A única coisa que Lula certamente não poderá fazer em seu governo
Chegando para um terceiro mandato, há um problema grave que o presidente eleito sabe desde já que não conseguirá resolver, de forma alguma
A única coisa que Lula certamente não poderá fazer em seu governo
Chegando para um terceiro mandato, há um problema grave que o presidente eleito sabe desde já que não conseguirá resolver, de forma alguma
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O mergulho do Brasil no abismo do ódio e do sectarismo sem limites da extrema direita chegará, pelo menos oficialmente, ao fim em breve. Em 1° de janeiro de 2023, ou seja, daqui a três semanas, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) iniciará seu governo, escolhido por 60.345.999 cidadãos e cidadãs brasileiras, que representaram 50,90% dos eleitores, e a expectativa dentro e fora do país é de que o gigante sul-americano recupere seu protagonismo e que o povo, que atravessa a maior crise socioeconômica da história, possa ver suas condições de vida melhorarem. Isso, aliás, foi o que fez o petista voltar ao cargo 12 anos após deixá-lo.
Lula precisará recuperar uma economia arrasada, um meio ambiente degradado, uma reputação internacional demolida, uma saúde sucateada, uma educação falida e sem qualquer recurso e, além disso, superar uma sociedade dividida e em grande medida mergulhada no ódio cego fomentado por Jair Bolsonaro (PL). Só que há um problema grave, de primeira hora, que o futuro governante não poderá resolver, e ele sabe disso de antemão: o golpismo e a insubordinação perigosíssima e ameaçadora dos militares.
Se puxarmos a linha do tempo da história recente, veremos que os oficiais generais que hoje atuam abertamente de forma política, se ajoelhando diante de Bolsonaro e de seus arroubos autoritários e da sua verve ditatorial, jamais deixaram de se insurgir e atuar para minar governos instalados depois da Ditadura Militar (1964-1985). Claro, isso sempre ocorreu de forma menos intensa e com ações menos explícitas.
Desde a chegada de Lula à Presidência da República pela primeira vez, em 2003, a geração de oficiais generais do Exército, da Marinha e da Aeronáutica daquele momento sempre torceu o nariz para o líder sindicalista de esquerda. Há um notório ranço autoritário que faz esses homens, tantas décadas depois do infame golpe de Estado que depôs João Goulart, ainda se identificarem com o discurso bocó de “ameaça comunista”. Ainda que uma pequena fração desses militares realmente reconheça quais foram os verdadeiros motivos que levaram àquela ruptura institucional, a imensa maioria deles arrota uma cansativa e tosca cantilena de “fazer evitar que o Brasil virasse uma grande Cuba”.
Lula ficou oito anos no poder e Dilma Rousseff outros seis, até ser derrubada por um golpe parlamentar que em grande medida foi também tramado, avalizado e comemorado pela caserna. Quando olhamos à luz da História, é muito intrigante o fato de os dois ex-presidentes nunca terem conseguido acabar de uma vez por todas com esse golpismo escandaloso, explícito e vergonhoso que habita os quartéis brasileiros há muito tempo.
Não faz muito tempo (na verdade, aproximadamente um ano e meio) que o ex-chanceler Celso Amorim, que também comandou o Ministério da Defesa no governo Dilma, disse numa entrevista Deutsche Welle (DW) que “nosso erro (das gestões petistas) foi ter tido condescendência” com os militares que agora se arvoram e se acham donos do Brasil sob a batuta de Bolsonaro. Ele fez tal afirmação sobretudo no contexto da atuação e do protagonismo político do ex-comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, um notório golpista insubordinado que evoca um espectro tão conservador e autoritário que parece chegar ao presente diretamente de uma máquina do tempo, vindo de 1964.
Villas Bôas, numa interpretação simplista e simplificada, realmente foi quem trouxe o golpismo aberto das Forças Armadas para o presente. Suas interferências descaradas e nojentas em pleno curso da democracia encheram subordinados de “valentia”, como os generais Augusto Heleno, Walter Braga Netto, Luiz Eduardo Ramos, Eduardo Pazuello, entre outros. Essa geração que vinha logo a seguir chegou ao núcleo do poder com a eleição desastrosa de Bolsonaro em 2018 e desde então inferniza o país com duas ameaças à ordem democrática, isso para não falar na visão de mundo estreita, cafona e risível que tentam enfiar goela abaixo do Brasil.
Quando em 2016, em meio à implosão do segundo mandato de Dilma Rousseff, o PT, como partido político instituído legalmente e detentor do mandato presidencial, quis por meio de uma resolução pautar a mudança dos currículos das academias militares, responsáveis por formar oficiais que um dia controlarão os três ramos da Defesa, uma verdadeira avalanche de ataques vindos da caserna se registrou. Villas Bôas com seu golpismo peculiar foi o primeiro a vir com as ameaças, seguido pelos chefes da Marinha e da Aeronáutica. A bem da verdade, as rusgas já estavam estabelecidas oficialmente desde 2011, quando no início do primeiro mandato de Dilma foi instituída a Comissão Nacional da Verdade.
Diferentemente de países como o Chile, a Argentina e o Uruguai, em que o golpismo e o saudosismo sádico das ditaduras foram varridos significativamente das Forças Armadas (restando algo residual), por aqui esse tipo de admiração pelo absurdo e pelo culto e adesão aos argumentos cínicos do passado segue inquebrantável.
Nos dias correntes, já com Lula eleito, o presidente, seus eleitores e a imprensa se veem novamente frente a frente com essa gente intrometida. Parece que generais, almirantes e brigadeiros não compreendem que as Forças Armadas, em qualquer lugar do mundo civilizado, estão submetidas ao poder civil e que cabe aos responsáveis pelo governo e pelo Estado mantê-las sob controle, preservando seu caráter apolítico, disciplinado e neutro.
Os atuais comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica já correram para avisar que deixarão seus postos antes da posse de Lula e claramente sinalizaram que “não querem prestar continência” ao petista. Parece mentira, mas os sujeitos ainda não compreenderam quais são os seus lugares. Mesmo com o anúncio de José Múcio como futuro ministro da Defesa, nome que os generais “aceitaram” (como se tivessem que aceitar alguma coisa), não há no horizonte qualquer saída para essa perturbação nacional.
Com décadas de um ensino que deturpa e deforma a cabeça dos jovens cadetes, imposto por um discurso golpista, mofado e de macartismo psiquiátrico e anacrônico, toda uma linhagem de oficiais, dos tenentes mais recém-saídos das academias até a próxima de generais a serem promovidos, está condenada e as interferências descabidas seguirão.
Lula sabe que até pode anulá-los durante seu mandato, os ignorando e evitando qualquer tipo de colisão com seus interesses (que não são poucos, principalmente financeiros), mas de antemão já tem conhecimento de que esse problema não será superado em seu terceiro governo e nem mesmo se houver um quarto.