Em meio a avanços autoritários, Unicamp reage e revoga honoris causa de Jarbas Passarinho

Ex-ministro da ditadura foi o proponente do Ato Institucional nº 5, que defendeu jogando "às favas os escrúpulos", e ministro perseguidor das universidades, com o Decreto 477.

Em meio a avanços autoritários, Unicamp reage e revoga honoris causa de Jarbas Passarinho
 

Em meio a avanços autoritários, Unicamp reage e revoga honoris causa de Jarbas Passarinho


29/09/2021 - Luciana Araujo

 

Ex-ministro da ditadura foi o proponente do Ato Institucional nº 5, que defendeu jogando "às favas os escrúpulos", e ministro perseguidor das universidades, com o Decreto 477.

Sessão semipresencial do Conselho Universitário da Unicamp nesta terça-feira, 28 de setembro (reprodução).

No dia em que um dos mais destacados ex-ministros da Fazenda na ditadura, Delfim Netto, afirmou que “voltaria a assinar o AI-5”, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) aprovou por unanimidade revogar o título de doutor honoris causa do ex-coronel Jarbas Passarinho, colega de equipe de Delfim e proponente do Ato Institucional mais draconiano dos anos de chumbo. A decisão aconteceu na sessão desta terça-feira, 28 de setembro, do Conselho Universitário da instituição, que concedera o título ao militar, que nunca teve nenhuma relação com a Universidade, em 1973.

A deliberação do CONSU da Unicamp se deu também onze dias após uma comissão especial na Câmara dos Deputados aprovar, por 22 votos a 7, o projeto de lei 1595/2019, apresentado pelo deputado bolsonarista Major Vitor Hugo (PSL-GO), que amplia tanto a noção de “terrorismo” no país que especialistas o apontam como uma ameaça qualquer manifestação de oposição ao governo. E apenas cinco dias após a base governista na Câmara ter promovido o que a Oposição chamou de “golpe” ao substituir oito parlamentares na comissão que analisava a ‘reforma’ administrativa, para assegurar a aprovação do texto que resgata a extinção da estabilidade funcional de servidores promovida pelo AI-5.

Há anos a comunidade universitária da Unicamp buscava revogar a nomeação, que já havia sido pautada em 2014, sendo então derrotada por um voto. No final da manhã desta terça-feira, os 74 conselheiros presentes manifestaram-se pela retirada da honraria. Eram necessários 51 votos, dois terços do colegiado.

O reitor da Unicamp, Antonio Meirelles, afirmou que a decisão é uma “reparação histórica”. Meirelles defendeu ainda que ficasse evidenciado “que aquela nomeação foi decidida em função de um contexto, não tendo relação com os méritos necessários previstos no estatuto. Ao revogar o título estaremos abraçando a nossa história. Uma história de uma universidade comprometida até a raiz com a democracia”, disse, conforme relato da Agência de Notícias da Universidade.

Desde que foram encerrados os trabalhos da Comissão da Verdade “Octávio Ianni”, as entidades representativas dos segmentos da comunidade universitária viram reforçada a compreensão de que o título fora concedido ao então ministro da Educação da ditadura, em 30 de novembro de 1973, para evitar maiores interferências ou mesmo intervenção contra a Universidade. A Comissão Octávio Ianni apurou, entre 2013 e 2014, arbítrios e violações de direitos humanos cometidos durante o regime dos quartéis na instituição.

Jarbas Passarinho (foto) era ministro do Trabalho quando propôs o AI-5, e dirigia a pasta da Educação quando foi laureado pela Unicamp. Como ministro da Educação, Passarinho foi responsável também pelo Decreto 477, de 1969, que inaugurou uma onda de perseguições dentro das universidades do país, que impôs demissões sumárias de dirigentes sindicais e pesquisadores, além da expulsão de estudantes.

“Foi uma vitória importante. Em 2014 não passou por um voto. Essa votação reflete a preocupação com a escalada golpista que assola o país, com Bolsonaro a frente, e uma demarcação da Unicamp com a defesa da democracia”, afirmou à reportagem o diretor do Sindicato dos Trabalhadores da Unicamp João Souza ‘Kiko’.

“Revogar o título honoris causa conferido a Jarbas Passarinho, um dos principais articuladores do AI-5, é muito importante não só para a Universidade, mas para o pais e para a sociedade brasileira, especialmente no atual cenário em que vivemos ações de apologia à ditadura e à restrição de liberdades. Estamos muito felizes”, falou também à reportagem do Sintrajud a professora Silvia Gatti, presidente da Associação dos Docentes da Unicamp. A Adunicamp coordenou o grupo de trabalho que produziu um dossiê sobre a contrassenso da homenagem a um dos agentes da ditadura que mais perseguiu opositores e a educação (leia aqui).

Um dos articuladores do golpe que, em 1964, derrubou o presidente João Goulart e abriu os 21 anos de ditadura empresarial-militar, ficou famosa a frase de Passarinho durante a reunião que discutiu a edição do AI-5. Naquele 13 de dezembro de 1968, gravado, o coronel admitiu que o Ato era um salto de qualidade no endurecimento da ditadura e defendeu que fossem “às favas” naquele momento “todos os escrúpulos de consciência”.

Editado o ato que cassou o instituto do habeas corpus para acusados pela Lei de Segurança Nacional; a estabilidade de servidores públicos; a vitaliciedade de juízes e a imunidade parlamentar, os desaparecimentos e torturas passaram a ser práticas de Estado em larga escala.

“Em um país cuja transição da ditadura foi canalizada para um acordo por cima, sem o devido acerto de contas com um passado que — por isso mesmo – volta a nos assombrar, decisões como essa são indispensáveis na luta para remover o entulho autoritário ainda persistente e rechaçar por completo intentos e movimentações golpistas como a de Bolsonaro e seus aliados, a serviço de um modelo de sociedade retrógrado, desigual e violento”, analisa o servidor do TRT-2 e diretor do Sindicato Tarcisio Ferreira.

Em abril deste ano a Universidade Federal do Rio de Janeiro (URFJ) foi a primeira do país a revogar o título honoris causa conferido a Jarbas Passarinho, também em 1973. Mais de dez instituições universitárias deram o mesmo título ao coronel do Exército, que morreu em 2016. Para a diretoria do Sindicato, a revisão de tais títulos é uma importante conquista da sociedade brasileira. Segundo a última pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha, dois em cada três cidadãos vê ameaças à democracia nas atitudes e manifestações do governo de Jair Bolsonaro.