'Fomos silenciadas!': os detalhes do voto de Rosa Weber pela liberação do aborto

'Fomos silenciadas!': os detalhes do voto de Rosa Weber pela liberação do aborto

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'Fomos silenciadas!': os detalhes do voto de Rosa Weber pela liberação do aborto

História por Mariana Schreiber - Da BBC News Brasil em Brasília 

Rosa Weber defendeu que criminalização do aborto fere direitos fundamentais das mulheres

Rosa Weber defendeu que criminalização do aborto fere direitos fundamentais das mulheres© EPA

Prestes a se aposentar, a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber, votou na sexta-feira (22/9) para que o aborto realizado até 12 semanas de gestação não seja mais crime no país.

A ministra argumentou que a criminalização fere direitos fundamentais das mulheres, como os direitos à autodeterminação pessoal, à liberdade e à intimidade. Por outro lado, Weber considerou que a proibição não é eficiente para evitar abortos, sendo mais adequado políticas públicas de prevenção à gravidez indesejada, como educação sexual.

 

"A maternidade é escolha, não obrigação coercitiva. Impor a continuidade da gravidez, a despeito das particularidades que identificam a realidade experimentada pela gestante, representa forma de violência institucional contra a integridade física, psíquica e moral da mulher, colocando-a como instrumento a serviço das decisões do Estado e da sociedade, mas não suas", escreveu no voto.

Ela também lembrou que o Código Penal brasileiro, que criminaliza a interrupção da gravidez, é da década de 1940 do século passado, quando as mulheres tinham uma “cidadania de segunda classe”, sem o espaço devido no debate público.

“Nós mulheres não tivemos como expressar nossa voz na arena democrática. Fomos silenciadas!", sustentou Weber em seu voto (entenda melhor os argumentos da ministra ao longo da reportagem).

"Não tivemos como participar ativamente da deliberação sobre questão que nos é particular, que diz respeito ao fato comum da vida reprodutiva da mulher, mais que isso, que fala sobre o aspecto nuclear da conformação da sua autodeterminação, que é o projeto da maternidade e sua conciliação com todos as outras dimensões do projeto de vida digna”, continuou.

A manifestação de Rosa Weber é histórica: para os defensores da descriminalização se trata de um importante posicionamento pelo direito das mulheres, enquanto o lado favorável à proibição vê o voto como uma afronta à maioria conservadora do país e um desrespeito à vida do feto.

O tema tem sido debatido em diferentes países da América Latina, onde a proibição total é uma posição minoritária entre os países.

A ministra, porém, foi a única dos onze integrantes da Corte a votar. Como esperado, o julgamento foi interrompido por um pedido do ministro Luís Roberto Barroso para que a ação seja analisada pelo plenário físico do Supremo.

Weber pautou inicialmente o julgamento no plenário virtual, em que os ministros depositam seu voto eletronicamente por escrito, porque não haveria tempo hábil de julgar o caso no plenário físico antes de sua aposentadoria, no dia 2 de outubro, quando a ministra completa 75 anos (idade limite para atuar no STF).

 

Caberá a Barroso, próximo presidente da Corte, que já se manifestou favoravelmente à descriminalização, decidir quando o julgamento será retomado.

Hoje, o aborto é permitido no país em três cenários: gravidez por estupro, risco para a vida da gestante, e se o feto for anencéfalo (sem cérebro).

Defensores da descriminalização dizem que o aborto deve ser uma decisão da mulher e que sua proibição fere direitos humanos da gestante. Já opositores defendem que a vida começa na concepção e que, portanto, deve-se proteger o feto.

Não se sabe nos bastidores do Supremo se há maioria para acompanhar o voto de Weber. Defensores da descriminalização esperam ter ao menos quatro votos: além do de Weber, Cármen Lúcia, Luís Roberto Barroso e Edson Fachin.

Por outro lado, os ministros indicados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) — Kássio Nunes e André Mendonça — devem votar contra a ampla liberação do aborto.

Há mais incerteza sobre como vão se posicionar os demais: Gilmar Mendes, Luiz Fux, Dias Toffoli, Alexandre de Moraes e Cristiano Zanin.

Os argumentos de Rosa Weber – e o outro lado

Julgamento foi interrompido para que ação seja analisada pelo plenário

Julgamento foi interrompido para que ação seja analisada pelo plenário© Agência Brasil

Enquanto Weber defende a necessidade de se rever uma legislação de quase 80 anos atrás, sob o argumento de que as mulheres não tinham voz naquele momento, opositores da continuidade da criminalização dizem que apenas o Congresso pode decidir se muda ou não o Código Penal.

Sob esse argumento, a continuidade da proibição reflete o desejo da maioria conservadora do país, representada no Congresso Nacional.

A ministra contestou essa visão em seu voto. Segundo Weber, é dever constitucional do STF proteger os direitos das minorias contra a vontade majoritária.

“Assim como em praticamente todas as democracias liberais (com raras exceções das democracias puramente majoritárias), também na democracia brasileira a função de controlar as leis e atos do poder público para garantir que elas estejam em conformidade com a Constituição é exercida por órgão independente daqueles responsáveis por aprovar as leis”, escreveu Weber.

“Este órgão é tipicamente uma Suprema Corte ou Tribunal Constitucional. Isso é importante porque a democracia não se resume à regra da maioria. Na democracia, os direitos das minorias são resguardados, pela Constituição, contra prejuízos que a elas (minorais) possam ser causados pela vontade da maioria”, reforçou.

A ministra também abordou em seu voto a discussão sobre quando começa a vida humana e como ela é protegida na Constituição.

Na visão dos que defendem a proibição do aborto, a vida começa na concepção e, por isso, a interrupção da gravidez seria uma espécie de assassinato.

Em seu voto, Weber reconhece que a discussão do aborto “é uma das questões jurídicas mais sensíveis, porquanto envolve uma teia de razões de segunda ordem de natureza ética, moral, científica, médica e religiosa”.

No entanto, a ministra diz que não há consensos sobre o início da vida humana no campo da filosofia, da religião e da ética. E argumenta que “a esfera da moral privada não pode ser confundida com a esfera da moral pública, e principalmente com o espaço de atuação do Estado de Direito, na restrição dos direitos fundamentais”.

A partir dessa visão, Weber analisa a Constituição e conclui que não há proteção absoluta à vida do feto, já que o texto assegura direitos aos brasileiros e aos estrangeiros residentes, definindo brasileiros como “os nascidos no Brasil, ainda que de pais estrangeiros, respeitados alguns critérios, ou os nascidos no estrangeiro de pai ou mãe brasileiro, desde que qualquer um esteja a serviço do Estado brasileiro”.

“Essa conclusão resulta mais evidente quando se observa que não há referência em qualquer passagem do texto constitucional aos não nascidos, seja na condição de embrião ou de feto. Na mesma linha de engenharia institucional, todo o sistema de proteção da ordem social, referente à família, criança, adolescente e idoso (capítulo VII), que igualmente supõe a pessoa humana nascida como titular dos direitos fundamentais garantidos, sem qualquer ressalva ao nascituro ou embrião”, diz o voto.

“Tais inferências interpretativas permitem afirmar o propósito do texto constitucional em afastar qualquer compromisso com a tese do direito à vida desde a concepção, a qual, diga-se, foi rechaçada nos trabalhos constituintes”, acrescenta.

Ministra critica efeitos da criminalização

Como relatora da ação, Weber convocou audiências públicas em 2018 para ouvir argumentos a favor e contra a descriminalização.

Em seu voto, a ministra citou estatísticas apresentadas pelo Ministério da Saúde e outras instituições para argumentar que a proibição não é eficiente para evitar abortos, sendo mais adequado políticas públicas de prevenção.

Ela nota que a realização de abortos inseguros provoca a morte de mulheres, afetando em especial mulheres pretas e pobres.

“A ilegalidade desse procedimento médico provoca a insegurança à qual a mulher é exposta, mais uma vez, frente às falhas estatais. Não por outro motivo, o aborto inseguro consta como uma das principais causas de impacto no delineamento sanitário do quadro da mortalidade materna, como atestam as estatísticas apresentadas na audiência pública, em particular pelo Ministério da Saúde”, escreveu.

"No lugar da intervenção extrema do Estado, caracterizada pela coercitividade, revela-se proporcional e adequado a adoção de políticas de estímulo à responsabilidade (feminina e masculina), de perfil preventivo no acesso à educação sexual e aos meios de promoção da liberdade reprodutiva consciente", ressaltou, em outro trecho do voto.