Casas de apoio às mulheres: bases que resistem às falhas da política brasileira

Direitos Humanos, Direitos sociais, Minorias sociais, Violência & Segurança Pública
Casas de apoio às mulheres: bases que resistem às falhas da política brasileira
Data: 09/02/2025Autor: Chico Sant'Anna0 Comentários

O Brasil carrega o peso de 1.467 mulheres mortas em 2024, e somente no Distrito Federal, 23 vidas que ansiavam estudar, trabalhar, acompanhar a(o) filha(o) crescer, ou mesmo nascer, partiram sem chance de adeus. Segundo a Secretaria de Segurança Pública do DF, 94% das vítimas eram mães. Em Brasília, Casa Ieda Santos Delgado é alternativa para suporte emocional, jurídico e psicológico frente à ausência do compromisso efetivo do poder público no acolhimento às vítimas de violência
Texto e fotos de Lorena Rosa*
Vanessa** combatia guerras todos os dias. Sem armas, se equipava com o silêncio de escape na própria casa. Marcas na pele não eram estampadas, apenas as da alma, feridas ininterruptas. Ele a amava muito, dizia, mas precisava seguir outros planos de vida que a deixavam no vazio da indiferença e no abafamento da dor. Vanessa foi vítima de violência doméstica aos 19 anos pelo ex-namorado. O ciclo se repetiu vezes seguidas até perceber a realidade que a cercava.
Assim como ela, milhares de mulheres são afetadas diariamente pela violência de gênero. Foram 259 mil vítimas apenas em 2024, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, e aumento de 33,8% nos casos de violência psicológica. Reconhecer atos de agressão envolve uma consciência tardia, pois há séries de dúvidas que inviabilizam a ação de denúncia. O medo influencia em qualquer decisão a ser tomada.
“Ele queria que eu cedesse: ‘Você não confia em mim?’. Tudo foi feito minuciosamente, ele sabia acionar gatilhos em mim”, relatou Vanessa ao expor manipulação emocional feita pelo ex-namorado e a insegurança ao findar um relacionamento pelo julgamento alheio. “No imaginário coletivo, a mulher tem o poder de sair, se ela quiser, mas é muito difícil sair dessa situação”. Hoje ela trabalha com projetos sociais para ajudar outras pessoas a saírem dessa condição, um deles é na Casa de Referência Ieda Santos Delgado.
Em meio a um cenário de agressão constante às mulheres, no miolo da capital federal, a Casa Ieda está erguida na Quadra 307 da Asa Sul, em Brasília. Por lá, são acolhidas vítimas de violência doméstica e mulheres em situação de vulnerabilidade, como alternativa aos equipamentos públicos que operam em meio ao sucateamento assistencial. O espaço nasceu a partir de uma ocupação social, em 2022, da antiga Casa de Cultura do Guará, abandonada há 13 anos.
Realizada por um grupo de 15 integrantes do Movimento Olga Benário. O coletivo político foi fundado em 2011, na 1ª Conferência Mundial de Mulheres de Base, na Venezuela, por mulheres brasileiras que defendem o fim da violência, da opressão e exploração da mulher.
A Casa Ieda é a 13ª ocupação do Olga Benário e a primeira no Distrito Federal a conquistar sede após reunião com a Superintendência do Patrimônio Público da União (SPU). Em 27 de julho de 2024, no Fórum de Apoio ao Programa de Democratização de Imóveis da União do Distrito Federal, o imóvel foi cedido.


Em novembro do ano passado, o espaço recebeu Priscila Barbosa, artista plástica brasileira, para a feitura de um mural representativo aos direitos das mulheres. A arte transmite a identidade local e se mostra como artivismo (expressão artística combinada ao ativismo).
“Eu parto do princípio de que cada mural é pensado para o lugar que vai ocupar, acredito em incorporar elementos que gerem identificação do público com a pintura. A arte urbana é uma expressão que não só interage com o cotidiano das pessoas, mas também as insere no processo de criação. Se torna uma ferramenta para criar diálogos potentes partindo de experiências compartilhadas entre artista e comunidade”, contou Pri Barbosa.
Casas de apoio e o Movimento Olga no DF

Casas de referência são fundamentais para garantir o acesso rápido às redes de ajuda e encaminhamentos às redes de apoio. Para além dos esforços emergenciais, esses lugares oferecem atividades coletivas que estimulam a escuta ativa, como rodas de conversa, oficinas de lazer e orientação política para desvendar as leis de proteção à mulher. Hoje, a Casa Ieda tem seis técnicas fixas: duas psicólogas, duas advogadas, uma agente e uma assistente sociais. Elas têm preparo para agir efetivamente em casos urgentes.

Ao todo, o Movimento Olga Benário se organiza em 21 estados e no Distrito Federal, com 26 casas de referência espalhadas pelas cinco regiões do país, como a Casa Tina Martins, em Belo Horizonte, a ocupação Maria Lúcia Petit, em Campinas (SP) e a Casa Almerinda Gama, no Rio de Janeiro. Elas funcionam sem auxílio financeiro do Estado, os custos são supridos por autossustentação e doações. Os nomes das organizações homenageiam figuras femininas importantes na história do Brasil.
Violência contra a mulher
Violência doméstica é qualquer conduta que prejudique o bem-estar da mulher ou lhe cause lesão, sofrimento e morte. Nada justifica a agressão e quaisquer danos à mulher. Não existe apenas agressão física. Na Lei Maria da Penha 11.340/06, há mais quatro tipos incidentes: moral, psicológica, patrimonial e sexual. Independentemente dos enquadramentos, nada impede que os crimes ocorram de forma simultânea ou isoladamente. De qualquer maneira, a denúncia é necessária e constitui violação dos direitos e da dignidade humana.
Caso você tenha sofrido ou conheça alguma mulher vítima de agressão, não se cale. Procure ajuda! Para ser acolhida na Casa Ieda Santos Delgado, vá diretamente à Casa, ou entre em contato pelo WhatsApp: (61) 99156-7450 ou via e-mail: [email protected]. Você não está sozinha.

Violência física é especificada quando a ação fere a integridade ou saúde corporal feminina, como empurrões, murros, enforcamento, apertos no braço, perfurações e ferimentos com objetos.

Considera-se violência moral qualquer ato de injúria, difamação ou calúnia contra a vítima, por exemplo, acusação de traição, proibição de estudo, trabalho ou se aproximar de amigos e familiares e menosprezo da autoestima.
A violência psicológica surge discreta, muitas vezes, o que dificulta a descoberta em tempo. São típicas as condutas motivadoras de danos emocionais, xingamentos, perturbação ao desenvolvimento da mulher, ou qualquer ação de controle à vida.
A violência patrimonial é entendida por retenção de bens, recursos econômicos, destruição de objetos pessoais, ou ainda utilização ilegal de documentos.
Já a violência sexual toda insinuação, tentativa ou ato sexual indesejado, ou comportamento que constranja a manter ou participar de relações sexuais a partir de ameaça ou uso de força, que abrange estupro (inclusive, em um relacionamento), impedir uso de métodos contraceptivos, forçar à gravidez e obrigar a mulher ao ato sexual que lhe cause repulsa ou desconforto.
O Brasil carrega o peso de 1.467 mulheres mortas em 2024, e somente no Distrito Federal, 23 vidas que ansiavam estudar, trabalhar, acompanhar a(o) filha(o) crescer, ou mesmo nascer, partiram sem chance de adeus. Segundo a Secretaria de Segurança Pública do DF, 94% das vítimas eram mães.
Recursos governamentais de apoio à mulher
Apesar das falhas no acolhimento de vítimas pelo Governo Federal, alguns equipamentos públicos são direcionados para assistir mulheres em situação de violência. Natty Vieira, 37 anos, conselheira tutelar do Distrito Federal e assistente social voluntária na Casa Ieda, trabalha com soluções de justiça social para crianças, adolescentes e mulheres em condição de vulnerabilidade. Ela é graduada em serviço social por acreditar que seja uma oportunidade de mudar a realidade.
“O serviço social não veio como resposta, veio com o questionamento dessa arquitetura que sempre me incomodou muito. No terceiro semestre da faculdade tive a oportunidade de estagiar dentro da comunidade Santa Luzia, na Estrutural. Estávamos a 15 minutos do Palácio do Planalto, sabe. Temos que usar nossa indignação como ação”, afirma Natty ao contar a experiência inicial com causas sociais e o desejo de transformação.
“Só iremos conseguir enfrentar as questões sociais neste formato de roda, na perspectiva coletiva. Me encantei pelo Movimento Olga pela proposta de construir diálogo, para aprender e se organizar intelectualmente para debater isso, e é o que vejo no Conselho Tutelar, mulheres feridas emocionalmente, que não têm esse espaço de escuta e acolhimento. O início da violência é solitário”, define a assistente social.
O Distrito Federal tem serviços de acolhimento, mas com operações semelhantes em muitas secretarias, resultando na disparidade e precarização no cumprimento de ações efetivas. “É preciso espaço para essa mulher se expressar e entendermos como vamos trabalhar, porque não tem como ter um protocolo, estamos falando de gente e de histórias. Sinto uma urgência na proteção da mulher no DF. Para enfrentar, tem que prevenir”, declara Natty.
A Medida Protetiva de Urgência (MPU) é eficaz e pode ser solicitada na delegacia no momento de registro do Boletim de Ocorrência, que restringe o acesso do agressor e seus familiares à vítima. Também há o programa Prevenção Orientada à Violência Doméstica, o Provid, que pode ser solicitado à Polícia Militar do DF, no número 190, ou à Central de Atendimento à Mulher, 180. É um serviço de policiamento ao redor da casa.
Outros equipamentos disponíveis são a Casa da Mulher Brasileira (acolhe as vítimas até 48 horas), o Centro Especializado de Atendimento à Mulher (triagem com documentação básica), Espaço Acolher (acompanhamento), Direitos Delas (apoio psicológico e jurídico), as Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher (Deam), na Defensoria Pública ou, ainda, no Centro de Referência da Assistência Social (CRAS). A Lei 14.674/23 garante a solicitação do aluguel social e a 7.441/2024 estabelece gratuidade no transporte público por no mínimo seis meses, que devem ser requeridos pela Secretaria da Mulher, mas que precisam de mais esforços para implementação, sobretudo, o último.
“Temos uma Secretaria da Mulher inerte, invisível, porque temos 23 mulheres mortas. A forma como o GDF conduz a violência contra a mulher é insensível. O Movimento Olga no DF faz com que a mulher seja fiscalizadora também, como a Patrulha Olga, que faz varreduras na legislação e checa se está em vigência”, afirma Natty Vieira ao questionar a política instaurada na capital.

*A autora é estudante da disciplina Apuração Jornalística, ministrada na Faculdade de Comunicação (FAC-UnB), pela professora e jornalista Fernanda Vasques Ferreira, responsável pela supervisão dos textos ora publicados. Esse espaço no blog Brasília, por Chico Sant'Anna, faz parte de uma parceria com o objetivo de que os futuros profissionais comecem a ensaiar o seu olhar e técnica jornalística. O intuito é fomentar o jornalismo investigativo e de análise,fugindo do modelo declaratório e baseado apenas em notas oficiais e press releases. Os leitores do blog terão assim a possibilidade de apreciar uma agenda temática diferenciada, como é a característica desse espaço, selecionada pelos próprios universitários dentro dessa infinidade de temas que acontecem na Capital Federal. Esse selo identificará esses conteúdos.
**Nome fictício utilizado a pedido de uma mulher vítima de violência doméstica que não quis se identificar na reportagem.