O golpe de 1964: algoz da civilização brasileira.

A respeito de 1964, é imprescindível lembrar o que o Brasil poderia ser e não foi, por conta do férreo bloqueio imposto pelas classes dominantes e as potências capitalistas.

O golpe de 1964: algoz da civilização brasileira.

O golpe de 1964: algoz da civilização brasileira, por Roberto Bitencourt da Silva

A respeito de 1964, é imprescindível lembrar o que o Brasil poderia ser e não foi, por conta do férreo bloqueio imposto pelas classes dominantes e as potências capitalistas.

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O golpe de 1964: algoz da civilização brasileira 

por Roberto Bitencourt da Silva

O nefasto golpe civil-militar de 1º de abril de 1964 contou com uma gama poderosa de interesses e de apoiadores, dentre eles significativas frações da política institucional e oligárquica, o grande capital doméstico e internacional, o governo e o mainstream militar, diplomático e econômico estadunidense, assim como setores das classes sociais intermediárias, segmentos conservadores da imprensa – como a Folha, O Globo e o Estadão –, faixas altas das Forças Armadas e do Poder Judiciário. Convenhamos, com poucas diferenças, todos atores coletivos que formam o bloco de poder no Brasil do tempo presente.

O “aniversariante” do dia, o golpe de Estado levado a cabo em 1964, tão saudado pelos integrantes do governo atual e por membros das Forças Armadas, costuma, ano após ano, ser recordado pelo arbítrio, as abominações das torturas e as violações dos direitos humanos.

Seguramente, trata-se de um leque de práticas tenebrosas, promovidas pela ditadura instaurada nos idos de abril de 1964, após a destituição do popular presidente João Goulart. Mas, cumpre chamar a atenção para o mais importante e perverso efeito do golpe e da ditadura, cujas demais mazelas, inclusive as citadas, foram uma decorrência natural: o projeto do golpe era abortar a emergência de uma civilização brasileira. Mesmo após o fim das formalidades institucionais da ditadura, até o momento esse alvo tem sido alcançado. Desde o golpe, temos, cada vez mais, nos constituído em uma triste e tacanha cópia da sociedade hedonista, consumista, muito desigual e individualista dos Estados Unidos.

Quando falo em civilização brasileira atenho-me à pujança política, cultural, social, sindical, jornalística, da virada dos anos 1950-60. À busca pelas especificidades da realidade nacional e à engenhosa capacidade criadora e inventiva que se manifestava em diferentes terrenos. Uma pujança, um estado de ânimo e de energia que identificava algumas causas centrais do atraso brasileiro e da miséria do povo, mas igualmente destacava as peculiaridades virtuosas da nossa diversidade cultural e geográfica, do nosso sincretismo religioso, da nossa miscigenação e da contribuição multiétnico-racial para as feições próprias do Brasil.

Eram percebidas e incrementadas as nossas riquezas do ponto de vista cultural, mas também econômico. Amplos estratos sociais populares e medianos, das cidades e do campo, saíam da condição de objeto de forças e vontades poderosas alheias e se alçavam à posição de sujeitos no espaço público. Para usar a linguagem da época, de um grande pensador como o filósofo Álvaro Vieira Pinto, o povo transcendia a “consciência ingênua” e ensaiava a formulação de uma “consciência crítica” sobre as suas condições de existência e acerca dos possíveis e desejáveis destinos do País. A sua voz reverberava e tal estado de ânimo impulsionava o Brasil para frente, desafiando empedernidos e velhos problemas nacionais, tais como:

  1. A centralidade econômica da grande propriedade rural e primário-exportadora.
  2. O afã imperialista e monopolizador das corporações multinacionais que sugavam, como sugam, o consumidor e o trabalhador brasileiro, inviabilizando o desabrochar de uma indústria nacional e de uma tecnologia autóctone, nossa, verde e amarela. A “bomba de sucção” dos lucros e dividendos daqui extraídos foram multiplicados ao longo do tempo por essas corporações.

Aquela foi a época em que os trabalhadores mais participaram diretamente da formação da agenda nacional e da construção da opinião pública. Ambas eram, em boa medida, moldadas pelos partidos de esquerda (trabalhista, comunista, socialista), pelas lideranças nacionalistas, pelas organizações sindicais, estudantis, Ligas Camponesas, envolvendo trabalhadores urbanos e rurais, segmentos das classes médias.

A respeito de 1964, é imprescindível lembrar o que o Brasil poderia ser e não foi, por conta do férreo bloqueio imposto pelas classes dominantes e as potências capitalistas. Se fossem alcançadas as reformas de base, então patrocinadas pelo governo Goulart, o nosso País seria outro. Mas, o mundo também, menos submetido ao despotismo imperialista dos esteites. Um episódio marcante da guerra fria, da preservação dos interesses estratégicos do capitalismo global, se deu no Brasil, no ano de 1964. Por essas e outras razões foram envidados esforços reacionários e vende pátria em prol da “segurança” de uma ditadura formal de 21 anos.

O futuro do Brasil será radiante e grandioso se, em vez das bobagens colonizadas e liberalóides que consumimos do exterior e damos tanta importância nos dias de hoje, recuperarmos ao menos parcela da agenda nacionalista, socializante e anti-imperialista perseguida e golpeada em 1964.

Devido à cristalização de dilemas remotos e ainda não resolvidos, uma agenda extremamente atual, notadamente nesses bicudos tempos em que os apologistas do golpe, como Jair Bolsonaro, agem explicitamente contra os mais altos interesses da Nação, chumbando-nos no subdesenvolvimento, na miséria, na fome, na subalternidade na cena internacional, no desemprego e no subemprego crônico, no incremento da perda de horizontes da juventude, no desalento generalizado e em uma dependência tecnológica profunda.

Recordar 1964, não sob a ótica dos vencedores, mas evidenciando a perspectiva do projeto derrotado em 1964, deve também consistir em um gesto de inspiração e projeção do que podemos e merecemos ser enquanto Nação: econômica, tecnológica e politicamente soberana, próspera, democrática, com um povo dotado de intensa capacidade de participação nos processos decisórios e de direitos efetivos à vida e às condições subjetivas e culturais tão valiosas no mundo contemporâneo.

Roberto Bitencourt da Silva – cientista político e historiador.