A retirada da Rússia de Kherson:   é tática ou estratégica?

A retirada da Rússia de Kherson:   é tática ou estratégica?

A retirada da Rússia de Kherson:   é tática ou estratégica?

 

Dmitry Orlov [*]
Nos últimos dois anos, ocorreu uma transformação incrível:   uma massa gigantesca e fervilhante de virologistas freelancers baseados na Internet transformou-se espontaneamente em uma massa igualmente fervilhante de especialistas em geopolítica. E agora, com igual rapidez, esses geopolíticos se tornaram especialistas militares. Alguns desses especialistas militares recém-nascidos estão agora opinando que a decisão da Rússia, anunciada há alguns  dias, de retirar suas tropas de um pedaço de terra na margem direita do Dniepr, onde fica a cidade de Kherson, é uma derrota estratégica. É estratégico porque a estratégia da Rússia em relação a essa região é — o quê? E é uma derrota porque uma retirada é o oposto de uma vitória, que, no contexto da operação especial da Rússia na antiga Ucrânia, seria – o quê? Eles não sabem (são recém-nascidos), mas “derrota estratégica” com certeza parece importante e tem como objetivo nos convencer de que esses virologistas, quero dizer especialistas militares, definitivamente sabem do que estão falando. E mesmo que não, apenas jogue um pouco de Deep State, alguns Bilderbergers, um Schwab ou dois, tempere, misture e terá uma bela salada de palavras.

Cartaz soviético da década de 1920.

Se preferir algo mais robusto para afundar os dentes, aqui estão alguns antecedentes. Kherson é uma região russa ao norte da Crimeia. Faz parte da ponte de terra que corre ao longo da costa do Mar de Azov e liga a Crimeia ao resto da Rússia. Também liga a Crimeia ao poderoso rio Dniepr através de um canal que fornece água para irrigação e permite que os agricultores da Crimeia cultivem muito arroz (entre outras coisas). E depois há a cidade de Kherson, que é para Kherson o que Kansas City é para Kansas, com a diferença de que enquanto Kansas City atravessa o rio Missouri, Kherson City está do outro lado do Dniepr, separada do resto de Kherson. Basicamente, Kherson City fica do lado errado do rio (que, neste caso, também fica do lado direito, se você estiver indo na direção de seu fluxo).

Áreas inundáveis a jusante da barragem de Khakovskaya.

O Dniepr é realmente poderoso. Ele atravessa Kiev e, em seguida, faz em um grande arco para o Mar Negro, formando uma fronteira natural que é difícil de atravessar e fácil de defender. Os soviéticos cobriram-no com uma dúzia de pontes e barragens e construíram centrais hidroelétricas que ajudaram a transformar a Ucrânia numa potência económica – por um tempo. Mas esse tempo acabou-se definitivamente e a atual safra de nacionalistas ucranianos chama esse período de “ocupação soviética” e está empenhada a destruir tudo o que é soviético, sejam estátuas de Lenine nas praças da cidade ou as pontes e barragens, que eles bombardearam incansavelmente. Até agora, os danos nas barragens foram em grande parte cosméticos, mas um dia desses eles poderiam ter êxito em derrubar uma delas, e nesse caso o espelho de água inundaria Kherson City e a área circundante, tornando-a inabitável por muito tempo.
E assim os russos decidiram evacuar a cidade de Kherson e as áreas circundantes. Putin emitiu uma ordem direta para evacuar quem quisesse sair. Essas pessoas foram transportadas para a Crimeia, juntamente com seus filhos, animais de estimação e parentes idosos, em ambulâncias, se necessário, com alojamento e alimentação, tratamento médico conforme necessário, depois receberam vales de moradia e cartões de dinheiro com algum saldo para sustentá-los, até encontrarem empregos e serem enviados para alguma região russa onde os empregos são abundantes. Como Kherson agora faz parte da Rússia, todos eles são automaticamente cidadãos russos dotados de todos os direitos e privilégios inalienáveis que lhes são inerentes, tornando-os, pelos padrões ucranianos contemporâneos, embaraçosamente ricos. Por outro lado, o que isso significa para aqueles que recusaram a oferta de evacuação e decidiram ficar em uma cidade completamente delapidada, parcialmente destruída, implacavelmente bombardeada, completamente minada e semi-abandonada que será afogada quando a antiga barragem romper? Embaraçosamente estúpido, eu acho… Do ponto de vista russo, a evacuação foi essencialmente uma repatriação daqueles khersonianos que se consideram russos; quanto ao resto, qual é aquela palavra desagradável que Victoria Nuland gosta de usar?[NT]
Agora vamos olhar para Kherson City do ponto de vista da logística. O inverno está a chegar; as pontes estão destruídas e o Dniepr congela, mas isso é muito ao sul para os padrões russos e, portanto, não congela de maneira rápida ou confiável. Durante grande parte do inverno, estará fechado à navegação, mas o gelo será fino demais para transportar caminhões e tanques pesados. Além disso, não há aeroportos. Você não precisa ser um especialista militar (nem um virologista talentoso) para entender que evacuar e sair de Kherson era a única opção viável. Sim, é uma retirada, e algumas pessoas acreditam que uma retirada de alguma forma é sempre um coisa ruim. A retirada de Kutuzov de Moscou em 1812 foi um coisa ruim? Certamente era – para Napoleão! E então, em 1942, houve uma retirada através do Volga em Stalingrado. Quão bem isso funcionou – para Hitler?
Assim, Kherson City está do lado errado do rio, impossível de reabastecer, completamente despovoada, com infraestrutura em ruínas por três décadas de corrupção, roubo e negligência ucranianas, em metade destruída por bombardeios ucranianos implacáveis nos últimos meses, e pode potencialmente ser inundada quando a barragem se romper. Por outro lado, os imóveis lá têm preços bastante razoáveis no momento e ainda são território russo – parte da região de Kherson, que foi aceita na Federação Russa em 04 de outubro de 2022, com base nos resultados de um referendo público. De acordo com a constituição russa, nenhuma parte do território russo pode ser vendida, alienada ou negociada e, assim, as hostilidades continuarão até que este território esteja novamente sob controle russo e a bandeira russa esteja novamente hasteada sobre o que resta da cidade de Kherson.
E se este pedaço de terra em particular, no lado errado do Dniepr é território russo, então o que dizer do resto? Que tal uma bela faixa de terras agrícolas despovoadas e desmilitarizadas com algumas centenas de quilómetros de largura ao longo da margem errada do Dniepr, patrulhada por aviões drones e periodicamente lavrada, plantada e colhida por máquinas agrícolas robóticas? Isso parece um plano perfeitamente viável; tudo o que resta é que os orgulhosos proprietários do que resta da Ucrânia (que estão em Washington) percebam que esta é a melhor oferta que eles vão receber. Os russos são sempre bastante razoáveis no início, depois ficam progressivamente menos e sua oferta final geralmente não é nenhuma oferta – apenas a morte.
Agora, vamos supor que os washingtonianos não vão rolar ansiosamente, deixar Putin coçar suas barrigas e depois urinar em si mesmos como cachorrinhos alegres. Afinal, a Ucrânia é terra americana! Eles compraram esta terra de alguns oligarcas ucranianos, ou ganharam jogando pôquer com eles, ou simplesmente a tomaram porque queriam… Vamos supor que, em vez disso, eles imprimam enormes maços de dólares e os deem aos ucranianos, que então se sentarão lá e atirarão de mau-humor esses maços de dólares na direção dos russos, que estão confortavelmente entrincheirados no lado direito (quer dizer, esquerdo) do Dniepr, desfrutando das confortáveis luvas de lã que milhões de avós em toda a Rússia estão tricotando para eles. Então, como a Rússia pode estabelecer essa bela e ampla faixa de terra? Eu não sou virologista e nunca poderia distinguir o RNA mensageiro do tipo normal, mas com certeza posso identificar uma proteína de pico (tem picos, uh!) e também posso ler mapas. E olhando para um mapa, posso ver claramente que a maneira mais rápida e direta de a Rússia fazer isso é lançar um ataque da Bielorrússia através de Kiev e descer até Odessa, no Mar Negro. Com a costa do Mar Negro já bloqueada pela marinha russa, as rotas de reabastecimento para as forças ucranianas/NATO a leste dessa linha seriam cortadas e a ação militar no território da antiga Ucrânia seria encerrada pouco depois.
O que está impedindo esse plano é a população: ainda restam alguns milhões de pessoas nessas terras, e quem você acha que deveria alimentá-las? Os russos? Esqueça! Essas pessoas tiveram a possibilidade de se declararem russos e se juntarem aos russos na luta contra os nazistas ucranianos (que sempre foram poucos, mas, devido ao generoso apoio ocidental, bastante influentes). Mas eles desperdiçaram essa oportunidade, e agora precisam ser persuadidos a fazer as malas e se juntar à União Europeia. A maneira mais fácil de fazer isso é apresentar-lhes a perspectiva de um inverno longo e frio sem eletricidade, calor, água corrente, comida nas lojas ou dinheiro. (A situação pode em breve ser a mesma em grande parte da própria União Europeia, mas eles merecem uma oportunidade de descobrirem isso por si mesmos.) Isso é exatamente o que a Rússia tem feito, já tendo eliminado 40% da capacidade de geração de eletricidade da Ucrânia enquanto infligia muitos outros danos à infraestrutura, principalmente usando foguetes lançados de navios e aeronaves, e os novos e sofisticados ciclomotores voadores chamados Geranium 2 (um drone suicida movido por um motor de dois tempos barato fabricado na China).
Até agora, tudo isso tem sido sobre táticas; mas e a estratégia? Bem, estrategicamente, este é um sinal para os EUA/NATO, cujos representantes e mercenários a Rússia está atualmente a combater na Ucrânia. (Graças à dissuasão nuclear da Rússia, as guerras por procuração são tudo o que eles podem arriscar.) O que a Rússia está sinalizando para eles, para seu próprio povo e para o resto do mundo, é que esta operação militar especial é um compromisso aberto sem prazo definido, mas com um objetivo definido: garantir a segurança da Rússia. A Rússia pode mantê-la literalmente para sempre. Além disso, isso provavelmente é bom para o seguinte: os povos estão a tornar-se mais unidos, a economia está se desdolarizando, o rublo está mais forte do que esteve em 22 anos, a influência cultural ocidental está sendo expurgada, os inimigos internos estão sendo eliminados e a máquina militar russa está recebendo um ajuste muito necessário. Enquanto isso, o resto do mundo pode divertir-se pensando no facto de que o Ocidente coletivo está a ir embora. A Rússia tende a marcar suas maiores vitórias no auge do inverno. Sua vitória pode vir neste inverno, ou no próximo, ou no seguinte…
Quanto a mim, adoro o inverno! Mal posso esperar para ir esquiar e patinar no gelo. Acabei de colocar pneus cravejados no meu furgão militar Bukhanka para prepará-lo para as aventuras de inverno. Talvez eu até faça o tradicional mergulho num buraco de gelo no dia 06 de janeiro (Epifania). Este inverno deve ser bom.
Novembro/2022
[NT] “Vicky” Nuland tornou-se famosa quando uma chamada telefónica sua foi interceptada e divulgada na internet. Ela disse ao então embaixador gringo na Ucrânia: “Foda-se a UE…”. Ouçam-na aqui.
Ver também:
  • Russia’s Kherson withdrawal is tactical, M. K. Bhadrakumar
[*] Escritor.
O original encontra-se em boosty.to/cluborlov/posts/ddbdccb7-2757-401b-9683-b63e820fe0d8?from=email&from_type=new_post e a tradução em sakerlatam.org/a-retirada-da-russia-de-kherson-e-tatico-ou-estrategico/
Este artigo encontra-se em resistir.info