação por grupos particulares. Foi quebrada a importantíssima ‘divisória’ no plano econômico entre a produção social final e a produção social intermediária. Por toda a parte nas células econômicas começou-se a extrair ‘rendimento’, mas agora a palavra rendimento tem de ser entendida entre aspas, pois estes ‘rendimentos’ da reforma revelaram uma perniciosa dependência direta do aumento dos gastos materiais efetuados no processo de produção (e não da sua economia).

“Despontou toda uma panóplia de consequências negativas da ‘reforma’, que foram muitas vezes descritas na nossa imprensa: queda dos ritmos de crescimento, abrandamento brusco do progresso científico-técnico, evolução anêmica dos indicadores da eficiência, egoísmo de grupo, injustiça na distribuição – e daqui a perda de estímulos para o trabalho consciencioso.

“Durante 20 anos tudo isto nos atormentou, e nos meados dos anos 80, no conjunto da economia de fato, criou-se uma situação de profunda crise. Mas depois do que foi dito, respondam-me: foi esta uma crise orgânica do socialismo, foi uma crise interna emanante do próprio sistema socialista? Não e novamente não! Repito, foi resultado de uma poderosíssima diversão econômica, resultado do fato de a economia socialista funcionar durante mais de duas décadas num regime anormal, criado artificialmente, com importantíssimos centros vitais destruídos.

“Garanto-vos que depois de uma tal destruição qualquer outra economia, começando pela norte-americana, colapsaria em poucos meses, enquanto o nosso complexo econômico nacional, precisamente como sistema, demonstrou ter uma vitalidade fenomenal. Sangrando de uma ferida tão terrível, que era constantemente remexida para que não sarasse, mesmo assim ela nos dava de comer e beber, vestia-nos e calçava-nos, mantinha a paridade com o adversário geopolítico, lançava para o espaço máquinas excepcionais, organizava olimpíadas e os concursos Tchaikóvski… e ainda hoje vive. Isto não é uma economia, mas a oitava maravilha não só do século XX, mas de todo o segundo milênio da nossa era. E se não salvarmos esta maravilha, se não a defendermos do inimigo, então perderemos o direito de nos chamarmos Povo no palco da história.

“No que respeita ao que era preciso fazer para sair da crise, gerada pelo ‘reformismo’ de Khruchov e Kossíguine, ou – o que é o mesmo – pela sabotagem, penso que a resposta já foi atrás exposta de forma bastante clara: nomeadamente era preciso acabar com a sabotagem e restabelecer a correspondência adequada ao sistema entre a forma de propriedade e a modificação do valor, que foi brilhantemente encontrada na época de Stalin.

“Mesmo depois de todas as extravagâncias de Khruchov e Kossíguine, mesmo depois de em dada altura a redução do preço de custo ter sido retirada dos principais indicadores de avaliação do plano, mesmo assim o preço de custo da produção industrial e agrícola em geral da URSS era cinco a dez vezes inferior ao dos países do Ocidente.

“A economia militar da URSS constituiu um fenômeno único em toda a história mundial. Com uma produção de eletricidade quase duas vezes menor do que a Alemanha hitlerista e os seus satélites, uma extração de carvão cinco vezes inferior e um terço da sua produção de aço, a União Soviética produzia duas vezes mais armamento. O preço de custo de todos os tipos de técnica militar diminuiu no seu conjunto entre duas a três vezes durante o período da guerra. Estima-se que o país em guerra tenha gastado em armamento 40 mil milhões de rublos, a preços atacados. A redução dos preços no atacado do armamento num país em guerra é coisa nunca vista antes na história. Foi a redução dos gastos de trabalho social que permitiu ao Estado soviético manter um nível estável de preços dos meios de produção, bem como dos preços de varejo dos bens essenciais de consumo geral. Perto do final da guerra, os preços nos mercados kolkhozianos baixaram significativamente.

“No 4º quinquênio (1946-1950), os ritmos de crescimento da produção bruta industrial foram superiores a 20 por cento e os ritmos de aumento da produtividade elevaram-se a 12-13 por cento. No final do quinquênio, a agricultura recuperou o nível anterior à guerra, e a indústria havia-o ultrapassado largamente. Logo em 1947, apesar da terrível seca de 1946, foi abolido o sistema de senhas de racionamento, realizou-se a reforma monetária e iniciou-se a redução anual dos preços a retalho dos principais produtos de consumo geral. Nos poucos anos em que vigorou esta política – lamentavelmente interrompida logo após a morte de Stalin – o nível de vida da população aumentou cerca de duas vezes.

“Sobre este tema podíamos falar indefinidamente. Mas quando se lê na imprensa da oposição que precisamos de aprender com Roosevelt a organizar a produção, ou com quaisquer cooperativas espanholas, não deixamos de nos espantar com tal aberração da visão histórica. Veem o que querem, onde querem, mas não o que é preciso e onde é preciso. Espero que esta minha intervenção contribua um pouco para o esclarecimento destas questões”, concluiu Tatiana Khabarova.

Aqui concluímos esse nosso estudo pedindo desculpas aos leitores pela extensão das citações, mas, consideramos que a importância do que aqui foi dito pelos autores compensa os dissabores provocados pela dimensão dos textos. Certamente foram tratadas questões fundamentais para uma compreensão mais profunda do que ocorreu na União Soviética na década de 90 e quais os caminhos e possibilidades para a retomada efetiva da ofensiva estratégica e da construção do socialismo.

O reconhecimento do papel desempenhado pela China na atualidade por parte de Yuri Voronin, a análise de Valentin Katasanov da superioridade da economia socialista sobre o capitalismo e o aprofundamento de Tatiana Khabarova sobre o sistema econômico de Stalin deram uma grande contribuição ao debate contemporâneo. Assim também a precisão sobre quais foram os reais problemas que levaram à destruição da União Soviética foi de grande ajuda para a superação de um dos maiores problemas enfrentados pelo movimento revolucionário internacional nas últimas décadas.

(*) Jornalista, médico e escritor, redator de política da Hora do Povo, membro do CC do PCdoB e pesquisador da Fundação Maurício Grabois