No serpentário.

No serpentário.

No serpentário

Por Eduardo Brito

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Araújo Castro

Lotada de parlamentares, tecnocratas qualificados, jornalistas, autoridades, empresários em visita, Brasília oferece permanentes oportunidades de conversas inteligentes, mas em nenhum outro ambiente é tão garantida a ironia e a sutileza como entre os diplomatas. Não por acaso, o Itamaraty, a belíssima sede do Ministério das Relações Exteriores, é apelidado de “serpentário”. Com justiça. E, dizem os entendidos, nesse mister poucos se comparavam ao embaixador Araújo Castro.

Conhecido pelo pensamento avançado, foi o braço direito do chanceler San Thiago Dantas, e tornou-se seu sucessor precoce, ainda no governo Goulart. Veio o golpe de 1964. Com ele, o previsível: embora não enfrentasse qualquer acusação, Araújo Castro caiu literalmente no ostracismo. Deram-lhe a embaixada em Atenas, posto não desprezível por ser europeu, mas afastado demais dos polos de decisão para ser pouco atraente a um diplomata de primeira linha.

Naquela antiguidade em que não havia internet, o embaixador exilado comprazia-se em enviar cartas aos amigos, que eram muitos. Para simplificar, copiava todas, acrescentando a mão algumas notas pessoais. Na primeira dessas cartas, revelava que os novos governantes quiseram puni-lo ao mantê-lo afastado de todo poder decisório, mas acabaram por fazê-lo sentir-se em casa. Afinal, lembrava, ele era de família maranhense. E na Grécia todo mundo tinha nomes tipicamente maranhenses. Todos se chamavam Temístocles, Demóstenes e outros nomes comuns em sua São Luís. “Só não encontrei ainda nenhum José de Ribamar”, admitia.

Araújo Castro amargou uns quatro anos de postos menores, mas era grande demais para ser esquecido. Ainda no regime militar foi embaixador brasileiro nas Nações Unidas e, em seguida, embaixador em Washington, reconhecidamente o mais cobiçado da carreira diplomática. Como de praxe, comparecia com frequência ao Itamaraty e, nessas viagens periódicas, nunca deixava de procurar os amigos.

Um deles, Luiz Custódio de Lima Barbosa, era jornalista, mas parecia diplomata. Impecavelmente vestido, culto e arguto, em nada ficava a dever ao público nativo do serpentário que cobria para o Jornal do Brasil. Então genro do ex-governador e ex-senador Etelvino Lins, depois ministro do Tribunal de Contas da União, circulava entre políticos e diplomatas com absoluta competência. De quebra, gostava de oferecer recepções na sua mansão do Lago Sul, fronteira à Ponte Costa e Silva, ponto mais nobre da nova capital.

Entre seus amigos estava Araújo Castro, que Luizinho costumava aproximar dos colegas jornalistas. Como mantinha contatos permanentes com as equipes das sucursais, costumava chamar para essas conversas não apenas os colegas do dia a dia, mas também profissionais de passagem por Brasília, como editores dos jornalões do Rio de Janeiro e de São Paulo, meu caso na época. Quando Araújo Castro chegava, Luiz imediatamente marcava um papo, que era sempre sucesso.

O ex-chanceler tinha uma estrela especial que lhe permitia estar no lugar certo na hora certa para garantir uma história saborosa. Integrara a comitiva oficial do então vice-presidente João Goulart ao oriente – viagem que Jânio Quadros aproveitou para definir sua renúncia. Essa viagem proporcionou casos divertidos, como o de uma feérica recepção oficial que, tão logo se soube da resistência dos militares à posse de Goulart, foi interrompida pelos anfitriões, com direito a recolher os pratos e apagar as luzes aos poucos.

Uma das histórias de Araújo Castro referia-se a rotundo senador que integrava a comitiva como observador parlamentar. Embora udenista e, portanto, adversário figadal de Goulart, aproximara-se do vice ao partilhar seu gosto por refeições copiosas e seguidas rodadas de uísque. Uma certa madrugada, após muitas doses no bar do hotel, o eufórico senador bateu nas costas do vice e anunciou que se filiaria a seu PTB. Nos tempos atuais, era como se Lindbergh Farias aderisse ao partido de Bolsonaro. Passado o porre e anunciado que os militares vetavam a posse do vice, um João Goulart gozador passou um papel ao senador e informou que se tratava da ficha de filiação. O volumoso parlamentar gaguejou uma desculpa qualquer e guardou a ficha, embora garantisse que, chegando ao Brasil, assinaria aquilo. Lógico, não se falou mais no assunto. Após o desembarque, veto contornado e Goulart devidamente empossado, lá veio o senador. Com a ficha assinada, na mão, feliz como um passarinho à espera de alpiste. Durante os dois anos e meio do governo Goulart, era dos mais assíduos aos palácios presidenciais.

Essa história era seguida, claro, de perguntas sobre o que fizera o senador após a derrubada do presidente. Araújo Castro ria muito e dizia que não acompanhara mais o caso. Sabia, claro. O senador preferiu renunciar ao mandato em troca de uma sinecura, após jurar apoio ao regime militar e votar no marechal Castelo Branco nas eleições indiretas para presidente. Mas não teve mais como se candidatar a coisa alguma.

As tiradas mais divertidas, claro, referiam-se às intrigas internas do Itamaraty. Já em Washington, Araújo Castro conseguiu compor uma equipe toda ligada a ele, que incluía dois futuros ghost writers presidenciais e ao menos dois futuros ministros. Estavam todos felizes quando desembarca um diplomata inesperado. Era uma incógnita completa. Não era carreirista, não brigava por postos, não participava das fofocas, não era gay, não caçava mordomias e, pior de tudo, também era extremamente competente. O serpentário foi à loucura com a presença do intruso, que se chamava Rubens Ricupero. Afinal, quem era ele? A dúvida durou semanas. Até que uma tarde Araújo Castro foi de sala em sala, dedos nos lábios em sinal de silêncio, chamando a equipe para se trancar em seu gabinete. Com todos lá, trancou a porta e sussurrou:

− Descobri! O Ricupero é janista!

Fica o registro de que Luiz Barbosa também era um excelente contador de histórias, à altura do serpentário que cobria. Um de seus casos referia-se ao seu primeiro salário, no Correio da Manhã. Os focas fizeram fila na tesouraria para receber o parco dinheirinho, pago em envelopes. No corredor, foi interceptado por um veterano, o já famoso Hermano Alves, que anos depois seria deputado federal e um dos pivôs da crise que deu pretexto para o AI-5. Hermano explicou-lhe que “nós, repórteres especiais, só vamos receber amanhã” e que diante disso pedia um empréstimo por 24 horas. A essa altura já havia arrebatado o envelope de Luiz Barbosa. Que, evidentemente, nunca mais viu o dinheiro.


Eduardo Brito

A história desta semana é novamente uma colaboração de Eduardo Brito ([email protected]), ex-Estadão, Jornal do Brasil, Correio Braziliense e Jornal de Brasília.