“Tiradentes iniciou a luta há 230 anos. É a nossa hora de concluí-la”, diz jornalista
“Homenagear Tiradentes faz parte da luta contra o imperialismo”.
“Tiradentes iniciou a luta há 230 anos. É a nossa hora de concluí-la”, diz jornalista
Por Hora do Povo
"Tiradentes viveu num período de grandes transformações", diz Sérgio Cruz (Foto: HP)
“Homenagear Tiradentes faz parte da luta contra o imperialismo”, afirma o autor do livro Pátria Livre Ainda que Tardia
A Hora do Povo aproveita este 21 de abril, data que homenageia Tiradentes, o primeiro herói nacional, tombado na luta pela independência, para entrevistar o jornalista Sérgio Cruz, redator do HP e autor do livro “Pátria Livre Ainda que Tardia” – A verdadeira história de Tiradentes. A obra mostra que há 230 anos, o Brasil iniciava sua caminhada pela independência.
O livro, que já completa dez anos, é um estudo, feito pelo jornalista, dos Autos da Devassa, conjunto de documentos que reúne os processos dos inconfidentes. O autor destaca a importância da comemoração desta data na formação das novas gerações de brasileiros no espírito da luta pela soberania e a liberdade. “É importante o conhecimento de nosso passado para que saibamos como nos comportar corretamente nas lutas libertárias do presente”, diz ele.
Para Sérgio Cruz, o grande desafio das gerações atuais é completar a obra de independência, iniciada pelo alferes de Minas Gerais. “Muitos pontos constantes do programa dos inconfidentes foram cumpridos nos movimentos que se seguiram, como a conquista da Independência, da República e da Abolição”, observou o autor.
Muitos avanços foram obtidos também com a revolução de 1930 e a liderança de Getúlio Vargas. A consolidação de um partido centenário como o PCdoB, nascido em 1922, também fortaleceu as fileiras dos seguidores de Tiradentes.
Agora, que as forças contrarrevolucionárias, e até fascistas, impuseram retrocessos em vários pontos desse programa, inclusive com a desindustrialização, é hora de retomarmos os ideais dos inconfidentes e seguirmos o nosso destino de grande nação, livre, democrática, desenvolvida e solidária. Confira a entrevista:
HP: Já são 230 anos do enforcamento de Tiradentes. Por que o alferes de Minas Gerais teve esse desfecho na vida?
SC: Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, viveu num tempo em que o mundo se transformava rapidamente. O sistema colonial europeu, baseado no regime de servidão interna e escravidão e saque de riquezas, nas colônias, vivia uma crise profunda. O alferes, diferente da maioria das pessoas de sua época, conseguia enxergar com clareza as potencialidades do Brasil e se indignou com as amarras impostas ao país pelo regime colonial português.
Tanto ele quanto outros inconfidentes já haviam se debruçado sobre Guararapes, onde brasileiros de diversas raças, confrontaram a subserviência dos portugueses e, por conta própria, expulsaram os holandeses do país. Aquele episódio heroico despertara nos brasileiros o sentimento nacional e o anseio de liberdade. Foi durante essas batalhas contra os holandeses que, pela primeira vez, se redigiu um manifesto em nome da nação brasileira e é, também, quando surge o glorioso Exército Brasileiro.
Alguns anos antes da eclosão do movimento independentista no Brasil, as 13 colônias do norte haviam se rebelado contra a dominação inglesa e conquistado a sua libertação e a França enterrava o regime feudal que amarrava o desenvolvimento das forças produtivas daquele país. Podemos dizer que o mundo vivia uma época de grandes mudanças e de uma efervescência política intensa.
O fato é que toda essa efervescência empolgou Tiradentes e seus companheiros a trilharem os caminhos da liberdade também aqui no Brasil. A traição de Silvério dos Reis, um infiltrado no movimento, no entanto, permitiu que os colonialistas portugueses derrotassem essa primeira tentativa de tornar o Brasil um país independente. Por isso, o líder da Inconfidência foi enforcado.
HP: Diz-se que Tiradentes só virou herói nacional no período da ditadura. Isso é verdade?
SC: O movimento de 1789 foi reprimido violentamente pela Coroa portuguesa. Durante muito tempo era proibido se falar sobre ele em solo nacional. Mesmo com a Independência, conquistada em 1822, ou seja 30 anos após o martírio de Tiradentes, a permanência do regime monárquico e a presença da família real, que condenara Tiradentes, manteve um manto de silêncio sobre a revolta dos inconfidentes.
Somente com o avanço do movimento Republicano/Abolicionista, na segunda metade do século XIX, os debates sobre a revolta foram retomados. Os líderes republicanos e abolicionistas adotaram Tiradentes como símbolo do movimento. É desta época o reconhecimento do alferes como herói nacional. Os republicanos de esquerda instituíram em 1894 o 21 de abril como “Dia de Tiradentes”. Foi, inclusive, nesta época que ocorreu uma grande crise entre republicanos e a Coroa, em torno da construção de uma estátua em homenagem a Tiradentes no Rio de Janeiro.
É deste período também a contraofensiva dos monarquistas que lançaram o livro “A Conjuração Mineira”, de Joaquim Norberto, encomendado pela Coroa para denegrir Tiradentes, o símbolo maior do movimento republicano. A Coroa dera a Norberto todo o acesso aos Autos da Devassa – que se mantinha inacessível ao público -, ou seja, foi aberto ao autor monarquista todo o processo dos inconfidentes, com os depoimentos e as decisões dos tribunais da Metrópole.
Os documentos da Coroa portuguesa, que já eram deturpados na origem, foram transformados em “verdades históricas” pelas mãos de historiadores de aluguel e dos serviçais da Coroa.
Somente com a revolução de 1930, Tiradentes é efetivamente reconhecido oficialmente como herói nacional. Mais do que isso, é constituído por Getúlio, em Ouro Preto, antiga Vila Rica, o Panteão da Pátria, que guarda os restos mortais dos inconfidentes que o novo presidente mandou buscar nos países para onde eles foram exilados.
Ainda, por decisão de Getúlio, foram tornados públicos os Autos da Devassa, que se tornaram a principal fonte primária para os pesquisadores dos acontecimentos de 1789/92. O governo Castelo Branco decretou o dia 21 de abril como feriado nacional. Estes são os fatos.
HP: Dizem que o movimento dos inconfidentes não tinha sensibilidade social porque não defendeu a abolição da escravatura. Como vê essa questão?
SC: Essa é uma forma simplista de se analisar a inconfidência. A questão da superação da escravidão não era, naquele momento, uma questão amadurecida na sociedade. O que estava maduro naquele momento era a luta pela independência. Dos inconfidentes, apenas Tiradentes defendia a libertação dos escravos. O alferes também já era adepto da República, mas esse também não era um ponto consensual entre os revolucionários.
Os setores da sociedade brasileira da época que participaram da inconfidência mineira, como os profissionais liberais, fazendeiros, mineradores, militares, estudantes, intelectuais e outros, foram ganhos por Tiradentes para participar de um movimento para, basicamente, romper com a dominação colonial portuguesa. O que já era um grande passo. Eles não se uniam na questão da abolição e da República.
O alferes, apesar de defender esses dois pontos, sabia da necessidade de manter a unidade da frente ampla para conseguir romper a dominação colonial. Por isso, como dirigente revolucionário lúcido, ele liderou a construção de um programa mínimo que propugnava a independência, a industrialização, o ensino público gratuito e a mudança da capital.
Esse era um programa bastante arrojado para a época e que foi sendo colocado em prática no decorrer dos episódios históricos e revolucionários que se seguiram no país.
HP: Por que os países da América Latina reverenciam seus heóis com mais intensidade do que o Brasil? Vemos, por exemplo, um Bolívar, um Martí, Artigas, Rosas e outros. Aqui pouco se conhece de Tiradentes.
SC: Isto se deve ao que o general Nelson Werneck Sodré, um dos maiores historiadores brasileiros, chamou de “ideologia do colonialismo” e, depois Lula popularizou com o “complexo de vira-lata”. É a inoculação pelos dominadores da ideia de que nós somos inferiores e incapazes. De que nós não temos heróis. Que eles são todos uns espertalhões e aproveitadores. Que os bons mesmo são eles, os habitantes do “primeiro mundo”.
Este papel foi cumprido no país pelos representantes dos think tanks do império que fizeram um trabalho minucioso para denegrir a imagem de Tiradentes e de outros heróis brasileiros. O principal instrumento de dominação ideológica da atualidade é o Conselho de Relações Exteriores dos EUA e, em relação ao Brasil, a sua seção para a América Latina, o Concil on Foreign Relation Latin América Studies Programs.
Ele estimula nos países da periferia movimentos que visam derrubar líderes e mitos, ou seja, movimentos que visam denegrir a imagem dos patriotas e dos heróis. No Brasil, em relação a Tiradentes, esse papel foi cumprido pelo brasilianista Kenneth Maxwell, autor do livro Devassa da Devassa. Com grande penetração no mundo acadêmico, ele é primoroso em denegrir o movimento dos inconfidentes.
Aparentando ser um trabalho acadêmico sério, o livro não passa de um plágio completo do que disse Joaquim Norberto em seu livro – já citado – A “Conjuração Mineira”, que havia sido encomendado pelos monarquistas na década de 80 do século XIX para combater o movimento republicano e abolicionista, que avançava de forma avassaladora e tinha como grande patrono exatamente Tiradentes.
Para que o movimento revolucionário atual resgate a história real do país e abrace a sua herança é necessário um combate firme contra esta visão colonizada que tomou conta de nossa sociedade e do nosso mundo acadêmico.
HP: Quem dominava o Brasil naquela época, Portugal ou a Inglaterra?
SC: Formalmente era Portugal. O Brasil era espoliado em ouro pela Coroa portuguesa, mas todo o ouro e os diamantes que saíam do Brasil para Portugal tinham como destino final a Coroa Inglesa. Esse processo ajudou a industrialização do Reino Unido. Isso se deu porque Portugal havia se submetido aos ingleses no chamado Tratado de Methuen, de 1703. Nele, a Inglaterra forneceria os tecidos e Portugal os vinhos. Por isso o tratado ficou conhecido por tratado dos “panos e vinhos”. Com isso, Portugal se atrasou em sua industrialização e se endividou com a Inglaterra.
O domínio da Inglaterra sobre o Brasil era exercido indiretamente. Se dava através de Portugal. Por exemplo, a Carta Régia, de Dona Maria I, decretando a proibição de qualquer produção de tecidos no Brasil, de 1785, e que foi o estopim para o início da Inconfidência, foi uma exigência da Coroa inglesa. A Inglaterra proibiu qualquer produção de tecidos em todas as suas colônias para proteger a sua indústria têxtil.
Só quando a Inglaterra conseguiu esse feito – destruir toda a indústria têxtil no mundo – é que ela iniciou a narrativa demagógica do livre comércio, liberdade econômica, etc.
No Brasil, que já vivia um declínio da extração de ouro, muitos brasileiros partiram para outras atividades econômicas, entre elas a produção de alguns artefatos para uso agrícola e de tecidos em tecelagens artesanais. Com a decisão de 1785, iniciou-se uma brutal repressão a todos os brasileiros que estavam exercendo esse tipo de atividade.
A primeira reunião no Rio de Janeiro que desencadeou o movimento inconfidente, e que contou com a participação de Tiradentes e do estudante brasileiro em Coimbra, Joaquim da Maia, ocorreu logo após a divulgação da carta régia proibindo qualquer produção no país.
HP: Você vê semelhanças entre aquele período e os dias atuais?
SC: De lá para cá muita coisa aconteceu no mundo e no Brasil. Por aqui, trinta anos após a morte de Tiradentes, conquistamos a nossa independência política. Durante muito tempo tivemos um regime monárquico, baseado na escravidão e na produção agrícola.
Depois veio a abolição e a República. Numa primeira fase, a República abriu boas perspectivas para o país, mas a chegada ao poder da oligarquia cafeeira paulista, submissa inteiramente ao domínio inglês, atrasou o nosso desenvolvimento.
Foi preciso uma nova revolução para que o país entrasse de vez no processo de industrialização e de modernização. Muitas mudanças aconteceram. De 1930 até 1980 o Brasil foi o país que mais cresceu no mundo capitalista, com uma média de 7% de alta anual do Produto Interno Bruto (PIB).
De 1980 até hoje, com pequenos intervalos no sentido oposto, o Brasil se submeteu ao parasitismo financeiro imposto pelas economias centrais e estagnou. Estamos agora vivendo um período de retrocesso, tanto na política quanto na economia. O país está se desindustrializando e regredindo ao agrarismo exportador.
No mundo há algumas semelhanças com aqueles períodos turbulentos do final do século XVIII. Impérios e sistema sociais em decadência. Surgimento de novos sistemas sociais e de produção.
Atualmente assistimos ao início de uma nova guerra que está sendo insuflada por um império decadente. Os EUA já não conseguem dominar o mundo e nem atender aos anseios de sua própria população. Isso ocorre porque perdeu dinamismo produtivo e afundou-se no parasitismo e na especulação financeira.
Em que pese essa perda de protagonismo político e econômico, o governo americano quer impor sua dominação a qualquer custo. Para isso faz uso de alianças militares agressivas como a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) e provoca guerras a torto e a direito. Essas guerras têm dois objetivos, o primeiro é tentar manter o domínio decadente pela força, e o segundo alimentar sua indústria de armas sedenta de lucros.
Por outro lado, para desgosto do império cadente, surgem – como sempre acontece – novas sociedades com economias em ascensão, progresso social avassalador e uma forma mais cooperativa de se relacionar com o mundo. Assim como naquela época, grandes mudanças começam a aparecer no horizonte e a agitar o planeta.
CLÓVIS MONTEIRO