Guerra na Ucrânia: a hora das apostas insanas

Putin amplia e torna mais brutal a ação militar. Governos ocidentais insistem em OTAN expandida, tentam emparedar a Rússia e querem “mudança de regime” em Moscou. Surge risco de deriva nuclear. Escalada pode sair de controle, alerta China

Guerra na Ucrânia: a hora das apostas insanas

Guerra na Ucrânia: a hora das apostas insanas

Putin amplia e torna mais brutal a ação militar. Governos ocidentais insistem em OTAN expandida, tentam emparedar a Rússia e querem “mudança de regime” em Moscou. Surge risco de deriva nuclear. Escalada pode sair de controle, alerta China

OUTRASPALAVRAS

GEOPOLÍTICA & GUERRA

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Este texto é uma atualização de:
GUERRA, TRÊS PEÇAS PARA UM QUEBRA-CABEÇAS

Sintoma de uma ordem mundial senil, a guerra da Ucrânia assumiu, no fim de semana, caráter de ameaça clara ao futuro do planeta. Embora não seja opção deliberada de nenhum dos poderes beligerantes, o risco de um confronto nuclear tornou-se real. Os meios de comunicação ocidentais atribuíram a derrapagem à ação de um “incivilizado”: o presidente russo Vladimir Putin. Vistos em profundidade, porém, os fatos revelam uma escalada mútua e até o momento descontrolada, em que cada oponente só enxerga como possibilidades ou a destruição do outro, ou de si mesmo – e que por isso pode resvalar para uma espiral descendente rumo ao abismo.

A crueza da ofensiva de Putin é evidente. Num diálogo com políticos que o apoiam, ele frisou no sábado (5/3) que a própria existência da Ucrânia como nação pode estar ameaçada. Em consonância com esta postura, as tropas russas que entraram no país pela Crimeia continuaram a avançar por toda a costa ucraniana, num sinal de que visam privar o país de seu contato com o Mar Negro. Ao mesmo tempo, a norte, manteve-se o cerco à capital, Kiev. A ofensiva russa não tem como alvo a população, civil, ao contrário do que sugere com insistência a mídia ocidental. Mas parece enxergar as mortes e o sofrimento que inflige a ela como “danos colaterais” – numa lógica idêntica à que presidiu as guerras dos EUA contra o Afeganistão ou o Iraque. Aos moradores das cidades sitiadas é oferecida a “oportunidade” de escaparem por um “corredor humanitário”, como se perder a casa e as relações sociais construídas ao longo da vida, e tornar-se refugiado, fosse um destino aceitável.

Ex-agente da KGB, guindado à presidência da Rússia por ser o favorito de seu antecessor, Boris Yeltsin, Putin parece incapaz de compreender a política em sua complexidade, relacionada à construção e disputa de hegemonias. Não se dá conta de que, ainda que obtenha seus objetivos militares na Ucrânia, obterá uma vitória de Pirro. O vastíssimo consenso que está se formando contra ele deixará a Rússia ainda mais isolada, nos terrenos político e bélico.

Mas os governos ocidentais, que contam com um imenso aparato midiático para se mostrar “refinados”, ampliaram a brutalidade que praticam com luvas de pelica. A justa reivindicação da Rússia – frear a expansão da OTAN e o cerco de seu território por bases americanas potencialmente dotadas de armas atômicas – foi soterrada nas narrativas da guerra. Em vez de ponderar, o Ocidente ampliou suas apostas. O objetivo, exposto em nossa análise de 3/4, foi confirmado no editorial de The Economist desta semana. Não se trata de proteger a Ucrânia e sua população, mas de derrubar Putin e, em especial, de pulverizar a principal possibilidade, aberta em séculos, de questionar a ordem eurocêntrica.

A “bomba atômica financeira” foi detonada e não se fala em controlar seus efeitos. Ao contrário. Além do sequestro de US$ 400 bilhões de Moscou (equivalentes ao PIB da Suécia ou da Argentina), praticado na semana passada, fala-se agora em em embargo à venda de petróleo e gás russos, para sufocar de vez a economia do país e produzir a revolta necessária à “mudança de regime”. Economist apela abertamente aos oligarcas russos e aos aliados de Putin para que façam o serviço. E há planos concretos para realizá-lo (inclusive os insólitos). No sábado, segundo noticiou o New York Times, uma delegação de altos representantes do governo norte-americano dirigiu-se à Venezuela… – com objetivo explícito de sondar as possibilidades de comprar petróleo de Caracas, em substituição do de Moscou.

Os riscos de guerra nuclear, reconhece a própria Economist, são inerentes a este tipo de cenário. Imagine, por exemplo, que a OTAN decrete uma “zona de exclusão aérea” (no-fly zone) sobre a Ucrânia, como proposto pelo presidente do país, Volodymir Zelensky, e pelos “falcões” em Washignton (a revista é contrária à medida). Em consequência um míssil disparado pela aliança militar ocidental poderia atingir uma aeronave russa; Moscou poderia retaliar contra o local do disparo, situado por exemplo na Polônia ou na Romênia. A OTAN, prossegue o raciocínio, teria de reagir, para não desacreditar suas próprias ameaças. A Rússia estaria obrigada ao mesmo. Como ambas as potências possuem arsenais nucleares, o risco de elas serem disparadas, de um ataque atômico em revide e de um confronto descontrolado é real.

Em momentos de crise aguda, até as possibilidades mais remotas tornam-se plausíveis. Os mercados financeiros estão em sobressalto novamente, nesta segunda-feira (7/3), com queda expressiva nas bolsas de valores e disparada do petróleo a até US$ 125 o barril, nos mercados futuros. No fim de semana, governantes europeus parecem ter percebido vagamente que, numa escalada entre EUA e Rússia, seus países podem ser os grandes perdedores. Subitamente, o primeiro-ministro de Israel, Naftali Bennett, tornou-se pivô de uma breve tentativa de encontrar solução negociada. Na noite de sábado, ele dirigiu-se de Telaviv a Moscou e se reuniu com Vladimir Putin por três horas. Na sequência, voou para Berlin, onde se encontrou com o chanceler Olaf Scholz. Mas, ainda no domingo, a presidência francesa revelou que Emmanuel Macron havia conversado por telefone, com Putin, por quase duas horas. Nada transpirou de nenhum destes encontros. Mas tudo indica que a Europa pode tentar buscar uma saída – e encontrou, em Telaviv um negociador viável. Rússia e Israel mantêm, no Oriente Médio (e em especial na Síria), uma relação de respeito mútuo.

Que papel joga Pequim? Embora discreto, o ministro das relações exteriores da China pareceu disposto, no fim de semana, a caminhar para o centro do palco. A narrativa ocidental busca reduzir seu país a um “cúmplice” do “demônio” Putin. Mas o tranquilo Wang Yi reafirmou a neutralidade de seu país, na sexta-feira; e frisou, no domingo, em entrevista coletiva, que “para resolver um tema complexo com cabeça fresca e mente clara, é melhor não jogar gasolina no fogo”. Acrescentou: “A China acredita que quanto mais tensa a situação, mais importantes são os diálogos; quanto maior o desacordo, maior a necessidade de sentar e negociar”.

Embora tradicionalmente tímida, no cenário internacional, a China pode ter uma posição privilegiada, para jogar um papel decisivo na crise. A Rússia depende inteiramente dela para buscar, diante da bomba atômica financeira detonada pelo Ocidente, uma alternativa. E as próprias potências ocidentais sabem que os trilhões de dólares de Pequim, estacionados em seus mercados financeiros, podem tanto estabilizar quanto provocar terremotos. Na segunda-feira (7/3), parece estar nesta brecha a chance de um distensionamento em uma guerra gravíssima.