ExCelso: Uma carta ao presidente da República para evitar ruídos com o Supremo

As incompreensões sobre o comportamento e decisões dos ministros do STF

ExCelso: Uma carta ao presidente da República para evitar ruídos com o Supremo

Na tarefa sempre delicada de manter uma certa harmonia entre os poderes, não livre de tensões permanentes, as visitas formais ou informais, telefonemas e correspondências entre as personagens que fazem a política executiva legislativa e judicial cumprem a função de diminuir ruídos e esclarecer fatos. Na semana passada, o ministro da Defesa, Fernando de Azevedo e Silva, foi ao apartamento do ministro Alexandre de Moraes, do STF, em São Paulo para conversarem sobre a situação do momento. Moraes é visto como antagonista do governo por relatar o inquérito das fake news, a despeito de ter comandado julgamentos que foram essenciais para o governo. No passado, situações como essa eram resolvidas da mesma forma. Em 16 de junho de 1964, o ministro Victor Nunes Leal soube que alguém havia dito ao presidente Castelo Branco que no Supremo havia três ministros que se uniriam para compor um bloco hostil ao novo governo – logo após a deposição de João Goulart. E como os rumores eram de que o tribunal poderia ser atingido pelos atos de exceção dos militares, ele resolveu escrever uma carta. 

Documento que foi entregue a um amigo que tinha acesso a Castelo Branco. Ou seja, Victor Nunes não escreveu diretamente ao presidente da República, mas faria chegar o recado por meio deste seu amigo de absoluta confiança.

O ministro só deu conhecimento da carta ao então presidente do STF, Lafaiete de Andrada. E só mais tarde faria publicar a íntegra do recado que pretendia fazer chegar ao presidente da República.

“É evidente que esse arauto da desarmonia, ou não conhece, ou fingiu desconhecer o funcionamento do Supremo Tribunal e a qualidade moral dos seus juízes. Quem chega ao Supremo Tribunal tem um passado pelo qual zelar, na advocacia, na magistratura, no magistério, em funções administrativas ou políticas, e está atento ao julgamento dos contemporâneos e da posteridade. O juiz, mormente do Supremo Tribunal, não recompensa benefícios, mas exerce uma elevada função que exige espírito público e dignidade”, escreveu.

Victor Nunes foi nomeado ministro do Supremo pelo presidente Juscelino Kubitschek, alvo dos militares que tomaram o poder. Essa origem da indicação era um dentre outros tantos fatores que colocaram Victor Nunes na lista de potenciais ministros cassados pela ditadura – o que de fato veio a acontecer em 1969. E dessa origem, desse passado, Victor Nunes escrevia na carta.

“Mas a imposição da toga lembra muito a investidura do Speaker da Câmara dos Comuns, cuja tradição é o escrupuloso e voluntário desligamento de sua anterior atividade política. No juiz, com mais forte razão, essa desvinculação tem de ser completa. Enquanto os outros poderes fazem as leis, imprimindo frequentemente novo rumo à coisa pública, o dever do juiz é cumpri-las, em confronto com a Constituição”.

“Decerto, essa delicada tarefa não é um trabalho mecânico. Valemo-nos de nossa formação profissional e da observação da realidade econômica, social e política. Mas essa busca, por vezes tormentosa, nossa lealdade é para com a Constituição, as leis, o interesse coletivo e a nossa consciência, porque sem a independência, que é ônus e prerrogativa do juiz, não se pode falar em autêntico Poder Judiciário”.

E concluiu.

“Lamento que alguém se tenha animado a transmitir ao honrado presidente da República uma falsa ideia do Supremo Tribunal. Mas nunca tivemos motivos para duvidar do elevado critério que S. Exa., que havia dado, espontaneamente, uma pública demonstração do seu apreço ao Tribunal, correspondendo ao que lhe dispensamos. E já agora me felicito de não haver ele, fiado no seu próprio discernimento, prestado atenção ao mau conselheiro. Se não cuidei de indagar quem era, foi para não aumentar meu desencanto dos homens”.

As cassações de ministros do Supremo só viriam em 1969. E o ministro atribuiu às incompreensões a razão de seu destino. “Não houve propriamente conflito entre o Supremo Tribunal Federal e o Executivo-Revolucionário, mas incompreensão, em alguns casos, do Executivo”, disse ele depois de aposentado do STF. “Suponho que a incompreensão de certos setores revolucionários resultava de pensarem que o Supremo devesse interpretar o direito anterior à Revolução segundo os interesses políticos da Revolução”.

***A coluna ExCelso é um espaço para lembrarmos e discutirmos a história do Supremo Tribunal Federal por meio de imagens, documentos, entrevistas, livros. A coluna será publicada semanalmente e traz em seu nome uma referência ao atual decano, Celso de Mello, que, pela função e temperamento, funciona como a memória do tribunal. Quem assiste às sessões já se acostumou às suas referências que, não raro, vão até o Império e às Ordenações Filipinas, do século XVI.

FELIPE RECONDO – Diretor de Conteúdo e sócio-fundador do JOTA. Autor de "Tanques e Togas - O STF e a Ditadura Militar" e de "Os Onze - O STF, seus bastidores e suas crises", ambos pela Companhia das Letras. Antes de fundar o JOTA, trabalhou nos jornais O Estado de S.Paulo, Folha de S.Paulo, no blog do jornalista Ricardo Noblat.

FELIPE RECONDO
BRASÍLIA