Os bispos do Nordeste, o desenvolvimento brasileiro e o golpe de 1964

Os bispos do Nordeste, o desenvolvimento brasileiro e o golpe de 1964

Os bispos do Nordeste, o desenvolvimento brasileiro e o golpe de 1964

Entre 1946 e 1964, o Brasil assistiu a um vigoroso movimento de suas classes sociais, especialmente nas áreas rurais, que, na época, abrigavam a maioria de sua população e ainda não gozavam dos direitos que os trabalhadores urbanos haviam conquistado desde a década de 1930, como o salário mínimo, por exemplo. De maioria católica, a população brasileira nos anos 1950 era de pouco mais de 50 milhões de pessoas e cerca de 32% vivia no Nordeste. O contexto democrático abriu espaço para debates, cooperação e engajamento entre atores tradicionais e novos na busca pelo desenvolvimento do país, e essa última região foi indicada como a mais subdesenvolvida.

 

A Igreja Católica, ator tradicional na política do país, elaborou sua compreensão sobre os rumos do desenvolvimento brasileiro. Um grupo de bispos do Nordeste que representava a hierarquia católica através da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), uma associação civil católica criada em 1952, desempenhou um papel significativo no apoio a projetos de desenvolvimento.

 

Logo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Reprodução.

Logo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Reprodução.

Os bispos elaboraram uma visão própria sobre o desenvolvimento, conhecida como “desenvolvimento integral”. Essa perspectiva não se opunha à industrialização. Contudo, os clérigos chamavam a atenção para o fato de que o desenvolvimento deveria considerar a melhoria na qualidade de vida da população, levando em conta aspectos que iam desde as melhorias materiais e econômicas até as dimensões cultural e espiritual.

 

O cearense dom Hélder Câmara (1909-1999), então bispo auxiliar do Rio de Janeiro, foi designado secretário-geral da CNBB, logo após sua fundação, exercendo esse cargo até 1964. Outro ponto importante foi o fato de que, na composição de seus membros fundadores, a CNBB contava majoritariamente com um grupo de bispos nordestinos que tinham em comum, mais do que a região de origem, a busca pelo desenvolvimento integral.

 

O engajamento via CNBB fazia parte de uma tendência global dentro da Igreja Católica, que a partir de Roma, seguindo orientações papais, vinha focando na questão social por meio do que ficou conhecido como Doutrina Social Católica, vigente desde a publicação da encíclica Rerum Novarum de Leão XIII (1878-1903), de 1891. Na experiência brasileira, o meio rural era identificado como um reduto da família católica, portanto, seu espaço por excelência.

 

Assim, o desenvolvimento, especialmente no Nordeste, tornara-se tema e foco de muitas ações do catolicismo num cenário cada vez mais competitivo com outras ideologias e instituições – como o comunismo e as igrejas protestantes. Nesse sentido, enquanto se engajava em programas de desenvolvimento, a Igreja buscou também se apresentar como uma alternativa ao liberalismo individualista sem justiça social, e, concomitantemente, ao totalitarismo socialista sem respeito à dignidade humana.

 

Uma dimensão essencial e estruturante desse engajamento católico foi o diálogo entre os prelados e engenheiros, médicos, educadores, jornalistas, agrônomos, economistas e sociólogos que atuaram em universidades, na burocracia estatal, em empresas privadas, na imprensa e em agências internacionais. A ciência começou a ser compreendida por esses setores da Igreja como fundamental para um melhor conhecimento das comunidades rurais e das zonas subdesenvolvidas onde se pretendia intervir.

 

Esses fatores permitiram a aproximação entre a Igreja e o Estado brasileiro, que teve seu auge de colaboração durante o governo Juscelino Kubitschek (1956-1961). A visão alternativa sobre os rumos do desenvolvimento brasileiro precisou negociar e se acomodar com outros interesses, considerando, por exemplo, o fato de que os esforços governamentais no período, especialmente na gestão JK, preconizavam desenvolver o país tendo a industrialização como motor do processo. Nesse sentido, industrialização, agricultura, alimentação e saúde estavam hierarquicamente conectados. Ao priorizar os interesses econômicos via crescimento industrial, os demais ficaram comprometidos.

 

O diagnóstico de JK culpou a seca cíclica no Nordeste, a reprodução rotineira do analfabetismo, a pobreza nas áreas rurais e a falta de ações do poder público. Esta confluência de ideias e agendas políticas dos diversos atores aqui mencionados levou a um encontro entre clérigos católicos, políticos, diretores e funcionários de instituições governamentais para formular políticas públicas para o desenvolvimento regional. Entre as várias iniciativas da CNBB estavam as Semanas Ruralistas (SR) e os I e II Encontros dos Bispos do Nordeste (Campina Grande-1956 e Natal-1959). Estes eventos, com diferentes formatos e proporções, foram espaços e estratégias criados pela CNBB para associar-se ao governo federal e a governos locais.

 

As SR duravam, em média, sete dias e ocorreram em vários locais no país. Durante as “semanas” eram realizados debates sobre questões do mundo rural, destacadamente a necessidade do aumento da produção agrícola e pecuária; o êxodo rural, a pobreza, a insuficiente estrutura sanitária, além do combate a pragas que atacavam lavouras no país. Eram ministradas palestras e aulas práticas, além de haver distribuição de sementes, materiais impressos, criação de hortas, jardins e bosques, fundação de clubes agrícolas, exposição de produtos agrícolas regionais, exibição de filmes educativos e de novas técnicas e tecnologias voltadas para o campo.

 

Durante as SR, além de sistematizar informações sobre os problemas de cidades e regiões em que ocorriam os eventos, com o auxílio da chamada sociologia rural e dos estudos de comunidade – de forte influência estadunidense –, havia a intenção de oferecer aulas práticas (inclusive para os religiosos), além de debates com especialistas, bem como a distribuição de material impresso e de sessões de cinema e exposições que pudessem tecnologicamente e pedagogicamente assegurar melhores condições às populações rurais, estimulando-as a se fixarem em seu território. Padres e especialistas de diferentes áreas realizaram pesquisas e pesquisas sobre comunidades rurais, suas características e problemas sociais e culturais.

 

Jornal do Dia [Rio de Janeiro], 21 de junho, 1956, p. 8; Correio da Manha [Rio de Janeiro], 23 de maio, 1956, p. 4; Correio da Manhã [Rio de Janeiro], 23 de novembro, 1956, p. 7.

Jornal do Dia [Rio de Janeiro], 21 de junho, 1956, p. 8; Correio da Manha [Rio de Janeiro], 23 de maio, 1956, p. 4; Correio da Manhã [Rio de Janeiro], 23 de novembro, 1956, p. 7.

A primeira semana ruralista organizada por uma diocese católica ocorreu antes mesmo da fundação da CNBB. Era setembro de 1950, quando a cidade mineira de Caxambu, sob a liderança de dom Inocêncio Engelke (1881-1960), bispo de Campanha-MG, realizou sua edição do evento. Como uma de suas conclusões, foi publicada uma carta pastoral intitulada: “Conosco, sem nós ou contra nós se fará a Reforma Rural”. Esta foi reconhecidamente a primeira declaração importante de um bispo brasileiro sobre a reforma agrária.

 

No documento, os bispos defendiam uma “reforma agrária cristã”, isto é, em etapas e sem romper a ordem social, pacificamente, respeitando e consagrando a propriedade individual, mas oferecendo mudanças substanciais ao trabalhador rural e aos camponeses. A perspectiva não era apenas produzir bem-estar, mas também criar meios de manter valores católicos nas áreas rurais e de antecipar-se a possíveis “agitações sociais”.

 

Nos anos seguintes, outras manifestações de padres e leigos por meio das SR ocorreram, especialmente nas dioceses do Nordeste, recomendando maior acesso à terra e sua distribuição menos desigual. Em 1955, a CNBB assinou um acordo com o Ministério da Agricultura para a realização de Semanas Ruralistas. O acordo garantia recursos e as SR teriam um caráter de divulgação de informação e assistência aos agricultores, cursos de formação de padres e diáconos na produção agrícola e pecuária, bem como cursos voltados para as comunidades rurais.

 

A realização de centenas de SR ao longo da década de 1950, permitiu que a CNBB adquirisse expertise na articulação de diversos órgãos, públicos e privados. Foi nessa conjuntura, buscando respostas mais efetivas para o Nordeste brasileiro, que os bispos nordestinos que compunham a cúpula da CNBB, capitaneados por dom Hélder Câmara, inspiraram-se na organização e estrutura das SR e organizaram duas edições de encontros dos bispos daquela região com o presidente da República.

 

A primeira foi o Encontro dos Bispos do Nordeste (EBN), realizado na cidade de Campina Grande, no interior da Paraíba. Por seis dias, a cidade paraibana recebeu 27 bispos nordestinos que deram sugestões para que o Nordeste pudesse superar os principais obstáculos de seu subdesenvolvimento. Os bispos nordestinos acusaram falta de densidade no tratamento do governo federal e de seus órgãos em relação aos aspectos sociais da região e indicaram que seu respectivo desenvolvimento era uma questão nacional. O êxodo rural foi associado ao desordenado crescimento das favelas em áreas urbanas. Era preciso, na visão dos bispos, uma ação estatal coordenada com objetivo reduzir as desigualdades regionais, conter o comunismo e reverter o fluxo migratório para as cidades, face à concomitante expansão das favelas brasileiras.

 

I Encontro dos Bispos do Nordeste, realizado em Campina Grande-PB, em 1956, com a presença do presidente Juscelino Kubitschek. Reprodução.

I Encontro dos Bispos do Nordeste, realizado em Campina Grande-PB, em 1956, com a presença do presidente Juscelino Kubitschek. Reprodução.

No final do encontro, JK assinou 19 decretos que acataram sugestões expressadas pelos bispos. Os compromissos assumidos previam a construção de açudes, expansão hidroelétrica, melhorias na infraestrutura rodoviária e portuária, intensificação da modernização da agricultura e da industrialização na região, bem como campanhas sanitárias e distribuição de medicamentos.

 

Com boa repercussão, o I EBN deu audiência para palavras como democracia, colaboração e planejamento. Além disso, projetou positivamente a imagem de JK em período de crise e instabilidade política, haja vista as tentativas de golpe em oposição à sua posse em 1956.

 

Três anos depois, em 1959, a CNBB convocou mais uma vez os bispos nordestinos para discutir problemas da região com o presidente. Dessa vez na cidade de Natal, capital potiguar. Liderada pelo bispo dom Eugênio Sales, a arquidiocese de Natal era uma das mais atuantes e liderava as ações na busca pela melhoria das áreas rurais.

 

Na ocasião do II EBN, a dinâmica da Guerra Fria se tornou mais tensa e isso teve reflexos nos debates dos bispos. No final da década de 1950, além de uma forte seca que agravou a crise social no Nordeste (1958), outro evento havia ocorrido: em janeiro de 1959, a Revolução Cubana contribuiu para que o anticomunismo se tornasse um elemento mais latente nos debates políticos do país. Assim, foi crescente a pressão para que temas que receberam pouco destaque na edição anterior como, por exemplo, a reforma agrária, ficassem mais evidentes.

 

Por isso, na ocasião, o evento da CNBB teve como tema a reforma agrária e se encerrou com a assinatura de mais 30 decretos presidenciais para o desenvolvimento regional. Contudo, apesar da crise social na região, um dos primeiros resultados do I EBN foi a avaliação positiva que os bispos deram à ação do governo. Esta avaliação parecia atenuar uma série de fatores – de ordem econômica, sanitária, ambiental e seus efeitos, ou seja, a demanda de diversos segmentos da sociedade por novas formas de tratamento da região.

 

Apesar das contribuições importantes dos bispos católicos, como os robustos projetos de infraestrutura que resultaram dos decretos desses encontros, foi apenas com a criação da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), pela lei nº 3.692 de 1959 – isto é, ao final do governo Juscelino – , que foi efetivamente organizado um plano para o desenvolvimento e a industrialização do Nordeste. Essa autarquia, fundada em dezembro de 1959, foi a resposta político-institucional do governo JK para a crise na região, contando com o apoio da Igreja Católica e de outros setores da sociedade brasileira. Durante o encontro dos bispos em Natal, a autarquia foi mencionada e defendida como crucial para o desenvolvimento regional.

 

O engajamento da CNBB não esteve isento de críticas e, no início dos anos 1960, as iniciativas católicas precisaram acomodar outros interesses. Pois, além do Estado brasileiro, cada vez mais atores e instituições globais, incluindo agências que nasceram da dinâmica da Guerra Fria, como a United States Agency for International Development (USAID), se mobilizaram nesse sentido. Outro ponto implica o fato de que a ideia de um desenvolvimento integral foi abraçada pela Igreja Católica, mas não com unanimidade.

 

Ao final da década de 1950, quando o discurso de harmonização de interesses que a Igreja vinha adotando se esvaziava cada vez mais, nem mesmo o anticomunismo, presente desde as primeiras semanas ruralistas da CNBB, foi suficiente para evitar críticas ao seu engajamento em relação ao tema. Dentro da hierarquia católica, bispos mais conservadores capitaneados por figuras de dentro do catolicismo se articularam e manifestaram posições contrárias às atividades da CNBB.

 

Em começos de 1964, depois da Cruzada do Rosário em Família, liderada pelo sacerdote americano padre Patrick Peyton, surgiram as Marchas da Família com Deus pela Liberdade, com apoio de figuras importantes do episcopado e do clero, como o bispo de Diamantina dom Geraldo Proença Sigaud (1909-1999), no combate ao que julgavam ser o perigo da subversão da ordem. Essas passeatas surgiram como uma espécie de pedido às Forças Armadas por uma intervenção salvadora das instituições e, após o golpe, passaram por uma ressignificação de seu discurso, transformando-se numa demonstração de apoio e legitimação à intervenção militar.

 

Marcha da Família com Deus pela Liberdade realizada em São Paulo, em 19 de março de 1964. Fonte: Arquivo Nacional. Wikimedia Commons.

Marcha da Família com Deus pela Liberdade realizada em São Paulo, em 19 de março de 1964. Fonte: Arquivo Nacional. Wikimedia Commons.

Essa virada conservadora foi importante e apoiou o movimento golpista de 1964, a partir do qual teria ocorrido a deterioração da cooperação entre os bispos nordestinos que, havia pelo menos uma década, por meio da CNBB, vinham debatendo o desenvolvimento integral. Assim, se, durante a década de 1950, os nordestinos predominantemente se engajaram na busca de um desenvolvimento mais inclusivo e baseado na defesa da ciência, especialmente, sociologia rural. Em contrapartida, considerando a heterogeneidade na prática da religião no espaço e no tempo, observamos um grupo de bispos mais conservadores defendendo explicitamente interesses e estruturas políticas tradicionais, bem como líderes ditatoriais. Esse último segmento colaborou com a circulação de imaginários conspiratórios, indo na contramão de indicações e estudos que sugeriam reformas capazes de produzir transformações sociais mais profundas.

 

Em 31 de março de 1964, as Forças Armadas brasileiras derrubaram líderes democraticamente eleitos, incluindo o presidente brasileiro João Goulart e o governador de Pernambuco, Miguel Arraes, e prenderam, torturaram e fizeram desaparecer ativistas de movimentos sociais nordestinos que enfrentaram formas violentas de repressão após o golpe e durante ditadura. No mesmo ano, dom Hélder se transferiu do Rio de Janeiro e tornou-se arcebispo de Recife e Olinda.

 

Em abril de 1964, depois de acirrada disputa interna, a CNBB divulgou uma declaração apoiando o movimento golpista, mas a declaração parecia cindida. Uma parte teria sido escrita pelo bispo de Diamantina, o conservador dom Sigaud, e outra, por dom Hélder. Enquanto o primeiro apoiava o golpe e louvava a Deus por ter livrado o país do comunismo, o segundo sinalizava os excessos do novo regime e reiterava o compromisso da Igreja com a doutrina social. Apesar da falta de unidade dentro da CNBB, o fato é que, fundamentalmente, a instituição apoiou o golpe. Já na segunda metade de 1960, o endosso inicial ao regime foi decrescendo, restando uma minoria conservadora em contraposição à chamada “ala socialmente engajada”.

 

Nos anos 1950, existiu um contexto vigoroso de debate sobre o desenvolvimento – que incluiu uma visão elaborada desde o catolicismo. A experiência democrática do período foi crucial para o intercâmbio de ideias e experiências. Por isso, chamamos atenção para a necessidade de a democracia ser constantemente aprimorada e de forma alguma limitada ou extirpada. É esse sistema político que pode garantir um horizonte possível para a busca e construção de um país mais inclusivo e de visões alternativas de desenvolvimento que contribuam para desafiar o termo, o conceito e a prática do desenvolvimento. Em tempos em que o mundo discute uma nova agenda de desenvolvimento (Agenda 2030 da ONU), tem se tornado cada vez mais evidente que não existe desenvolvimento concreto sem saúde universal, equilíbrio ambiental, cidadania, justiça, distribuição de renda, cultura, educação, liberdade, entre outros aspectos que, em perspectiva semelhante, alguns bispos nordestinos recomendavam já nos anos 1950.