60 anos do golpe: “É uma marca que nunca mais sai”; cicatrizes estão abertas mesmo depois da anistia

60 anos do golpe: “É uma marca que nunca mais sai”; cicatrizes estão abertas mesmo depois da anistia

60 anos do golpe: “É uma marca que nunca mais sai”; cicatrizes estão abertas mesmo depois da anistia

A lei de Anistia concedia o perdão para presos políticos e para militares que cometeram crimes conexos, qualquer ação de repressão contra os perseguidos políticos

João Figueiredo assina em 28 de agosto de 1979 a Lei de Anistia. Foto: Orlando Brito/Senado Federal

Por Júlia Lopes, Juliana Sousa e Maria Beatriz Giusti 
Jornal de Brasília/Agência Ceub

Abril trouxe um outono frio em 1964, quando 50 soldados armados invadiram a casa de Rosa Cimiana. Ela tinha pouco mais de 4 anos. 

Fortalecidos por leis que ela não conhecia e por um regime recém instaurado, os homens fardados procuraram o que era, segundo eles, um criminoso com alto nível de ameaça para o governo. 

O homem era o pai dela, Arthur Pereira da Silva, acusado de ser subversivo 

Arthur Pereira da Silva. Foto: Arquivo Pessoal de Rosa Cimiana

Arthur era pai de quatro filhos, ferroviário e filiado ao Partido Comunista, o chamado “Partidão” da cidade de Santa Maria (RS). 

Rosa relembra o dia em que seu pai foi preso e da brutalidade dos soldados. 

“Eu me lembro que estava muito frio, odeio frio até hoje por causa disso. Naquele dia, os militares destruíram a casa da minha família procurando o ‘Ouro de Moscou’. Eram 50 homens para pegar o meu pai. Meu pai nunca aceitou pegar em arma, nem um canivete ele pegava” 

No Natal do mesmo ano, por meio de uma prática parecida com o que hoje é conhecido como “Indulto de Natal”, Arthur foi liberado. 

“Eu lembro que fazia muito tempo que a gente não via meu pai, quando ele voltou pra casa, a gente só sabia comemorar ‘papai, vai passar o Natal com a gente!”.

A volta de Arthur foi a oportunidade que a família de Rosa precisava para fugir do regime. Com muito medo de ser preso novamente, mas sem querer fugir para o exterior, Arthur viveu clandestinamente até o final da sua vida. 

“Ele dizia que preferia viver clandestinamente no Brasil do que em um país que ele não conhecia.” conta Rosa. 

Quando Arthur já vivia clandestinamente no Brasil há quase 15 anos, em 1980, ele adoeceu.

O diagnóstico era uma infecção muito grave nos testículos oriunda das torturas sofridas pelo tempo em cárcere. Arthur nunca havia contado para sua família sobre o que sofreu enquanto estava preso. 

Rosa foi a única da família a saber exatamente o que havia acontecido. Em fevereiro de 1982, Arthur faleceu devido à infecção.  

Rosa Cimiana. Foto: Maria Beatriz Giusti

A luta pelo direito, a dificuldade do perdão

“A parte mais importante do processo de anistia é o pedido de desculpas que os conselheiros dão no final do processo”. 

Rosa seguiu os passos de Arthur e também dedicou parte da sua vida à militância política na época do regime. 

Procurada pelos militares e presa “algumas vezes”, Rosa lutou por sua própria anistia, da sua família e, principalmente, a de seu pai.

A Lei de Anistia, promulgada em 28 de agosto de 1979 em meio ao governo do ditador João Baptista Figueiredo, foi uma das saídas, propostas naquele período para o fim da ditadura.

O começo do fim

Para o professor da Universidade Federal de São Carlos, João Roberto Martins Filho, o fim da ditadura foi planejada. “Eles sabiam que mais cedo ou mais tarde o regime do poder voltaria para o civis, então tudo isso foi feito para que o fim do regime fosse de uma forma controlada”. 

Rosa, com apenas 20 anos, a convite do então deputado Ulysses Guimarães, fez questão de estar presente na sessão que aprovou o perdão aos criminosos políticos. 

Ela sentiu, pela primeira vez, esperança de ter sua vida de volta. Porém, a sua luta para ser anistiada ainda permeou por anos, mas sem nunca perder a importância. 

A anistia

A lei de Anistia concedia o perdão para presos políticos e para militares que cometeram crimes conexos, qualquer ação de repressão contra os perseguidos políticos. 

“A anistia serviu para os dois lados, mas essa não era a intenção da oposição quando lutou pelo perdão”, explica João Roberto. O professor ressalta que a Lei é uma herança para não acertar as contas com o passado. 

O cientista político Alessandro Costa acredita que não houve justiça de transição. 

“Uma justiça de transição completa seria com a responsabilização daqueles que, em nome do Estado, torturaram os que eles deveriam proteger”. 

Para Costa, a população teve que engolir a Lei de Anistia, que perdoava os dois lados, para acabar com um mal maior que era a ditadura.

Anistia depois de morrer  

Arthur Pereira da Silva foi anistiado em 2003, 21 anos depois da sua morte e 39 anos depois da sua primeira prisão. 

Rosa conta, com muita emoção, como foi escutar a sentença da anistia de seu pai.

“Ouvir o perdão foi como se eu tivesse voltado aos 4 anos de idade, vivendo na minha cidade tranquila. Não importa o dinheiro, nenhum dinheiro vai pagar o que eu e a minha família passamos. Minha dor é pelo resto da vida. É uma marca que nunca mais sai.”

Supervisão: Luiz Claudio Ferreira