Terrorismo gaúcho

Organizações secretas anticomunistas que atuaram no Brasil no início dos anos 1960 tinham semelhanças e identificação com a Ku Klux Klan

Terrorismo gaúcho

Terrorismo gaúcho

Organizações secretas anticomunistas que atuaram no Brasil no início dos anos 1960 tinham semelhanças e identificação com a Ku Klux Klan

| Foto: Reprodução / CP

 

Por

Veridiana Dalla Vecchia

Uma ordem secreta que atuou no Rio Grande do Sul no início dos anos 1960 pode ter tido ligações com a Ku Klux Klan (KKK). A organização, com ligação com outros grupos do país, realizava rituais secretos e atentados terroristas. A relação direta com a KKK, ou a existência de algum contato com o grupo racista dos Estados Unidos, ainda é conjectura, mas as características em comum são reais.

Mestre em história e autor do livro “Um espião silenciado”, Raphael Alberti descobriu a ligação entre um grupo do Rio de Janeiro, chamado “Ordem Suprema dos Mantos Negros” (OSMN), e o grupo gaúcho “Ordem Secreta dos Primadistas”, ou “Domus do Cruzeiro do Sul”. Segundo o historiador carioca, que hoje é professor em Caruaru (PE), a OSMN era uma organização paramilitar de extrema-direita que promoveu atentados no início dos anos 1960.

Alberti conta que se deparou com as organizações enquanto pesquisava para seu livro, uma pesquisa que durou cerca de 10 anos, desde quando estava na faculdade. A obra conta a história de um jornalista e agente duplo cearense chamado José Nogueira. Em contexto suspeito, ele caiu do apartamento em que morava em 1963, mas a polícia encerrou o caso um dia depois do ocorrido. Peritos afirmaram que, pelos ferimentos apresentados, inclusive com sinais de tortura, seria impossível ser um acidente. Nogueira era o principal informante de um deputado durante a CPI do Instituto Brasileiro de Ação Democrática. Em 1962, ele havia denunciado, no jornal Diário da Noite, a existência de uma Ku Klux Klan brasileira: a “Ordem Suprema dos Mantos Negros”, também conhecida como “Maçonaria da Noite”, sediada em Niterói (RJ). “Por volta de 2017, fui a Niterói e há até hoje o registro de pessoa jurídica dessa organização. O fundador era um ex-amigo do José Nogueira, chamado Joaquim Miguel Vieira Ferreira, vulgo Joaquim Metralha”, destaca Alberti.

O livro de Alberti conta que a reportagem de José Nogueira comprometia Metralha, denunciando crimes de racismo, terrorismo e formação de quadrilha. Nogueira tornava pública a existência da “Ordem Suprema dos Mantos Negros” e dizia que havia ramificações em cidades como Rio de Janeiro e Porto Alegre. Conforme o historiador, seus integrantes se inspiravam na seita estadunidense Ku Klux Klan, com a vestimenta de capuzes (que ao invés de brancos, como nos Estados Unidos, eram pretos) e organização de atos terroristas. A sede da entidade não era revelada para os adeptos, que eram levados de carro com os olhos vendados até as reuniões. Como ritual de iniciação, deveriam fazer um pacto de sangue e escapar de golpes de punhal aplicados por um membro mais antigo do grupo. “No início, eu achava que Ku Klux Klan era só um apelido que a imprensa tinha dado, que chamava assim porque vestiam os capuzes. Mas a carteirinha do Joaquim Metralha diz ‘templário da Ku Klux Klan’, não é um apelido que algum jornalista deu. E há coisas muito estranhas, como a presença dos cinco continentes. Na carteirinha está escrito África, Ásia, Europa, América e Oceania, dando a entender que é internacional. Os jornais da época falam que a KKK é internacional.”

Foi esse grupo que metralhou a sede da União Nacional dos Estudantes (UNE) no dia 6 de janeiro de 1962, junto com o Movimento Anticomunista (MAC). O MAC era uma organização armada de extrema-direita criada em 1961, no Rio de Janeiro (então estado da Guanabara), que visava combater o comunismo e que realizou vários atentados a bomba no estado.

Metralha, fundador da OSMN, era o principal suspeito de alvejar a organização estudantil no Rio de Janeiro. No mesmo dia, a “Ordem Secreta dos Primadistas” atacava em Porto Alegre a Rádio Farroupilha, pertencente ao grupo Diários Associados.

No Rio Grande do Sul, a “Ordem Secreta dos Primadistas”, conforme Alberti, impactou o governo de Leonel Brizola nos anos anteriores ao golpe civil-militar de 1964. Segundo o historiador, não foi possível descobrir a data exata de fundação da organização, mas jornais da época indicam que ela existia nas décadas de 1950 e 1960. Ela foi criada por Valdomiro Ramos Pacheco, que era professor, filósofo e criador do jornal A Voz do Povo, em Caxias do Sul. Pacheco chegou a ser membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), mas foi expulso. Ele era conhecido por ter criado uma doutrina denominada primadismo, que seria a base ideológica da “Ordem Secreta dos Primadistas”.

Os primadistas tinham uma revista chamada Renascimento, com sede na rua Voluntários da Pátria, e seus pensamentos e características foram publicados em artigos no jornal O Estado, de Santa Catarina, em agosto de 1958. Nos textos, os primadistas dizem se distanciar do comunismo e do capitalismo, que Alberti identifica, na realidade, a um combate ao liberalismo. Segundo o historiador, eles se colocavam como terceira via, mas não havia argumentação propositiva sobre ações políticas.

Embora os textos dos primadistas apontem para o pacifismo, Alberti destaca que o discurso não encontra coerência com as práticas. O seu braço paramilitar, e não apresentado ao público, a “Ordem Secreta dos Primadistas”, além de ser armamentista, demonstrava uma ideologia de extrema-direita, que voltava suas atenções para o combate ao comunismo e ao governo estadual, que defendia as reformas de base do presidente João Goulart.

O atentado à Rádio Farroupilha

Os jornais Correio do Povo e Folha da Tarde, do grupo Caldas Júnior, fizeram a cobertura do atentado à Rádio Farroupilha e acompanharam seus desdobramentos até o julgamento do caso pela Justiça. As publicações relatam que, em 6 de janeiro de 1962, homens encapuzados invadiram armados a emissora, no 22º andar da Galeria do Rosário, no centro de Porto Alegre. Alberti conta que o plano foi orquestrado por Pacheco. A ideia era tentar pacificamente ler um manifesto no horário do famoso programa “Repórter Esso”, mas, caso fossem impedidos, usar a força. Porém, o plano não saiu como o planejado. Ao se dirigirem ao estúdio, um guarda rodoviário que estava no local lutou com um dos invasores e o imobilizou. Durante a luta, sua arma disparou, assustando os outros. No total, havia oito participantes, alguns subiram à radio e outros ficaram de guarda.

O manifesto, posteriormente encontrado pela polícia debaixo do assoalho de uma casa na Rua Botafogo, dizia que o momento era de emergência e que “todos os brasileiros patriotas” deveriam abandonar sua indiferença, “dispondo-se a lutar organizadamente para salvar o Brasil do grave perigo” que atravessava, o comunismo. Uma testemunha relatou à polícia que o plano era organizar grupos de guerrilheiros, treinando-os nos arredores de Porto Alegre. Cada primadista comandaria dez homens. Raphael Alberti lembra que, nesse mesmo período, o MAC do Paraná treinava mais de 500 homens em Curitiba para ofensivas terroristas.

O governo do Estado não ficou indiferente ao atentado. No dia 10 de janeiro, Brizola declarou à imprensa: “Os verdadeiros democratas, todos que não admitem qualquer lesão ou sacrifício das conquistas democráticas do povo brasileiro, devem se manter atentos e receber estas ocorrências como uma advertência. O governo do Estado combaterá e fará por reprimir todo e qualquer ato de violência e terrorismo, venha de onde vier. O atentado contra a União Nacional dos Estudantes, como estes fatos ocorridos em Porto Alegre, bem como revelam as tendências e características do período que estamos iniciando”.

Conforme os participantes do atentado iam sendo detidos e interrogados, novas informações apareciam. No dia 27 de janeiro de 1963, a reportagem do Correio do Povo relata uma conversa com uma autoridade policial da Divisão de Ordem Política e Social (Dops). O policial diz ter ficado estupefato com o ritual complicado e a confusa filosofia primadista: “Entre outros detalhes, apurou-se que frequentemente se realizavam sessões secretas, as quais eram dirigidas por um colegiado que obedecia ao critério do rodízio. Usando capuzes e luvas, os membros da chamada seita dos primadistas discutiam quaisquer assuntos e expediam ordens. Essas deviam ser rigorosamente cumpridas e os indisciplinadas ou traidores corriam o risco de morte”. A matéria continua dizendo que, em certa ocasião, foi decretada a morte de um membro da organização, mas o executor, ao invés de levar a cabo, denunciou às autoridades policiais. Porém, devido à falta de provas sobre o relatado, nada foi possível fazer contra os indiciados. Em outro episódio, um dos primadistas foi incumbido de espancar violentamente outro membro da organização, mas também não o fez.

Alberti chama atenção para a atuação do Judiciário da época. Inicialmente, a Justiça negou a prisão preventiva dos envolvidos no ataque à rádio por terem “residência fixa e profissões definidas”. Depois, o então juiz da 5ª Vara Criminal absolveu os acusados pelo atentado à Rádio Farroupilha. O Correio do Povo publicou a sentença na época, na qual o juiz diz que não há como enquadrar os causados “nem mesmo como simples tentativa de crime” e que o ato dos primadistas foi visando “o resguardo das instituições sociais, políticas e religiosas”.

Referências e simbolismo

Conforme Alberti, o estudo desses movimentos secretos pode auxiliar em uma compreensão mais integral sobre órgãos paramilitares anticomunistas que agiam pela derrubada do presidente João Goulart no início dos anos 1960. Documento do Serviço de Informações Central do Rio Grande do Sul, de 13 de setembro de 1966, aponta que, em 1965, depois do Golpe de 1964, Pacheco, o chefe da “Ordem Secreta dos Primadistas”, endereçou carta ao secretário de Segurança Pública do Estado “solidarizando-se com a Revolução e tecendo severas críticas contra o comunismo e o ‘peleguismo’, particularmente contra aqueles que em 6 de janeiro de 1962, procuraram obstruir a ação de protesto e desmascaramento - quando tentava levar a efeito na Rádio Farroupilha - contra a infiltração comunista no governo de João Goulart e Leonel Brizola”.

Um ponto ainda a ser aprofundado em futuras pesquisas é se existia uma relação real entre esses grupos e a Ku Klux Klan. Atualmente, a partir do relato de Alberti, há evidências de que pelo menos um grupo brasileiro, a “Ordem Secreta dos Mantos Negros”, fazia referência direta à organização racista estadunidense. No entanto, além disso, o que se tem são aproximações relacionadas a símbolos e rituais.