As ideias e as dúvidas
Quando o desenvolvimento do capital de um país passa a ser subproduto das atividades de um cassino, a obra sairá provavelmente torta
As ideias e as dúvidas
Escrito por Luiz Gonzaga Belluzzo
Quando o desenvolvimento do capital de um país passa a ser subproduto das atividades de um cassino, a obra sairá provavelmente torta
CAMISA DE FORÇA - Economistas estabelecidos buscavam demonstrar a impossibilidade de acontecer aquilo que, de fato, ocorria
Na terça feira 23 de agosto, foi-me concedida a ventura de reencontrar André Lara Resende em um debate na Unicamp. Companheiro de jornada nas desventuras do Plano Cruzado, André está sempre inquieto e desconfortável em camisas de força intelectuais. O título de seu novo livro – Camisa de Força Ideológica: a Crise da Macroeconomia – aponta para a inconformidade com o aprisionamento dos economistas nos espartilhos da teoria dominante.
Depois de consistente argumentação, André reafirma no capítulo 17: "A teoria monetária convencional está equivocada. Apesar de ter sido sistematicamente revisada desde a formulação original da Teoria Quantitativa da Moeda por David Hume, no século XVIII, até o desaparecimento completo da moeda e dos mercados financeiros nos modelos macroeconômicos contemporâneos, a teoria monetária continua em desacordo com a evidência dos fatos. Justamente quando os Bancos Centrais estão no auge de seu poder, a teoria macroeconômica perdeu o rumo".
Ao debater com André, não resisti a liberar de meu espírito as irreverências de John Maynard Keynes, o imoralista anti-vitoriano. O imoralismo keynesiano atingiu o ápice quando definiu a economia como uma ciência moral empenhada em buscar o bem-estar de mulheres e homens.
A luta de Keynes para "escapar das velhas ideias" está exposta no prefácio da Teoria Geral. Keynes aponta com clareza as diferenças de concepção e de método entre o Tratado Sobre a Moeda e o novo livro: "A relação entre este livro [Teoria Geral] e o meu Tratado Sobre a Moeda, que publiquei há cinco anos, provavelmente é mais clara para mim do que para os demais; e o que do meu ponto de vista representa uma evolução natural das ideias que tenho seguido por vários anos pode parecer aos leitores uma confusa mudança de visão. Quando comecei a escrever meu Tratado Sobre a Moeda, eu seguia os caminhos tradicionais que consideram a influência do dinheiro como algo que deveria ser tratado separadamente das leis da oferta e da procura. Ao terminar o Tratado, havia realizado alguns progressos no sentido de transformar a teoria monetária em uma teoria da produção como um todo. No entanto, minha submissão às ideias preconcebidas revelou-se uma monumental falha das partes teóricas do trabalho; falhei completamente ao tratar dos efeitos das mudanças no nível da produção. As chamadas "equações fundamentais" eram fotografias instantâneas do sistema econômico, tomadas como suposição de uma produção determinada de antemão. Procurava demonstrar, partindo desse suposto, de que maneira poderiam se desenvolver certas forças que provocam desequilíbrio nos lucros, requerendo, assim, mudanças no nível da produção. Por oposição à fotografia instantânea, a dinâmica resultava incompleta e extraordinariamente confusa".
Entre o Tratado Sobre a Moeda e a Teoria Geral, irrompeu a Grande Depressão. Essa intrusão deixou em frangalhos as certezas dos economistas que buscavam cuidar da moeda e do crédito com as hipóteses que premiavam o equilíbrio e a estabilidade.
Os economistas estabelecidos, com nome e endereço, tratavam simplesmente de demonstrar a impossibilidade de acontecer o que estava, de fato, acontecendo. "Meu supervisor ensinava que é logicamente impossível ocorrer o desemprego, porque a Lei de Say ensina que a oferta cria sua própria procura", relembrava Joan Robinson.
Na melhor das hipóteses, os entendidos da época admitiam que fatores estranhos ao funcionamento normal de uma economia capitalista "competitiva" – salários excessivamente elevados e resistentes à queda ou à imprudência na condução dos negócios bancários – eram os responsáveis pela situação. Afinal, todos haviam aprendido e ensinado que o sistema era autoajustável, dotado de forças que garantiam, automática e suavemente, a manutenção do equilíbrio e o pleno emprego. Portanto, se havia desemprego em massa e bancarrota financeira, os culpados deveriam ser buscados entre os sindicatos gananciosos ou entre os banqueiros imprudentes e não menos gananciosos.
Quando lavrava este "lamentável estado de confusão" – as palavras são da professora Joan Robinson –, Keynes, matemático de formação e humanista de espírito, debatia com um pequeno e seleto grupo de docentes da Universidade de Cambridge as limitações da ortodoxia e ensaiava a busca de outro veio explicativo para as flutuações da economia capitalista. Desse grupo participavam Piero Sraffa, Richard Kahn, James Meade, Austin Robinson e Joan Robinson.
O conjunto de ideias apresentado na Teoria Geral era particularmente corrosivo para o pensamento convencional. Keynes argumentava que, numa economia capitalista dotada de complexas e sofisticadas instituições financeiras, capazes de criar poder de compra além das disponibilidades correntes, não é necessária a existência de uma poupança prévia para que o investimento se efetive. O investimento depende das expectativas de lucro dos empresários e da disposição dos gestores das finanças em acreditar na correção daquelas estimativas e adiantar o dinheiro suficiente para a construção de instalações, compra de máquinas, aquisição de matérias-primas, contratação de trabalhadores etc.
Keynes inverte, dessa forma, as relações de determinação entre poupança e investimento. São as variações no investimento, exprimindo maior ou menor confiança dos empresários na obtenção de lucros no futuro, que provocam alterações no nível de renda e de consumo, restando a poupança como um resultado das flutuações da renda agregada.
No capítulo XII da Teoria Geral – Expectativas de Longo Prazo, Keynes adverte os crentes na estabilidade dos mercados financeiros:
"À medida que progride a organização dos mercados de investimento, aumenta o risco de um predomínio da especulação. Num dos maiores mercados de investimento do mundo, a saber, o de Nova York, a influência da especulação é enorme...
Os especuladores podem não causar dano quando são apenas bolhas numa corrente estável de empreendimento. Mas a situação torna-se grave quando o empreendimento se converte numa série de bolhas no turbilhão especulativo. Quando o desenvolvimento do capital de um país passa a ser um subproduto das atividades de um cassino, a obra sairá provavelmente torta".
Fonte: Carta Capital