As lições da Frente Ampla de 1967 para os dias de hoje

Diante das minguadas manifestações deste domingo, 12, que pregaram o impeachment do presidente Bolsonaro, o autor lembra quão perigoso é repetir o fracasso da Frente Ampla de 1967, quando "a tibieza da coalizão permitiu ao regime autocrático [de 1964] avançar"

As lições da Frente Ampla de 1967 para os dias de hoje

As lições da Frente Ampla de 1967 para os dias de hoje

Diante das minguadas manifestações deste domingo, 12, que pregaram o impeachment do presidente Bolsonaro, o autor lembra quão perigoso é repetir o fracasso da Frente Ampla de 1967, quando "a tibieza da coalizão permitiu ao regime autocrático [de 1964] avançar"

Por

 Thales Coelho

 

O encontro histórico de Carlos Lacerda com JK em Lisboa - Foto: Acervo da família Kubitschek

São notórias as dificuldades de articulação entre si das forças políticas que se opõem ao atual presidente da República e a seu governo. Algumas delas, timidamente. Mas, que fazer, então? O senador José Aníbal (PSDB-SP), depois da tentativa de autogolpe do último dia 7 de setembro, desabafou: “Não é possível conviver com mais dezesseis meses de governo Bolsonaro”. E daí? Qual é a solução para que se evite entregar ao próximo presidente da República um país completamente destroçado?

Alfred Stepan, conceituado estudioso dos militares brasileiros, já assentou, com percuciência, que só é possível contrarrestar a sanha do estamento militar por tutelar a vida política brasileira por meio de uma ampla coesão da sociedade civil. A unidade, no caso, não importa anulação ou obnubilação das diferenças. Pelo contrário, por meio do diálogo e interação, uma relação antitética entre “amigo-inimigo”, frente a um adversário comum, pode converter-se em harmonia. Mais forte a unidade se torna, à medida que os interlocutores vão se fazendo capazes de ouvir e respeitar os argumentos do que pensa de outra forma. É a receita de construção de consensos vinculantes. É o caminho para impedir  mais dezesseis meses de agonia.

Carlos Lacerda, de apoiador do Golpe de 1964 a articulador da Frente Ampla

Não é fácil. O fracasso da Frente Ampla, articulada por Carlos Lacerda, em 1967, com JK e Jango, pode, em grande medida, ser atribuído a uma indisposição a aprender com quem pensava diferente; a uma incapacidade de ousar aproximar, de buscar a integração de posições antagônicas. Vale lembrar que até o inimaginável aconteceu: Lacerda entabulou tratativas com os comunistas, seus arqui-inimigos. E isso em plena ditadura militar. Em setembro daquele ano, JK e Jango já haviam conseguido − a duras penas, certamente − superar suas resistências a Lacerda, e afirmavam o compromisso de marchar juntos, resgatando o sentido mais remoto da política, como nos ensina Marilena Chauí, como “palavra-diálogo pública e igualitária”.

Os gaúchos João Goulart, o Jango, e Leonel Brizola

Superar estereótipos, porém, foi o desafio que não foi vencido. Apesar dos apelos de JK e Jango, 120 dos 133 parlamentares do MDB decidiram não ingressar na frente, por desconfiarem de que Lacerda poderia estar usando o movimento como base para sua “candidatura à presidência da República”. Brizola e membros da família de Getúlio Vargas diziam que havia “incompatibilidade total entre os trabalhistas e os líderes da Frente Ampla”. Pareciam não ter se dado conta de que, naquela República, só havia espaço para candidaturas de generais à Presidência.

A tibieza da coalizão permitiu ao regime autocrático avançar. Em agosto o ministro da Justiça já havia proibido a presença de Lacerda em programas de rádio e TV; em abril do ano seguinte, após a passeata estudantil pela morte do secundarista Edson Luís e a realização de um bem sucedido comício da Frente Ampla na cidade de Maringá, no Paraná, todas as atividades da Frente Ampla (manifestações, reuniões, comícios, passeatas) foram proibidas, com ordem expressa à Polícia Federal para que detivesse quem violasse aquela determinação. Em dezembro de 1968, uma vez editado o AI-5, Carlos Lacerda e o secretário-geral da Frente Ampla, o deputado maranhense Renato Archer, teriam seus direitos políticos cassados.

Hanna Arendt criticou a incapacidade de “ater seu juízo ao juízo de outros possíveis e de se colocar no lugar de cada um dos outros”

Os que hoje se recusam a caminhar juntos pelas ruas, praças e avenidas deste País deveriam bebericar nas lições que a Frente Ampla deixou para a história. Dezesseis meses de agonia, por falta de capacidade de “ater seu juízo ao juízo de outros possíveis e de se colocar no lugar de cada um dos outros”, como dizia Hannah Arendt, podem ser transformados em décadas de escuridão. Nessas circunstâncias, o fracasso do poder político que se manifesta como vontade comum formada numa comunicação não coagida cede passo à violência, que permite impor a vontade própria contra vontade opostas.

Não podemos permitir que isso aconteça no Brasil.

Advogado, Mestre em Direito Constitucional (UFMG)