“A vida não pode ser trabalhar a semana inteira e ir ao supermercado no sábado”

Paleoantropólogo Juan Luis Arsuaga, que acaba de publicar um livro, tenta desvendar o sentido da vida: “Deve haver algo mais... E essa outra coisa se chama cultura. É a música, a poesia, a natureza, a beleza...”

“A vida não pode ser trabalhar a semana inteira e ir ao supermercado no sábado”

“A vida não pode ser trabalhar a semana inteira e ir ao supermercado no sábado”

Paleoantropólogo Juan Luis Arsuaga, que acaba de publicar um livro, tenta desvendar o sentido da vida: “Deve haver algo mais... E essa outra coisa se chama cultura. É a música, a poesia, a natureza, a beleza...”

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ADELINE MARCOS|SINC

 

Juan Luis Arsuaga na sede da Fundação Gadea Ciência em Madri.
Juan Luis Arsuaga na sede da Fundação Gadea Ciência em Madri.ÁLVARO MUÑOZ GUZMÁN (SINC)

As escavações na jazida arqueológica de Atapuerca em Burgos começaram no final dos anos setenta. Em 1982 se juntou ao trabalho o paleoantropólogo Juan Luis Arsuaga (Madri, 1954), um dos diretores da Fundação Atapuerca com Eudald Carbonell e José María Bermúdez de Castro, além de diretor científico do Museu da Evolução Humana em Burgos. Pouco depois, começariam a ser descobertos restos de fósseis humanos que iluminariam a história da humanidade.

Atualmente centenas de milhares de pessoas visitam todos os anos a escavação e o museu, que de acordo com Arsuaga proporciona modernidade e identidade “da boa”. “O museu é um bom exemplo de como fazer as coisas”, diz.

“Minha participação na criação do Parque Nacional de Guadarrama é a coisa mais importante que já fiz em minha vida, mais até do que descobrir fósseis”

Além da descoberta de fósseis, o cientista se sente especialmente orgulhoso de sua participação na criação do parque nacional da Serra de Guadarrama em Madri em 2013. “É a coisa mais importante que fiz em toda minha vida, mais até do que descobrir fósseis”, afirma.

Junto com a publicação de seu último livro Vida, la gran historia (Vida, a Grande História), o pesquisador foi recentemente nomeado presidente da Fundação Gadea Ciencia com um objetivo: “Que a fundação se transforme em algo útil à sociedade”. Mas para o paleoantropólogo, seu cargo mais importante é o de professor na Universidade Complutense de Madri.

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Pergunta. Imaginou em algum momento quais descobertas poderiam ocorrer em Atapuerca?

Resposta. Não poderia imaginar e, de fato, todos os anos ocorrem surpresas. A melhor coisa que pode acontecer em um projeto científico é que ele te surpreenda. Se não o faz significa que seus potenciais já se esgotaram.

 

P. E o que mais o surpreendeu ao longo desses anos?

R. A descoberta de tantos fósseis humanos é obviamente o mais importante em meu trabalho, mas nesses anos ocorreram coisas em Atapuerca e na ciência, como as análises genéticas, com as quais ninguém contava e sequer imaginava. Agora temos estudos de DNA de 400.000 anos. Foi uma surpresa para todo mundo. Em Atapuerca o mais importante foi o grande número de descobertas de restos humanos, que aparecem mais do que em qualquer outro lugar, mais do que no restante das outras jazidas arqueológicas juntas.

P. Por que escolheu a jazida arqueológica de Atapuerca?

R. É uma história que se parece com qualquer outra no mundo da ciência. Diferentes possibilidades são investigadas, linhas são exploradas, algumas parecem mais interessantes e lá se coloca mais esforço, se progride e os resultados aparecem. Então se investe mais. A história de Atapuerca não é o resultado de uma intuição genial. Na verdade, Atapuerca só começou a dar resultados em 1992, quando foi feita a primeira grande descoberta. Mas o começo foi muito duro, como o é para um astrônomo, um biólogo molecular e um botânico. No começo é uma roda que gira muito devagar. A ciência tem um método comum. Não há tanta diferença entre estudar terremotos e procurar fósseis. Consiste em explorar o desconhecido e ninguém sabe como fazê-lo.

P. Apesar de trabalhar com o desconhecido, pensam no que pode ser descoberto?

R. Não, mas escavamos onde já sabemos que há fósseis. Essas jazidas arqueológicas são para obter mais do mesmo. E depois surge o desconhecido. Há mundos novos que são os fascinantes e os conhecidos dos quais podemos saber mais. Em Atapuerca temos isso, os mundos já conhecidos e outros que não conhecemos bem.

P. Mas depois surgem descobertas, como a de uma mandíbula em Israel, que reescrevem o que já sabíamos…

R. Bom, não se deve dar tanta importância aos autores. É preciso matizar. Às vezes fico preocupado quando se diz que uma descoberta obriga a reescrever a evolução humana. Seria um desastre. É como se antes não soubéssemos nada. Se descobríssemos uma nova cidade romana, mudaria tudo o que sabemos sobre os romanos? Claro que não! Ganhamos mais conhecimento sobre certas épocas e momentos da evolução humana, mas sem exagerar.

“Ao contrário do que se pensa, a ciência é sumamente cautelosa e conservadora. As publicações científicas são muito sóbrias”

P. Ainda que algumas vezes tenha sido esse o caso…

R. Sim, é verdade que às vezes se produzem conhecimentos que não mudam o que já se sabia, mas que ampliam o conhecimento. Por exemplo, em 1994 se pensava que a Europa teria sido povoada há quinhentos mil anos, mas nesse mesmo ano encontramos fósseis humanos em grande abundância de 900.000 anos atrás. Ou seja, 400.000 anos mais antigos. Isso é como chegar a um continente desconhecido, mas o descobrimento da América não mudou a Ásia e a Europa, simplesmente acrescentou algo. A ciência cresce.

P. Em relação ao pedaço de maxilar encontrado em Israel, sua descoberta foi suficiente para determinar que o Homo sapiens saiu antes da África. Como é possível?

R. É como encontrar um relógio em um templo asteca. O que você diria? Isso é muito importante. Somente um relógio muda tudo. Como podem saber que faziam tecnologia avançada? Se faziam relógios... Há casos que são óbvios. Existem notícias que obrigam a revisar muitas coisas. Na verdade, não aparecem relógios, e sim aperfeiçoamentos e amplificações do que sabemos. Ao contrário do que se pensa, a ciência é sumamente cautelosa e conservadora. As publicações científicas são muito sóbrias.

P. Por que a antropologia nos atrai tanto?

R. Porque nossas origens nos interessam. Só há duas explicações: a religião e a ciência. As pessoas querem saber de onde vêm e por que estamos aqui. Costumamos dizer que as três perguntas da filosofia basca refletem o ser humano: quem somos? De onde viemos? E onde vamos comer? Mas além disso temos preocupações intelectuais: o que fazemos aqui? O que nos criou? Há quem procure uma explicação religiosa, mística ou extraterrestre, mas todo mundo precisa saber por que está aqui. Essa pergunta, inerente ao humano, é a mais importante que pode ser feita. Assim que você solucionar a questão da comida, a próxima é essa [risos]. As crianças que nascerem nos próximos milênios irão se fazer a mesma pergunta.

P. E na verdade nunca será totalmente respondida... ou será?

R. A religião dá uma explicação falsa e os cientistas explicam. Cada um procura sua felicidade pessoal. Mas se você quer saber de onde viemos, eu te explico. Se quer saber por que estamos aqui, eu te explico...

“Há quem procure uma explicação religiosa, mística ou extraterrestre, mas todo mundo precisa saber por que está aqui”

P. Não sei se vou perguntar ao senhor [risos]... Por que estamos aqui?

R. Meu novo livro é justamente sobre isso. A evolução, da origem do cosmos à origem da vida, passa por diferentes etapas: o surgimento da Terra, a vida nela, as células complexas, a consciência, a mente simbólica, o pensamento abstrato, etc. Cada um desses passos poderia ou não ter acontecido. Provavelmente não era preciso que acontecessem ou talvez fossem inevitáveis. A pergunta é se a história da vida e a história humana têm uma direção, um sentido. O próprio leitor, com a informação que lhe dou, decide se cada passo é algo que tinha que acontecer ou poderia nunca ter ocorrido.

P. De modo que o leitor responde a si mesmo?

R. Sim, deixo que decida por si mesmo. O leitor é tão inteligente que pode chegar às suas próprias conclusões. De modo que não sou responsável pela filosofia dos outros. Dou todas as informações sobre o que pensaram os diversos gênios. Eu conto o que existe, dou minha opinião, e o que os mais inteligentes disseram sobre os diferentes passos que nos fizeram chegar até aqui.

P. O senhor poderia me dizer, hoje, por que estamos aqui?

R. Você está aqui porque seu pai e sua mãe tiveram relações uma noite. Mas é preciso procurar a explicação. E isso está no livro.

P. Mas quanto mais informação temos, mais o mundo nos parece complexo…

R. É que é muito complexo e contraditório... Os que tentam simplificar o complexo são muito perigosos. Se pegarmos, por exemplo, o código genético que temos, o DNA, é o único possível? Podem existir outros códigos genéticos? Por que temos esse e não outro que poderia ser melhor? Por que não?

“Em meu livro, o leitor decide por si mesmo se cada passo da história humana é algo que precisava acontecer ou poderia nunca ter ocorrido”

P. Falando de DNA, me vem a cabeça a descoberta de Denny, a filha de uma neandertal e um denisovano. Com essas descobertas sempre vem à discussão uma pergunta recorrente: Homo sapiens, neandertais e denisovanos poderiam ser a mesma espécie?

R. Não, não somos. Nesse instante, você está falando em espanhol ou em árabe?

P. Espanhol, que eu saiba.

R. Você sabia que a palavra alcalde (prefeito, em português, que também tem a palavra alcaide, de significado semelhante) vem de ‘al-qadi’, de origem árabe? Mas não é por isso que falamos árabe. Termos palavras de origem árabe não transforma o espanhol em árabe. Ter 2% de genes neandertais não transforma você em neandertal. Em biologia, como nas línguas, todas as populações têm alguns genes de outras espécies. Como não foi um deus que nos criou, se espera que as espécies absorvam genes umas das outras. Somente um criacionista poderia pensar que as espécies são puras, separadas e que não têm contato com outras.

P. Essas três espécies viveram ao mesmo tempo, mas só compartilhamos uma pequena porcentagem de genes. É isso o que nos diferencia?

R. Temos genes de todas as partes. Veja os espanhóis. Temos um monte de genes africanos e das estepes. Veja os ursos da Cantábria. Têm 2% de genes de ursos das cavernas. É como se você dissesse que o espanhol foi criado por Deus como uma língua diferente do francês. Nesse caso sim seria surpreendente que tivéssemos uma palavra em comum. Deus não se repete. Mas os idiomas são um produto da evolução linguística e, levando em consideração que somos vizinhos, não me surpreende que digamos cruasán (variação em espanhol da palavra francesa croissant) mesmo não sendo franceses, e sim espanhóis. Aplico esse mesmo raciocínio à biologia.

P. O que acha das análises genéticas vendidas hoje para conhecer nossa origem? Eu, por exemplo, que sou francesa, não tenho nada de francês. Isso deve ter acontecido com muita gente. Como se explicaria isso a essas pessoas?

R. É que o francês não existe, é um conceito político. Realmente não existem o gene francês e o basco. São na realidade diferentes proporções e misturas.

P. Se as pessoas soubessem disso, acha que afetaria os nacionalismos?

R. Em princípio, não. O fato de termos genes diferentes não deveria mudar nada. O nacionalismo atual é mais cultural. Sabia que o sobrenome mais comum da Catalunha é Fernández, por exemplo? O nacionalismo renunciou há tempos ao componente biológico e agora é baseado na cultura. Utilizam outros elementos para definir a identidade. Dito isso, eu não sou nacionalista e minha família é basca e fala o idioma basco.

“Como não foi um deus que nos criou, se espera que as espécies absorvam genes umas das outras”

P. Focando na Espanha, que obstáculos enfrentam a antropologia, a arqueologia e a paleontologia?

R. Como dizia Groucho Marx, comparado com que? Se compararmos com a Argélia, estamos muito bem. Se compararmos com a França e a Itália, a situação não é tão boa. Mas houve progressos. Temos um patrimônio imenso e precisamos saber contar. É preciso investir. As instituições devem saber que isso é uma indústria e um recurso econômico, em todo caso. Essa é a nossa luta. Há trabalho a ser feito.

“O nacionalismo renunciou há tempos ao componente biológico e agora se baseia na cultura para definir a identidade”

P. Em parte, conhecer nosso passado nos faz entender e valorizar mais nosso presente, não acha?

R. Sim, e nos faz mais felizes, espero. Aprendemos, aproveitamos, vivemos outras vidas. Eu sempre digo que a vida não pode ser trabalhar a semana inteira e ir ao supermercado no sábado. Não pode ser assim. Essa vida não é humana. Deve haver algo mais, mas aqui, nessa vida. E essa outra coisa se chama cultura. É a música, a poesia, a natureza, a beleza... É o que se deve apreciar e aproveitar porque, caso contrário, isso é uma merda.

P. Nossos antepassados seguramente sabiam apreciar melhor a vida...

R. Sem dúvida. Não trabalhavam a semana inteira e não iam ao supermercado no sábado.

P. Então o que nós fizemos de errado?

R. Alguma coisa fizemos errado, mas ainda temos tempo. Temos Mozart. Não é pouco. Apreciar a beleza é uma questão de educação e sensibilidade. Procure o que é belo na vida. Há muita beleza.