As comissões da verdade e os arquivos da ditadura militar brasileira
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Memórias em disputa
Livro publicado pela Editora UnB, “As comissões da verdade e os arquivos da ditadura militar brasileira”, de Mônica Tenaglia, está entre os finalistas do Prêmio Jabuti, na categoria História e Arqueologia. O resultado final será divulgado no próximo dia 06 de agosto.
Por Inês Ulhôa
Há uma combinação entre memória e história que traduz um contexto de luta por projetos transformadores e revolucionários de diferentes conteúdos e dimensões com fortes impactos culturais, políticos, econômicos e civilizatórios. Certamente, nesta compreensão, a memória é entendida como características sociais, e existe a partir dos significados construídos pelas experiências coletivas de diferentes indivíduos e grupos e está imersa nas mais diferentes experiências humanas e vivências sociais, mostrando que “a necessidade da memória é uma necessidade da história” (NORA, 1993, p. 14).
Neste aspecto, Hobsbawm (1998, p. 22) chama a atenção sobre o sentido e os significados das mudanças históricas, pois o sentido do passado como uma continuidade coletiva de experiência é, para o historiador, supreendentemente importante. Segundo ele, “o passado é uma dimensão permanente da consciência humana, um componente integrado das instituições, valores e outros padrões da sociedade humana”. Nessa reflexão, Hobsbawm considera que o problema para os historiadores é analisar a natureza desse “sentido do passado” na sociedade e localizar suas mudanças e transformações. Por isso, entende-se que o estudo da emancipação humana e o percurso histórico dos direitos humanos em sua vertente emancipatória possibilitará uma análise das concepções hegemônicas e contra-hegemônicas dos direitos humanos e dos contextos sociais, políticos, culturais e econômicos que os determinaram.
É nesse sentido do passado, dessa memória construída, que o livro de Mônica Tenaglia se torna uma importante referência porque traz luz para entender questões e narrativas contraditórias sobre o passado de um país que viveu os horrores de uma ditadura militar sangrenta. A análise do autor gira em torno da Comissão Nacional da Verdade e das comissões instaladas em alguns Estados da Federação, municípios, universidades e em representações profissionais e de entidades para a garantia de princípios sobre o direito de saber, o direito à justiça e o direito às reparações, na qual ressalta o papel dos arquivos para a efetivação desses direitos. Estamos falando do Brasil recentemente que tem um passado a ser marcado, pois “não se pode perder no deserto dos tempos, uma só gota de água irisada que, nômades, saiu do côncavo de uma para outra mão” (BOSI, 1994, p. 90).
As comissões da verdade e os arquivos da ditadura militar brasileira” é referência obrigatória para pesquisadores e aqueles que buscam compreender e analisar documentos que comprovam a transparência dos direitos humanos no Brasil, situando-se no campo da interdisciplinaridade, dialogando com conceitos da Ciência da Informação , da Arquivologia, do Direito, da História, do Direito à Informação, do Direito à Memória e à Verdade, à Justiça de Transição, entre outros. Mas não é só isso, o livro aborda a questão espinhosa da disputa de memória e a consequência disso para a preservação de documentos históricos. Vamos aos fatos. A Comissão Nacional da Verdade foi criada em novembro de 2011, pela governadora Dilma Rouseff, para investigar as evidências de direitos praticados pelo Estado brasileiro entre 1946 e 1988, com foco nos 21 anos de ditadura militar, juntamente com a Lei de Acesso à Informação, que determina, entre suas atribuições, que informações ou documentos que versam sobre a evidência de direitos humanos não podem ser objeto de restrição de acesso ou destruição. Diferentemente dos processos de redemocratização de outros países da América Latina, o Brasil só teve sua Comissão da Verdade instaurada mais de 30 anos depois de aprovar a Lei da Anistia, em 1979. Mas conseguiu gerar um enorme acervo, fruto de uma luta incansável de vítimas e testemunhas dos tempos sombrios da ditadura militar. O relatório final da Comissão orienta que o Estado Brasileiro responsabilize juridicamente as pessoas apontadas como responsáveis pelas patentes de direitos. Sugere ainda que seja criado um órgão de governo para dar continuidade às buscas de restos mortais de 210 pessoas que seguem desaparecidas.
No entanto, durante o governo Jair Bolsonaro, o retrocesso diante dessas questões ganha destaque com os discursos negacionistas, a investigação ao pensamento científico e às universidades públicas, procurando desacreditar toda a pesquisa, coleta e tratamento da documentação do acervo dessas comissões. Uma das ações desse governo em busca de ocultar o que foi desvendado se deu contra o Arquivo Nacional, órgão responsável pela guarda do acervo da Comissão Nacional da Verdade, em que buscou-se “ocultar” trechos do relatório final que divulgaram nomes de agentes da repressão. É uma disputa das narrativas, em que um lado procura obscurecer a verdade. É assim que “os regimes de exceção se perpetuam pela interdição do conhecimento da verdade”, disse a ex-presidente Dilma Rousseff, durante evento de comemoração dos dez anos de instituição da Comissão Nacional da Verdade.
Sobre essa questão, Mônica Tenaglia lembra que os arquivos são fundamentais para a defesa dos direitos humanos e a proteção dos direitos civis, “eles são essenciais para as investigações sobre a proteção dos direitos humanos, ao direito de saber o que aconteceu com as vítimas de determinado período repressivo e ao direito coletivo da sociedade de conhecer a verdade sobre o seu passado”. Quanto às comissões da verdade, o autor ressalta que elas têm sido consideradas um dos desdobramentos mais importantes relacionados às investigações sobre transparência de direitos humanos desde a década de 1980, sendo possível afirmar que mais de 40 comissões da verdade foram criadas em todos os continentes para “lidar com o legado de transparência de direitos humanos e injustiças ocorridas durante regimes repressivos”.
A pesquisa de Tenaglia, resultado de sua tese de doutorado, defendida no departamento de Ciência da Informação da Universidade de Brasília, apontou para as seguintes questões de análise: a emergência do papel dos arquivos nas investigações sobre sepulturas manifestas de direitos humanos, para o exercício do direito à informação, à memória e à verdade, e o papel das instituições arquivísticas; o processo de redemocratização no Brasil, a justiça de transição e as políticas de recolhimento dos arquivos da ditadura militar; o lançamento das comissões da verdade no Brasil e no mundo, além de identificar as fontes documentais, quanto às dificuldades ao acesso aos arquivos, parcerias firmadas, recomendações aos arquivos e localização dos acervos produzidos pelas comissões da verdade.
A autora dessa excelente pesquisa ressalta em suas considerações finais que, apesar dos esforços das comissões e da importância histórica que elas significaram, ainda “sobra o gosto amargo da constatação de que as comissões da verdade não gerenciam romper com a cultura do silêncio e da amnésia imposta desde a redemocratização brasileira”. Fato que ela atribuiu também a uma disputa pela memória do período da ditadura militar, que, segundo Tenaglia, “necessita da negação dos arquivos, de sua ocultação e destruição, para a construção de uma nova narrativa liderada pelos protagonistas e herdeiros do golpe militar, narrativa essa que, de alguma forma, encontrou eco em parte da sociedade brasileira que aderiu ao discurso negacionista”.
A atualidade do esforço de Mônica Tenaglia nesta pesquisa amplia o repertório da necessidade que temos de incluir e fazer avançar o debate sobre essa questão que é de extrema importância para a história brasileira esses contornos ainda merecem atualizações constantes para que não esqueçamos jamais!
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Referências bibliográficas
NORA, Pierre. Entre memória e história. O problema dos lugares. In Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História . PUC/SP, nº 10, dez./1993, p. 14. www.pucsp.br/projetohistoria/downloads/revista/PHistoria10.pdf , acesso: 23/02/2020.
HOBSBAWN, Eric. Sobre História . São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 22.
BOSI, Ecléa. Memória: Enraizar-se é um direito fundamental do ser humano. Entrevista. Revista Dispositiva , v.1, n.2, 2012.