O grotesco espetáculo dos tanques no asfalto

Por alguns dias só se falou em blindados. Não guardei os registros, mas me recordo bem de que a primeira vez que vi tanques militares foi nas ruas do Rio.

O grotesco espetáculo dos tanques no asfalto

O grotesco espetáculo dos tanques no asfalto

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Por alguns dias só se falou em blindados. Não guardei os registros, mas me recor-do bem de que a primeira vez que vi tanques militares foi nas ruas do Rio.

Não falo de 7 de setembro nem me refiro a um desfile, porque os veículos blindados estavam numa operação de guerra urbana, em ações de patrulha, prisões e controle de trânsito. Tanques de verdade, com suas lagartas rangendo no asfalto, soltando fumaça, e caminhões trans-portando soldados apontando metralhadoras. De pé na parte superior, perscrutavam o horizonte com seus binóculos.

Vivíamos, como hoje, dias de enorme tensão. Correr de um tanque é fácil, mas acontece que você pode se deparar com uma patrulha pela frente ou levar uma rajada pelas costas. Numa esquina da Rio Branco, pra lá do Teatro Municipal, um dos veículos não conseguiu fazer a curva e foi forçado a estacionar. São pesadões, andam lentamente soltando gemidos. Com o tráfego bloqueado, pessoas apressadas transitavam pela ave-nida no início daquela tarde de outono, terça-feira, 31 de marco de 1964.

Tentamos, Walter e eu, apressar o passo. Um grupo agitava cartazes em frente ao Clube Militar, na Cinelândia. Uma mulher teve um cartaz com a caricatura de um gorila arrancado de suas mãos por dois seguranças. Os homens demonstravam nervosismo, discutiam acaloradamente. Walter apontou sua máquina para fotografar a cena. Não conseguiu. Disse que amanhecera com dores no pulso direito. Era a primeira vez que eu via tanques de combate nas ruas, deslizando em suas esteiras, fora das telas de cinema. Como os dinossauros, eles são feios e amedrontam.

Deixamos o prédio da Faculdade de Filosofia, na avenida presidente Antônio Car-los, com a meta de atravessar a cidade em direção ao Largo do Caco, na Central do Bra-sil. Lá, na Faculdade de Direito, integraríamos um bunker de resistência estudantil e ficaríamos à espera de distribuição de armas, que não chegaram. Acabamos encurralados por grupos paramilitares e do Comando de Caça aos Comunistas. Jogaram bombas, de-ram rajadas de metralhadoras. Fomos salvos por um jovem capitão do Exercito, Ivan Cavalcante Proença, que organizou a retirada.

Na Filô, ficamos sabendo que o dispositivo militar do presidente João Goulart o abandonara. Ao lado de Darcy Ribeiro, ele escapou do Alvorada e estava em fuga para o Sul. No auditório do terceiro andar, tivemos uma Assembleia agitada com debates inflamados, conspirações revolucionárias, conclamações de resistência. De repente ou-viu-se um estampido, um corpo caiu e se impôs um pesado silêncio. Saímos em grupos de cinco. Nos deparamos com aqueles blindados se arrastando pela avenida central, pes-soas assustadas correndo em busca de proteção, estudantes que como eu nunca enfrenta-ra tanques de verdade numa passeata, equipados com metralhadoras e lançadores de granadas. Poucos sabiam que os blindados eram parte de um golpe em andamento.

O Walter me olhou com seus olhos claros bem abertos e indagou se a esta altura já havia presos e pessoas mortas. Walter Faria era do Partido, o cara que havia paciente-mente me recrutado, me dado régua e compasso na formação política e jornalística. Foi ele que me encaixou na primeira experiência de repórter, no jornal Movimento, da UNE, na praia do Flamengo, prédio que no final daquela trágica noite vi, de dentro de um ôni-bus, arder em chamas.

Com ares de poeta e um humor sutilíssimo, Valter era um comunista romântico que namorava uma bailarina de perna fina. Ia busca-la às tardes na escadaria do Munici-pal. Nas reuniões do grupo dizia que nossa geração é capaz de grandes coisas. Nela, há grandes cabeças, enormes corações. E o socialismo depende das cabeças e do coração, são rosas e pão para o povo.

Um dia combinamos que a primeira filha que viesse, fosse dele ou minha, se cha-maria Lídice, nome de uma cidadezinha da Tchecoslováquia arrasada pela aviação nazis-ta, depois reconstruída com jardins de flores em todas as praças. Não cumpri o trato. À minha primeira filha, que eu chamava de Flor, demos, Suely e eu, o nome de Flávia. A segunda é Ana, a que veio depois, vou logo dizendo antes que ela brigue comigo.

À noite, no barzinho da Filosofia, a conversa do Walter podia ser outra. Olhava para o Vivaldo, seu interlocutor predileto na hora das brincadeiras, erguia o copo e dizia: Começo com um conselho de eficácia comprovada – não beba, meu caro, pois a bebida é um vício que nos torna demasiadamente lúcidos, e neste momento não convém ser assim – sejamos todos opacos e translúcidos, obliterados e burros. Walter Faria despediu-se do planeta sem tempo para dizer adeus.

Fui levado a esta tortuosa viagem puxada pela lembrança do Walter e pelos tanques guardados na memória, a partir da notícia de que Bolsonaro havia convocado um desfile de blindados da Marinha para Brasília. Queria atemorizar os demais poderes da Repúbli-ca e mostrar que pode virar a mesa e dar um golpe, como foi dado em 1964. Os milita-res, alguns promovidos a marechais, estavam sob suas ordens.

Preparei-me então para ver o ameaçador desfile de blindados pela Esplanada dos ministérios, e o que se viu foi um comboio de veículos decadentes da Marinha, arrastan-do-se pela Esplanada, soltando fumaça preta pelos canos. Uma ópera sórdida e dispen-diosa, repleta de suspeições e equívocos. Mesmo com os pés enfiados na lama, ele vai tentar novamente até ser contido. Talvez agora abandone os tanques e fique à espera das tropas do general Olímpio Mourão, a “Vaca fardada” que veio de Minas em 31 de mar-ço de 1964.

*Jornalista e escritor