O que não foi dito sobre Sílvio Santos
O que não foi dito sobre Sílvio Santos
Comunicação e Mídia por RED
Por SOLON SALDANHA*
Vamos lá: eu esperei propositalmente que terminasse o que parecia ser uma interminável reverência. Um gênio teria nos deixado no sábado, 17 de agosto. O apresentador e empresário Silvio Santos – cujo nome verdadeiro era Senor Abravanel (em hebraico אברבנאל) –, aos 93 anos, faleceu em virtude de uma broncopneumonia pós infecção por H1N1. Ele estava internado no Hospital Israelita Albert Einstein, na zona sul de São Paulo. E, desde o anúncio da sua morte, as emissoras de televisão todas adotaram o fato como pauta praticamente única, inundando com relatos e depoimentos os lares brasileiros.
Sem a menor sombra de dúvida, ele foi uma das maiores referências em termos de entretenimento televisivo em nosso país, tendo atuado por mais de seis décadas. Também é verdade que iniciou sua vida como um simples camelô e a terminou como um dos maiores empresários do ramo da comunicação. Porém, essa subida exaltação que o coloca no ápice entre todos aqueles que contribuíram para a existência e a evolução da TV brasileira, tem em si um bocado de exagero.
Se analisarmos sua trajetória como apresentador, ele foi o mais longevo entre todos. Mas, antes dele, tivemos nomes notáveis como Blota Júnior, Flávio Cavalcanti, J. Silvestre e Chacrinha, que atuaram em época na qual a televisão não tinha sequer a possibilidade de transmissão em rede e a consequente maior penetração. Como empresário, está atrás do que fez Roberto Marinho e ambos não alcançam nem de perto a relevância de Assis Chateaubriand. Esse último literalmente trouxe a TV para o Brasil, em 1950, e chegou a construir um império muito maior que a Globo, os Diários Associados. No ápice, teve 19 estações de televisão lideradas pela TV Tupi, 25 emissoras de rádio, 36 jornais diários, 18 revistas e duas agências de notícias. Foi ele que ajudou a tornar realidade o Museu de Arte de São Paulo (MASP), tendo integrado a Academia Brasileira de Letras.
Agora, por que razão teria, por exemplo, a Rede Globo destinado uma fatia imensa da sua programação, ao longo de todo o final de semana, para exaltar alguém que, em tese, inclusive era seu concorrente? A resposta pode estar na expressão “lobo não come lobo”. Silvio Santos jamais foi de fato um adversário de Roberto Marinho. Para quem não lembra, ele chegava a anunciar e comemorar o fato de ser “a segunda rede” do país, no início das transmissões de suas emissoras. Ou seja, ambos tinham um acordo tácito sobre que nichos deveriam buscar e manter. O SBT sempre foi voltado para classes menos abastadas, cumprindo um papel complementar que indiretamente auxiliava na manutenção do “padrão Globo de qualidade”, voltado para um outro público, de classe média alta. E ambos serviam aos interesses do poder político, sendo o circo que se seguia ao pouco pão.
A concessão da TVS, embrião do futuro SBT, foi dada de mão beijada a Silvio Santos pelo ditador João Baptista de Oliveira Figueiredo. O que ele precisava entregar em reciprocidade ficava evidente em quadros como “A Semana do Presidente”, que por 20 anos divulgava atos do governo, sendo ainda patrocinado para tanto com verbas federais um recurso para estimular o ufanismo e dar popularidade aos militares. Em 2018, para agradar a Jair Bolsonaro, ele resgatou o slogan que foi popularizado na Ditadura Militar: “Brasil, Ame-o ou Deixe-o”. E emplacou um genro seu como Ministro das Comunicações.
Agora, para quem entende que esta troca de favores não tem muito problema, até porque ao longo do tempo isso sempre aconteceu, não apenas com ele, convém citar os outros “favores” alcançados para Silvio. Como os 70 mil hectares de terras no Mato Grosso que ele comprou de dois usineiros paulistas que, por sua vez, haviam sido agraciados com elas, que eram áreas públicas, por outro ditador, Emilio Garrastazu Médici. Sua fazenda recebeu o nome de Tamakavy, o mesmo dado posteriormente a uma rede de lojas que ele criou.
Também se precisa falar sobre a maior de todas as fontes de renda que o apresentador e empresário teve: o Baú da Felicidade. Autorizado pelo governo federal, ele se constituía numa espécie de venda antecipada e parcelada de produtos, que também oferecia prêmios. Entretanto, jamais foi fiscalizado. Depois disso ele ainda foi agraciado com a permissão da Tele Sena, um modelo proibido de apostas, que foi disfarçado como sendo “títulos de capitalização”. Só que nunca teve o lastro legal exigido por lei.
Sílvio foi responsável ainda pela devastação de enormes áreas que eram de florestas preservadas, para a criação de gado. Negociava produtos de agropecuária, entre os quais agrotóxicos, e chegou a ser dono de um banco, o Panamericano. A instituição bancária esteve envolvida com fraudes que causaram um rombo de R$ 4 bilhões e acabou vendida para o BTG Pactual, fundado por Paulo Guedes.
E, se o comunicador era de fato amigo dos seus amigos, sabia combater com rigor quem a ele se opunha. Bom exemplo disso está no embate mantido por anos com o diretor teatral Zé Celso. A razão foi a disputa pelo Teatro Oficina. O empresário comprou os terrenos que existiam ao redor dele, com o objetivo de construir um prédio que teria mais de cem metros de altura. Porém, Zé não aceitou vender o teatro. Mesmo assim, Silvio continuou com o projeto e obteve inclusive auxílio oficial para tanto. Chegou a ser aventada a desapropriação do local, o que foi contido pela mobilização popular. Soube-se depois que existiu um plano de transferir viciados para as proximidades, criando uma Cracolândia para desvalorizar a área e impossibilitar a continuidade da casa teatral. Isso está em vídeo gravado por Sílvio, ao qual a Folha de São Paulo teve acesso.
Um projeto para a criação do Parque do Bixiga, que surgiria a partir da permuta destes terrenos, foi aprovado em duas votações. Mas, em 2020, foi vetado pelo prefeito em exercício, Eduardo Tuma. No ano passado, o Tribunal de Justiça de São Paulo proibiu a prefeitura de autorizar a construção de um empreendimento imobiliário com mil apartamentos no local, uma outra destinação que foi cogitada pelo grupo. Órgãos de preservação municipais estranhamente haviam permitido tal coisa, mesmo sem solução para o litígio.
No mês passado, a Prefeitura Municipal, a universidade Uninove e o Ministério Público de São Paulo chegaram a um acordo para que seja antecipado o pagamento de quase R$ 65 milhões do total de recursos necessários para a desapropriação da área no centro paulistano, com o pagamento para o Grupo Silvio Santos. Isso deve afinal tornar realidade o Parque do Bixiga e a preservação da vista que o Teatro Oficina tem da cidade. Agora, vereadores da direita querem colocar o nome de Silvio Santos neste projeto com o qual ele jamais concordou. Zé Celso faleceu em julho de 2023, sem ter visto o impasse resolvido. E poderá ver, de onde quer que se encontre, essa afronta ser concretizada. O que é provável de acontecer, devido à comoção gerada pela morte do empresário, de quem todos lembraram as inegáveis qualidades, nos últimos dias, esquecendo de citar também os seus defeitos.
Publicado originalmente no blog Virtualidades.
*Solon Saldanha é jornalista.
Foto da capa: Silvio Santos sobre Figueiredo: “Se não fosse ele, eu tava vendendo caneta na Sé” – 27/08/2017 – Foto: Charles Nisz