Pandemia agrava situação de mais de 49 mil famílias do DF que convivem com a fome

Pelo menos 49 mil famílias do Distrito Federal vivem em situação de fome, agravada pelas dificuldades econômicas da pandemia. Em alguns lares, doações e auxílios são as únicas possibilidades para ter mais que água na geladeira

Pandemia agrava situação de mais de 49 mil famílias do DF que convivem com a fome

Pandemia agrava situação de mais de 49 mil famílias do DF que convivem com a fome

Correio Braziliense

Pelo menos 49 mil famílias do Distrito Federal vivem em situação de fome, agravada pelas dificuldades econômicas da pandemia. Em alguns lares, doações e auxílios são as únicas possibilidades para ter mais que água na geladeira

AR

Alan Rios

 

 (crédito: Ana Rayssa/CB/D.A Press)

(crédito: Ana Rayssa/CB/D.A Press)

“A fome é realidade para nós. E mãe tem aquilo que só a gente entende, de deixar de comer para dar para os filhos. Então, têm vezes que eles estão almoçando e perguntam ‘mãe, você já comeu?’, eu digo ‘sim, meu filho, pode ficar tranquilo’, mas se eu tivesse pegado para mim, ia faltar para eles.” O relato de Maria Francisca da Conceição, 36 anos, evidencia que uma condição de vida básica, como conseguir colocar comida no prato de todos na casa, é privilégio para uma parcela de moradores do Distrito Federal.

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgados em setembro mostram que 319 mil domicílios do DF estão em situação de insegurança alimentar. Os casos graves aumentaram 250% desde 2013 (leia Para saber mais). Em entrevista ao Correio no mesmo mês, o governador Ibaneis Rocha (MDB) afirmou que “a fome no ano que vem vai ser um grande problema” a se enfrentar. Enquanto esse cenário é analisado com preocupação pelo Estado, famílias lutam por uma refeição com arroz, feijão e carne.


“Estou desempregada e meu marido trabalha como eletricista fazendo uns bicos, mas não tem nada fixo. Temos três filhos e um sobrinho morando com a gente e a situação está muito mais difícil este ano. Vivemos de cesta básica. A carne está muito cara e têm vezes que não consigo fazer uma mistura, então o alimento é arroz e feijão”, conta Maria Francisca, moradora do Sol Nascente, região considerada uma das maiores favelas do Brasil, que reúne outras histórias como esta.


Ela lembra do que classifica como sorte: ter sido aprovada para receber o auxílio emergencial do governo federal, que vinha garantindo pequenas compras de supermercado, mas não consegue esquecer o dinheiro perdido após sofrer um golpe. Um homem ofereceu ajuda à comunidade para utilização do aplicativo da Caixa Econômica e direcionou R$ 1,2 mil de Maria e do marido para a própria conta. “Aquele foi um dos meses mais duros para nós. É triste ver o filho o dia todo sem se alimentar, comendo alguma coisa de noite só porque um vizinho deu. A gente tem de achar força de onde não tem”, desabafa.


O IBGE classifica, na Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), três níveis de insegurança alimentar: leve, moderado e grave. O leve é quando há “preocupação ou incerteza quanto ao acesso a refeições no futuro e qualidade inadequada dos alimentos, resultante de estratégias que visam não comprometer a quantidade deles”. São 207 mil domicílios no DF neste estágio. O nível grave é caracterizado pela “redução quantitativa de alimentos também entre as crianças, ou seja, ruptura nos padrões de alimentação, resultante da falta de comida entre todos os moradores”, situação em que “a fome passa a ser uma experiência vivida no domicílio”. São 49 mil casas na capital enquadradas neste contexto.

Para Vicente de Paula Faleiros, professor emérito da Universidade de Brasília (UnB) e doutor em sociologia da saúde ligado ao Departamento de Serviço Social, os números lembram que o Distrito Federal vive um exemplo clássico de desequilíbrio entre camadas populacionais. “Brasília mostra uma das situações mais ríspidas e expressivas da desigualdade social, com grupos em que sobra alimento, de políticos, juízes, empresários e funcionários de alto escalão, e grupos em que falta comida. É uma sociedade segregada e a população excluída busca sobrevivência”, pontua.


Os caminhos para combater esses problemas, na visão do especialista, passam pela busca por políticas públicas efetivas. “Um perigo é cair nesse neofilantropismo de achar que doação eventual de cesta básica resolve. Essa é uma atitude importante de emergência, mas precisamos sair do emergencial e ir para o estrutural. Ter uma renda básica para quem precisa, organizar o acesso ao trabalho para essas pessoas, mesmo que temporário, priorizar a escolaridade com bolsas de estudo, ou seja, dar condições para que o cidadão sobreviva com autonomia, com investimento planejado”, explica Vicente.

Doações e auxílios

Autonomia é uma palavra distante para Maria Lindalva Rocha, 43. Ela e alguns vizinhos muitas vezes dependem de doações para ter o que colocar na geladeira, ao lado das garrafas com água. A situação piorou durante a pandemia do novo coronavírus. Doméstica, dona Maria foi dispensada do trabalho, em Ceilândia, no começo da crise sanitária.


“Meu marido é ajudante de pedreiro, então, quando tem trabalho, ele consegue R$ 70 da diária do serviço. Quando não aparece obra, a gente se vira como pode e o almoço é arroz e ovo mesmo, que é mais barato. Junto R$ 2, porque cada unidade de ovo é R$ 0,50, e compro uns quatro.” Maria Lindalva tem quatro filhos, de 11 a 19 anos e um cachorro, vira-lata caramelo chamado Feijão.

A filha de 18 anos tem gastrite e chegou a se consultar, mas as dificuldades em realizar exames pela rede pública e seguir as orientações médicas não permitem uma melhora. “Tem dia que não come nada. Mas meu irmão é nosso vizinho, então, quando não tem almoço aqui, ele ajuda. Também recebemos umas cestas básicas que o pessoal da rua arruma, que o líder comunitário consegue. Fruta e verdura é mais difícil, mas tem uma moça que consegue na feira e doa”, relata.


Maria chegou a receber valores do Bolsa Família durante um tempo, mas foi cortada em 2016, quando conseguiu emprego fixo em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Desde que saiu de lá, ela não pôde voltar a fazer parte do programa. Este ano, a dona de casa foi beneficiária do auxílio emergencial, “que não rende muito porque comida está muito cara”. Contando que está disponível para qualquer tipo de trabalho informal, como faxinas, por exemplo, ela segue tirando forças do núcleo familiar.


Na casa de Josélia Marques, 34, esse apoio também é essencial. “Eu e meu marido corremos muito atrás das coisas para não faltar comida. Temos uma filha de 8 anos e um bebê de quatro meses, e não faltando arroz, feijão e carne, já ficamos satisfeitos. Não fico pensando em comer nada diferente, não. Nem ligo muito para bolo, pão. As crianças gostam mais e a gente consegue comprar de vez em quando”, conta.
A pequena Iasmin, com a natural inocência infantil, às vezes reclama de comer sempre a mesma coisa, pede sorvete no calor. A mãe explica que, se comprar o que ela quer, vai faltar o leite do irmão. Uma ajuda veio com o Bolsa Alimentação, pelo cartão material escolar. “São R$ 83 por mês, então dá para comprar algumas coisas no supermercado. A gente volta com três ou quatro sacolas porque os preços estão bem altos, mas já é alguma coisa”, ressalta.

  • Ana Rayssa/CB/D.A. Press. Brasil. Brasilia - DF. Cidades. Fomes cresce no DF, numero de domicilios sem acesso regular a alimentacao basica subiu entre 2013 e 2018. Joselia Marques de Souza tem dois filhos: Iasmin e Isac.

    Ana Rayssa/CB/D.A. Press. Brasil. Brasilia - DF. Cidades. Fomes cresce no DF, numero de domicilios sem acesso regular a alimentacao basica subiu entre 2013 e 2018. Joselia Marques de Souza tem dois filhos: Iasmin e Isac.Foto: Ana Rayssa/CB/D.A. Press

  • Fome cresce no DF

    Fome cresce no DFFoto: Ana Rayssa/CB/D.A Press

  • Fome cresce no DF

    Fome cresce no DFFoto: Ana Rayssa/CB/D.A Press

  • Fome cresce no DF

    Fome cresce no DFFoto: Ana Rayssa/CB/D.A Press

  • Fome cresce no DF

    Fome cresce no DFFoto: Ana Rayssa/CB/D.A Press

O impacto da pandemia

Em entrevista concedida ao Correio, o governador Ibaneis Rocha fez um panorama do contexto do DF. “A pandemia pegou a todos de surpresa. Todas as áreas. Abateu a todos, comércio, empresas. A fome no ano que vem vai ser um grande problema que vamos ter. Aqui no GDF, nós já fizemos alguns programas. Fizemos um de R$ 408, pagamos dois meses. Não foi prorrogado, mas nós criamos um programa chamado Prato Cheio, de R$ 250, que vai para todas as pessoas que recebiam cestas básicas e estavam cadastradas no nosso sistema. Agora, nós estamos fazendo uma limpeza desse sistema e recadastrando as pessoas para poder ampliar, porque sabemos a dificuldade que a grande maioria da população pobre do DF vai passar”, disse.


O GDF confirmou que vem trabalhando com intensidade desde o começo da pandemia para promover ações sociais de socorro às pessoas carentes, com mais de R$ 35,3 milhões investidos em cinco programas. Um dos exemplos de política pública citado, em nota, foi a entrega de 5,3 milhões de refeições nos 14 restaurantes comunitários do DF, de janeiro a setembro, por meio da Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes).


“Nesse total, estão incluídas as marmitas oferecidas à população em risco social a partir de março, quando as unidades suspenderam atendimento presencial e passaram a entregar número ilimitado de quentinhas, como forma de evitar aglomeração. Os restaurantes comunitários oferecem as refeições ao custo de R$ 1. O serviço garante, principalmente, aos trabalhadores de baixa renda e à população em situação de vulnerabilidade social, acesso à alimentação adequada”, afirma o texto.


A secretaria também ressaltou as atividades do Prato Cheio. “O benefício garante a alimentação das famílias em situação de insegurança alimentar e nutricional no Distrito Federal, especialmente neste período de pandemia da covid-19. No mês de setembro, o cartão concedeu crédito de R$ 250 a 28.775 famílias, para adquirirem alimentos da cesta básica no comércio local”, detalhou.


Mesmo com essas ações, o GDF reconhece que a Sedes e demais órgãos tendem a reavaliar o problema social. “Nas últimas semanas, por exemplo, foi renovado o contrato para permanência dos alojamentos provisórios para pessoas em situação de rua até janeiro de 2021. Paralelamente, a pasta abriu um chamamento público para a disponibilização, a partir do primeiro trimestre do ano que vem, de mais 600 vagas em abrigos para pessoas em situação de vulnerabilidade”, concluiu.

Garantia de renda


Há dois caminhos principais para atacar a problemática da fome. O primeiro é uma política de segurança alimentar que garanta que as pessoas consigam ter acesso ao mercado de produção de alimentos, do ponto de vista de disponibilidade e de nutrientes. Essa discussão vem sendo aprofundada no Brasil e isso se dá muito pelo apoio à agricultura familiar, à merenda escolar, por exemplo. Há outro viés importante que é relativo à renda disponível da população para adquirir o alimento. Voltamos para o mapa da fome, porque as pessoas têm menos dinheiro disponível para comprar alimentos. Então, faz sentido a gente discutir políticas públicas para garantir o direito à renda, que não pode ser encarado como um favor ou algo residual. Precisamos garantir isso como um direito, que deve ser disponibilizado por políticas completas, aquelas de transferência de renda em valor suficiente e permanente, como o Bolsa Família, que ficou defasado por conta da fila e da falta de atualização do valor. A educação surge nesse contexto também como algo que organiza a sociedade para que as pessoas tenham as capacidades desenvolvidas, possam fazer escolhas para a trajetória de vida. E políticas sociais de educação, moradia e saúde, para citar algumas, são complementares entre si e sempre que são fortalecidas acabam combatendo a pobreza. Mas é preciso lembrar que essas pessoas precisam de um programa de renda mesmo que tenham emprego. A pandemia jogou muita gente na indisponibilidade de trabalho, por isso a necessidade de política de renda permanente. E a recuperação econômica pode não ser tão rápida. Definitivamente, precisamos sair do auxílio emergencial para uma política que seja capaz de garantir um nível de renda adequado, sob o risco de a crise prolongar-se por muito tempo. E temos de discutir a renda básica universal, em que o governo transite por etapas, começando por quem mais precisa. É importante, ainda, que os governos locais atuem com políticas de apoio à segurança alimentar e renda, mesmo que o governo federal esteja atrasado na discussão.

Leandro Ferreira, presidente da Rede Brasileira de Renda Básica, bacharel em gestão de políticas públicas pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em políticas públicas pela Universidade Federal do ABC

Segurança alimentar

A Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) do IBGE analisou a segurança alimentar dos anos de 2017/2018. A análise evidenciou que o Distrito Federal registrou o menor percentual de segurança alimentar desde 2014. O nível grave de insegurança, quando a fome passa a ser vivida, atingia 14 mil domicílios em 2014 e alcançou 49 mil na última POF, um crescimento de 250%. A fome é definida por uma situação em que alguém fica o dia inteiro sem comer por falta de dinheiro para comprar alimentos. Ainda existem 207 mil famílias em quadro considerado leve e 64 mil em estágio moderado. Na comparação nacional, porém, o DF apresentou o maior percentual de domicílios particulares em segurança alimentar (67,3%). “Este percentual foi também superior ao de todas as unidades da Federação das regiões Norte e Nordeste, no entanto, foi inferior aos percentuais de todas as unidades da Federação das regiões Sul e Sudeste. Ainda sobre a capital federal, os percentuais de domicílios particulares em insegurança alimentar leve (21,2%) e moderada (6,6%) ficaram abaixo das respectivas médias para o Centro-Oeste”, divulgou o IBGE.